I – Resumo
Discernir
significa distinguir as diversas realidades presentes para depois tomar posição
em relação a elas. O discernimento requer que a pessoa seja consciente da
própria liberdade, do contrário seria isenta da responsabiliade dos atos. Um
grande desafio atualmente é oferecer um discernimento vocacional que vise
sobretudo ajudar principalmente aos jovens a desenvolverem suas capacidades e
recursos pessoais para auto-dirigirem suas vidas, e consequentemente suas
escolhas e decisões.
Esse trabalho
não tem como objetivo dar resoluções para os inúmeros desafíos da Pastoral
Vocacional, mas oferecer um meio ou luzes para qualificar o serviço de
acompanhamento vocacional, pessoalmente e nos grupos; uma reflexão sobre a
dinâmica cristã da vocação com as condições para o discernimento, os desafíos
atuais que o interpelam, o significado do discernimento vocacional e enfim um
modelo de critérios para a sua aplicação.
II – Introdução
Discernimento
é o ato ou efeito de discernir. É a capacidade de distinguir as situações,
avaliando-as com bom senso e clareza, depois de conhecê-las e entendê-las, a
fim de tomar posição em relação a elas. A partir da antropologia bíblica, a
liberdade é a capacidade de optar voluntariamente pelo bem e concretizá-lo. E
não só, a liberdade nos abre à verdade, graças à tendência interiore que nos
conduz à verdade mesma, e não apesar dela. É fundamental nessa dimensão a
função da Graça e do Espirito Santo[1].
III – Condições para discernir
Para discernir
a pessoa deve ser consciente da própria liberdade como pressuposição
imprescindível. A liberdade é a capacidade de dispor de si mesmo; daí que só
uma pessoa livre interiormente e em condições de liberdade pode discernir
verdadeiramente. Do contrário, a pessoa mesma seria isenta da responsabiliade
dos seus atos. A liberdade é um precioso dom, talvez aquilo de mais digno que a
pessoa tenha na sua existência. Ela permite um olhar aberto diante da vida, sem
reduzir ou desconsiderar nenhum dos seus aspectos. Interessante que, até mesmo
as desvantagens são consideradas a fim de discernir bem, com sucesso.
Segundo o
pensador espanhol Ortega y Gasset, o mundo é um repertório de possibilidades.
Isso implica escolhas, que por sua vez necessitam discernimento. A decisão é um
ato da vontade que canaliza forças para alcançar o objeto almejado. Por outro
lado, o discernimento conta conscientemente com a possibilidade não só de
acertar, mas também de errar[2].
Certamente, os desacertos podem ser frutos do modo apressado e desqualificado
de se proceder no discernimento, não respeitando o conhecimento e a assimilação
dos aspectos em jogo. Um
bom discernimento é consequência do confrontar de idéias, sem medo, dando tempo
ao tempo. No fim, o acerto portará sempre consolação e paz, e no fundo, a certeza
de que era a coisa justa.
IV – Discernir se faz necessário
O nosso mundo
se caracteriza atualmente pelo fenômeno da globalização neoliberal do mercado,
gerando em nome da liberdade irrestrita um sistema excludente, no qual as
pessoas valem pelo que produzem. Enquanto sistema excludente, a globalização
difunde a insensibilidade, levando as pessoas a se tornarem indiferentes diante
dos problemas e dos sofrimentos dos demais seres humanos. Passa a vigorar a lei
da concorrência, obrigando o indivíduo a pensar antes em si mesmo e ver no
outro o concorrente a ser derrotado. A falta de sensibilidade, por sua vez,
costuma fazer-se acompanhar do cinismo, do desprezo e do preconceito contra
aqueles que reclamam da situação e tentam sobreviver[3].
Tudo isso
provoca uma crise muito forte na dimensão espiritual, pois conduz a um estilo
de vida onde os valores não vão além do cotidiano, do banal e do imediato, e no
pior dos casos passam a ser relativizados. Isso por sua vez provoca
comportamentos anti-éticos, ou seja, tudo é lícito, tudo é permitido, desde que
sejam respeitadas as regras do mercado. Essa lógica mercantil faz as pessoas
voltarem-se para si mesmas e para os próprios interesses, estimulando o cultivo
do individualismo arrebatador e possessivo. Consequentemente há um desinteresse
pela bem comum e a cidadania não ocupa mais espaço na vida dos membros de uma
comunidade. Dá pra perceber o quanto é difícil falar e pregar os valores
evagélicos em uma situação como esta.
O alerta do
Episcopado brasileiro no Ano vocacional considerava esse fundo problemático
como ponto de partida para pensar o discernimento vocacional. Sobretudo por
considerar as consequências graves de tal realidade neoliberal:
“gera,
entre outras coisas, o individualismo exacerbado, a arrogância e a pretensão de
eficiência; favorece o espírito de concorrência, a sensação de incompetência e
de irresponsabilidade coletiva. Ela tem o padrão de consumo como critério
central de construção da identidade pessoal e grupal. Tende a desvalorizar a
cultura local e a ver o pobre, aquele que não tem, como não-pessoa. Todas essas
coisas criam sérias dificuldades para a opção vocacional”[4].
Um grande
apelo ao discernimento, não só o vocacional, mas no sentido amplo de valores
cristãos, é notado em quase todas as cartas de Paulo às diversas comunidades e
pessoas por elas representadas. Um texto clássico, que serve de exemplo é: “Não vos ajusteis a este mundo, e sim
tranformai-vos com uma mentalidade nova, para discernir a vontade de Deus, o
que é bom, aceitável e perfeito” (Rm 12,2). Se vê que o discernimento é uma
operação típica do homem espiritual, aliás é fundamental pois faz parte do
culto espiritual apresentado no versículo anterior: “[...] pela misericórdia de Deus vos exorto a oferecerdes como sacrifício
vivo, santo e aceitável; seja esse o vosso culto espiritual” (Rm 12,1).
Enfim, em meio
a tantas condições vulneráveis e inconsistentes, o discernimento passa a ser um
grande desafio para o homens e mulheres de bem. Mais ainda desafiador é falar
de discernimento vocacional para o jovem de hoje, embora não seja um desafio
negativo, mas uma necessidade pela qual a comunidade eclesial tem que se
confrontar mais cedo ou mais tarde.
V – Discernimento vocacional
O
discernimento vocacional implica um desejo, talvez curioso, da parte de alguém
em servir a Deus e aos irmãos, em um modo específico. Tal desejo deve ser
discernido, purificado, confrontado a fim que as motivações ou os valores que
estão por trás sejam claros e possam levar a concretizá-lo satisfatoriamente.
Ou então, a fim de iluminar a busca, ampliando suas possibilidades, tendo
sempre presente que Aquele che chama abençoa o esforço do que é chamado.
Não é fácil,
aliás é um processo complexo, até mesmo pelo fato da unicidade das pessoas
vocacionadas, as quais possuem uma história irrepetível. Por isso, o
acompanhamento vocacional deve ser antes de tudo personalizado, ou seja,
considerar o vocacionado naquilo que lhe é próprio: origem, história, cultura,
etc. É uma exigência concreta de fidelidade à pessoa que busca no
acompanhamento vocacional orientação para a vida. Efetivamente isso significa
acolher as pessoas como elas são[5]. Isso requer um processo de
formação aos futuros acompanhadores vocacionais, na esperança que se possa
oferecer meios concretos que promovam o discernimento vocacional, dentro das possibilidades
de cada realidade.
Por outro
lado, o acompanhamento vocacional tem uma dimensão de mistério, isto é, não é
uma realidade matemática que pode assegurar lucros e prever desvantagens. Não.
Sobretudo porque lida com pessoas. E ainda por cima, é Deus a iniciativa da
vocação. Ele tem critérios que são às vezes ilógicos dentro do ponto de vista
humano. Basta recorrer aos vocacionados na Bíblia, homens e mulheres dentre os
quais alguns não eram os melhores e mais capacitados, mas foram convocados e
agraciados, e porque não dizer acreditados por Deus para uma determinada missão
(Cf. Ex 3,1-12; Jr 1,4-10).
Diante do
mistério da iniciativa de Deus em vocacionar alguém para uma missão, deve-se
considerar o discernimento vocacional em todos os aspectos, mas principalmente
a relação entre fé e personalidade. A realidade neoliberal apresenta uma visão
fragmentada e inconsistente de tudo, e talvez seja por isso tão difícil para os
jovens de hoje darem uma resposta comprometida e durável. De fato, muitos têm
uma boa caminhada de fé, porém, de muita imaturidade humana para ter capacidade
de escuta e opção radical[6]. Por conseguinte, em meio a
entusiasmos e dúvidas, se faz necessário um caminho de conhecimento pessoal
destemido, antes de mais nada, para depois avaliar as tendências vocacionais.
Em geral, a
melhor maneira de se realizar o discernimento vocacional é num clima pedagógico
favorável no qual acompanhador e acompanhado devem se encontrar para juntos dar
espaço para atuação da graça de Deus, já que é o Espirito Santo o protagonista
principal do acompanhamento. O acompanhador deve ser consciente da sua função
de mediação e escuta reflexiva que ajude a iluminar o acompanhado.
De fundamental
importância é o conhecimento e estima da própria vocação por parte do
acompanhador vocacional. Afinal como lidar com o desejo vocacional de busca de
um jovem, se antes de mais nada eu mesmo não tenha feito um percusso pessoal de
busca vocacional, ou seja, experimentado na própria pele tanta inquietação
interior? Em verdade, é sempre entusiasmante ter presente o sentido da vocação:
“é o descobrimento do próprio rosto, do
projeto de vida, do nome que Deus deu a cada um de nós, do papel que Ele
confiou à cada um na vida [...] único, singular e irrepetível”[7].
Infelizmente o
discernimento vocacional por um lado é uma realidade temida não só pelos jovens,
mas também pelos agentes de pastoral vocacional, talvez por sentimento de
impotência diante do mistério da vocação, ou quem sabe por não querer se
envolver tanto, para evitar os fracassos. Por outro lado, ao invés, quando se
fala de discernimento, geralmente, se pensa logo na entrada do candidato no
seminário ou no convento, de um modo mais ou menos definitivo[8]. E aí se esquece que um dos
objetivos do acompanhamento vocacional é iluminar e promover o amadurecimento
humano a fim de que o vocacionado seja capaz de optar por um caminho
específico, e não os números e estatísticas.
Talvez, um
aspecto pouco refletido ou pouco experienciado no trabalho vocacional seja
justamente essa dimensão da gratuidade do serviço à vocação, ou seja, acolher,
escutar e em um segundo momento oferecer pistas para que a pessoa escolhar
livremente, sem intervenções interesseiras tipo:
– Contávamos
com 20 jovens no último encontro vocacional e somente um resolveu ingressar...
atualmente já está com os seus pais”.
Quem sabe esse
tipo de pensamento seja déficit de uma visão eclesial mais ampla.
Esistem muitos
modelos de critérios para o discernimento vocacional e justamente pela
complexidade da realidade da vocação em si, nenhum deles é perfeito e por isso
mesmo são somente modelos. Apresento suscintamente algumas orientações neste
âmbito, de Amedeo Cencini[9]:
a) Abertura ao mistério, sem
afirmar-se rigidamente numa escolha definitiva, mas saber ler o que está
acontecendo consigo mesmo de maneira gratuita, sem querer pré-definir nada.
b) Prudência motivada pela
esperança confiante de que a vocação não depende das próprias capacidades, mas
da gratuidade d’Aquele que chama.
c) Integração pessoal, ou
seja, o conhecimento suficiente dos próprios aspectos positivos e negativos,
dos ideais e das suas contradições, sem camuflar essas tensões sob a pretensão
de ser vocacionado.
d) Fazer um caminho de
conhecimento pessoal: afetividade, dons e carismas pessoais, auto-estima,
valores, mas também limites, fraquezas, inconsistências.
e) Saber relacionar-se com a
verdade-beleza-bondade da vocação, buscando-a sempre sem jamais exaurí-la. De
fato, a busca incansável é típica de quem já encontrou, ou indica que se está
na direção justa.
f)
Ser consciente da própria história de vida como lugar da
presença de Deus, e portanto, o chamado não se dá em eventos extraordinários,
mas dentro da própria história. E por isso é fundamental aprender a ler e
compreender as suas aspirações pessoais.
g) Viver a própria busca
vocacional como sinal de gratidão a Deus por infundir tal desejo de busca,
manifestação e dom da sua delicadeza para com o vocacionado.
h) Enfim, é bom que o
vocacionado conheça aquilo que é específico de cada vocação: exigências,
responsabilidades, etc., para um discernimento seguro e claro.
Naturalmente
que esses critérios devem ser vividos dentro de um itinerário vocacional, o
qual implica: oração pessoal e comunitária, partecipação eclesial, escuta da
Palavra de Deus, vivência sacramental, comportamento ético adequado,
sensibilidade crítica diante do mundo. Um caminho largo, cheio de horizontes e
também de dificuldades que caberá ao acompanhador e ao vocacionado percorrê-lo
juntos. Pode ser que a intuição experiente de Cencini ilumine aos futuros
acompanhadores no discernimento vocacional: “Há algum tempo compreendi que somente vivo devidamente a minha vocação
quando permito que os demais descubram e aceitem sua própria e vocacão pessoal”[10].
VI – Conclusione
No discernimento
vocacional nunca se deve perder de vista o aspecto do mistério da ação divina
da graça de Deus que vocaciona e ao chamar também capacita a responder
generosamente ao seu chamado. Nesse sentido, se deve ter consciência das
limitações humanas e principalmente de que as técnicas são somente um auxílio e
não o fim do processo de discernimento. Por isso, a confiança consciente da
presença e do auxílio de Deus, que não deixará a sua obra inacabada, permite um
justo equilibrio.
VII – Bibliografia
Livros:
CENCINI, A., Alguien te llama, Carta
a un joven que no sabe que es llamado, Sal Terrae 78, Cantabria, 2000.
GOYA,
B., Formazione integrale alla vita
consacrata, EDB, Bologna, 2000.
Documento:
Batismo: fonte de todas as vocações, Texto-base do Ano Vocacional no Brasil,
CNBB, 2003.
Artigos:
BILHA, J. A.,
“Discernimento e seus critérios”, in Medellín
XXX / 119-120 (2004).
CATAÑO,
C. E., “La familia como
primeiro y mejor seminario”, in Medellín
XXX / 119-120 (2004).
CECINI,
A., “I criteri del discernimento vocazionale”, in Rogate ergo, 5 (2001).
[1] BILHA,
J. A., “Discernimento e seus critérios”, in Medellín
XXX / 119-120 (2004), p. 396.
[2] BILHA,
J. A., “Discernimento e seus critérios”, p. 397.
[3] Batismo: fonte de todas as vocações,
Texto-base do Ano Vocacional no Brasil, CNBB, 2003, n. 55-57.
[4] Ibid., n. 59.
[5] GOYA,
B., Formazione integrale alla vita
consacrata, EDB, Bologna, 2000, p.28.
[6] BILHA,
J. A., “Discernimento e seus critérios”, p. 410.
[7] CENCINI, A., Alguien te llama, Carta
a un joven que no sabe que es llamado, Sal Terrae 78, Cantabria, 2000, p.
44.
[8] CATAÑO, C. E., “La familia como primeiro
y mejor seminario”, in Medellín XXX / 119-120
(2004), p. 329.
[9] CENCINI,
A., “I criteri del discernimento
vocazionale”, in Rogate ergo, 5(2001) pp. 17-22.
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