02 marzo, 2013

A força da alegria - Trad.


A FORÇA DA ALEGRIA

(FREI VITTORINO FACCHINETTI, OFM)

A presente tradução, feita sobre a primeira edição castelhana de La Fuerza de la Alegría, adaptação do livro “Sede alegres”, publicada no ano 2000 por Noticias Cristianas, de Barcelona, esteve a cargo de Claudio Dionizio Rocha Santos.

 

NOTA DO TRADUTOR 


   Recém-chegado à Espanha, em mil novecentos e noventa e nove, travei o meu primeiro contato com o editorial Notícias Cristianas. Linguagem acessível, poucas páginas, sã doutrina, para os que querem, aprofundar o conhecimento da fé cristã, mas não conseguem dedicar muito tempo à oração ou à leitura: eis uma realidade européia, possível alvo dos livros de Notícias. Pude conhecer o editor-chefe e propor-lhe a tradução à língua falada nas Terras Brasileiras.
Dos adjetivos acima elencados, acrescentei o fato da carestia de livros, escassez de recursos do povo: ambiente favorável à difusão dos livros, uma possibilidade de aportar algo a labor dos pastores da Igreja no Brasil.
   A obra que agora vos apresento não pode ser considerada de todo autêntica; já Taciano, escritor dos primórdios do cristianismo, fez do seu Diatessaron uma tentativa de fusão dos Evangelhos em uma única narração da vida de Cristo. De auntêntica tem o fato de ser uma obra sintética, sem perder a singularidade da vida de Nosso Senhor.
   Aceita a proposta, veio-nos o desafio: traduzir conservando ao máximo a fidelidade ao original, dando um toque de brasilidade ao opúsculo. Levamos a cabo com ajuda de umas tantas mãos. Agradeço aos amigos de Barcelona, Santiago de Compostela e Roma que me ajudaram nessa empreitada. Minha gratidão especial aos seminaristas da Arquidiocese de Aracaju pelo apoio; a Fabiano, responsável pelo que há de bom na tradução. Quanto aos possíveis erros e imprecisões, esperamos corrigir numa posterior edição. De Fabiano, transcrevo fazendo minhas estas palavras: “Desculpe alguma imprecisão, afinal não sou nenhum gramático. Dei só uma ajudinha”.

Claudio Dionizio

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INTRODUÇÃO


Francisco educou a sua inteligência, iluminando-a com os raios de sua fé simples e sublime; educou seu coração, livrando-o da escravidão dos bens terrenos, por meio da pobreza e de suas naturais conseqüências; educou a sua vontade , fortificando-a na observância da pureza e da castidade, que conservou por meio da humildade da oração e do espírito de piedade. E é na prática e na possessão triunfal dessas virtudes onde devemos buscar e podemos encontrar as verdadeiras causas de sua seráfica alegria.

Numa tarde de inverno Francisco regressava de Perugia a Assis, em companhia de seu amado Frei Leão. Tremendo de frio, açoitados pela chuva e quase mortos de fome, caminhavam por um lugar estreito, cheio de lodo, indo um à frente e outro atrás. Certamente, aquela não era a melhor ocasião para estarem alegres! E ainda assim, Francisco dirige a seu companheiro de viagem esta repentina pergunta:
“Poderias dizer-me, Frei Leão, em que consiste a verdadeira alegria?”
A amável ovelhinha do Senhor propõe ingenuamente várias soluções, que não chegam a satisfazer de todo ao Mestre, o qual, com sua linguagem simples e devota, começa a instruir desta maneira o amado discípulo:
“Frei Leão, supondo que os Frades Menores dessem, em toda a terra, um grande exemplo de santidade e de boa edificação, escreve e adverte com cuidado que a perfeita alegria não consiste nisso”.
Depois de andar um pouco mais, São Francisco chamou-o por segunda vez:
“Frei Leão, ainda que os Frades Menores dessem luz aos cegos, audição aos surdos, pés aos aleijados e fala aos mudos; ainda que curassem paralíticos, expulsassem demônios, e embora chegassem a ressuscitar os mortos de quatro dias, escreve que a perfeita alegria não está nisso”.
E, andando um pouco mais, gritou-lhe mais forte:
“Frei Leão, se o Frade Menor soubesse todas as línguas e todas as ciências e toda a Escritura, e ainda que pudesse profetizar e revelar não somente as coisas futuras, senão também os segredos das consciências das almas, escreve que não consiste nisso a perfeita alegria”.
Seguindo um pouco mais adiante, São Francisco voltou a chamar-lhe mais forte:
“Frei Leão, ovelhinha de Deus, embora o Frade Menor falasse a língua dos anjos e soubesse o curso das estrelas e as propriedades das ervas; ainda que lhe fosse revelado os tesouros da terra, e conhecesse as qualidades dos pássaros, dos peixes e de todos os animais, dos homens e das árvores e das pedras e das raízes e das águas, escreve que  a perfeita alegria não está nisso”.
E, andando um trecho mais, São Francisco gritou:
Frei Leão! Ainda que o Frei Menor soubesse pregar tão bem, que chegasse a converter todos os infiéis à fé de Cristo, escreve que nisso não está a perfeita alegria”.
E, como seguisse falando deste modo por mais duas milhas, Frei Leão, abismado, perguntou-lhe:
“Pai, rogo-te em nome de Deus, que me diga em que consiste a perfeita alegria”.
E São Francisco respondeu:
“Se quando estivermos chegando a Santa Maria dos Anjos, encharcados pela chuva, tremendo de frio, cobertos de barro e famintos, chamarmos à porta do convento e o porteiro sair enraivecido e nos disser: “Quem sois vós?” E nós respondermos: “Somos dois de vossos frades”. E ele replicar: “Não dizeis a verdade; sois uns enganadores, andais mentindo para as pessoas e roubando as esmolas dos pobres. Fora daqui ! E com isso não nos abrirem, fazendo-nos passar a noite à intempérie, com a neve, o frio e a fome. Se suportamos com paciência, sem nos perturbar, sem gritar nem murmurar ante tamanha injúria, crueldade e tantos desprezos, pensando humilde e caridosamente que aquele porteiro nos conhece bem e que Deus o faz falar contra nós, então, ó Frei Leão, escreve que nisso consiste a perfeita alegria. E se nós seguirmos chamando e ele sair à porta muito indignado, e como a malandros inoportunos nos por para fora com desprezo e bofetadas, dizendo: “Saiam daqui, ladrãozinhos mentirosos, vão ao hospital que aqui não lhes será dada nem hospedagem nem alimentos”. Se nós suportarmos isto com paciência e com amor, então, ó Frei Leão escreve que nisso consiste a perfeita alegria. E se, pressionados pela fome, pelo frio e pelo rigor da noite, voltarmos a chamar, e pedirmos pelo amor de Deus e com muitas lágrimas que nos abram e nos deixem entrar, e o porteiro, furioso nos disser: “Cuidado com estes malandros! Que inoportunos sois! Eu vos darei o que merecem!”; e sair à porta com um pau  e nos agarrar e, segurando pelo capuz, nos jogar ao solo, nos arrastar pela neve e nos bater sem piedade com aquela madeira; se sofrermos tudo isto com paciência e alegria, pensando nas penas de Cristo bendito que devemos sofrer por seu amor, escreve então, ó Frei Leão, que nisso está a perfeita alegria. E agora escuta a conclusão, ó Frei Leão: Sobre todas as graças e dons do Espírito Santo que Deus concede aos seus escolhidos, está a de vencer  a si mesmo e, voluntariamente e por amor de Cristo, padecer penas, injúrias, desonra e desprezos...”

1. A figura do Pobrezinho

Francisco de Assis, o seráfico pobrezinho - como hoje se costuma referir-se a ele - o Apóstolo da paz da Idade Média, o poeta da natureza, o cantor da fraternidade universal, é indubitavelmente uma das almas que melhor soube compreender e reproduzir en si, em sua vida prática, o evangelho da benção e da alegria cristã.
Ele é um dos tipos mais refinados, dos modelos mais perfeitos e das figuras que melhor representam a serenidade e a alegria de espírito.
A simpática figura deste gentil cavaleiro, que arrebatado por um sublime ideal se despoja, na flor dos anos, de todos os bens da terra, de todos os prazeres da vida, de todas as vaidades do mundo e renuncia, com heróico entusiasmo, às riquezas, aos gozos, às honras, a um porvir cheio de promessas e esperanças, nos atrai com irresistível força. E ao pensar que um dia o jovem Francisco, lançando longe se si, com um nobre gesto, suas elegantes roupas, cobriu-se com um áspero saco, cingiu a sua cintura com corda, e com os pés descalços e a cabeça raspada percorreu a Umbria e Itália, o Oriente e o Ocidente, pregando a todos a penitência e o perdão, então essa fúlgida e serena figura de apóstolo e evangelista do bem e da paz se apresenta ao nosso olhar como uma radiante e deslumbrante encarnação de bondade e amor.
Acostumamo-nos a vê-lo conversando com os passarinhos e com os peixes, acariciando os cordeirinhos e as inocentes rolinhas, aprendendo lições de atividade e prudência com a irmã formiga, de vigilância com a irmã cigarra e de canto com o irmão pardal, estreitando entre as suas mãos a garra do irmão lobo, correndo ao encontro dos irmãos bandidos, dobrando en sua presença o coração e os joelhos dos irmãos assassinos. Acostumamo-nos a comtemplá-lo em meio às multidões, pregando o evangelho da paz, do amor e da vida, cantando as maravilhas da Natureza com seu Canto do Irmão Sol e elevando-se no ar, na solidão das ilhotas dos lagos e das grutas das montanhas, arrebatado pelo fervor da oração e pelo divino impulso do êxtase. Acostumamo-nos a saudar o nosso Santo quando, no dourado crepúsculo de uma serena tarde de outono, extendido sobre a desnuda terra e coberto com uma pobre túnica pedida de esmola, entre o gorjeio dos irmãos pássaros e o canto de seus frades, dar boas-vindas à irmã morte e entregar sua formosa alma nas mãos do Criador...

2. Espírito de alegria seráfica

Paul Sabatier afirma que a “alegria, entendida como potência de vida e de expansão, foi a característica do primitivo movimento franciscano e uma de suas principais forças”.
O Servite Domino in laetitia  do Profeta em nenhum outro santo encontrou uma aplicação tão marcada e contínua como no Pobrezinho de Assis. Little, historiador inglês protestante, alma do movimento franciscano en sua pátria, escreve seguindo a Sabatier: “Está fora de dúvida que a maior parte do extraordinário poder do apóstolo úmbrio sobre as almas deriva de seu brilhante temperamento e sua inesgotável cortesia. Nunca ameaçou os homens, nem abusou deles, nem perdeu sua alegria com eles”. São Francisco é o modelo ideal do verdadeiro espírito evangélico que se distancia da murmuração queixosa dos eternos descontentes da vida, colocando sua confiança em um ideal de bem e de amor que sente invadir todo o seu ser.
Jörgensen, protestante convertido ao catolicismo por influência do franciscanismo, se expressa com estas palavras: “Podemos afirmar com justiça que um dos sinais distintivos de toda a Ordem Franciscana, e em particular de cada uma de suas figuras mais eminentes, é precisamente esta: o estar de toda maneira disposto psicologicamente, ao serviço de Deus, o que é para a alma que se entrega a Ele uma alegria, uma benção, uma bem-aventurança que supera toda medida. A vida destes homens é um júbilo em Deus quase contínuo, em tal grau que nos sentimos tentados a dizer, usando uma expressão que não teria aqui nada de irreverente, que suas almas estavam sempre mergulhadas na divindade”.
Celano, que desde as primeiras páginas de sua história afirma que Francisco era cortês em sumo grau, descreve-o como um homem de costumes suaves, de natureza tranqüila, afável en suas conversas, insinuante ao exortar... gracioso em tudo; de mente serena, de ânimo dócil, de espírito equilibrado... e sempre dono de si mesmo; fácil para perdoar, pouco propenso à ira, generoso de coração... de uma admirável simplicidade em tudo; rigoroso consigo mesmo, condescendente com os demais, discreto e moderado em todas as coisas, de palavra fecunda; seu semblante irradiava a toda hora uma alegria impregnada de benevolência, isenta de tristeza e de melancolia, incapaz de insolências. E como era humilíssimo, se mostrava doce e tolerante com todos, acomodando-se ao temperamento e modo de ser de cada um Santo entre os santos, tratava os pecadores como se fosse um deles.
A santidade de Francisco não é a melancólica tristeza de um misticismo limitado, sisudo, senão a tranqüila alegria de um espírito idealmente sereno e repousado.

3. Pessimismo anticristão

Sabe-se que a idéia fundamental que dominava em certas formas de vida ascética e monástica da Idade Média se baseavam, substancialmente, na concepção dualística, segundo a qual a terra, com todos os seus bens, com todos os seus prazeres, com todas as atividades que dela se derivam e nela vão terminar, não era outra coisa que culpa, tristeza e dor. Em toda alegria, em todo sorriso, ainda o mais puro e inocente, escondia-se e a malícia sutil do pecado. Toda nossa existência estava como que sob o domínio de um princípio perverso, a quem não é possível vencer senão com a fuga e a renúncia por meio de uma vida isolada, de oração e de privações.
As heresias contemporâneas ao nosso Santo não faziam mais que desenvolver e torna credivel cada vez mais este pessimismo de negra desesperação, que se estendia sobre as almas com o terrível pesadelo do pecado, com o horror da vida presente e com a angústia da futura, e conduzia, por uma lógica conseqüência, à mania de sofrer, ao furor da penitência e às mais tristes aberrações do espírito e do coração. Com tais frutos, esse pessimismo implicava o mais inumano, anticristão e anti-social conceito da vida que jamais havia existido no mundo, porque era como um dique que acumulava toda a atividade da mente e, ao mesmo tempo, era a negação da beleza, da natureza e da arte, a qual não podia conceber mais que manifestações sem vida e inspirações doentias e caprichosas: como estes grandes Redentores bizantinos que se destacam nas catedrais daquela época, de olhos tão irados e semblante tão feroz, que - como alguém disse - levantam a mão para abençoar e mais parecem que vão lançar uma maldição.
A originalidade de Francisco consiste precisamente em não se haver deixado arrastar pela influência do ambiente e em haver iniciado, com sua palavra e exemplo, uma nobre e vigorosa reação contra todas aquelas obscuras formas de misticismo terrível e austero, que representam uma das mais antipáticas e danosas degenerações do ideal religioso. O amável Pobrezinho inaugura, por assim dizer, na história, uma nova era de religiosidade propriamente cristã, caracterizada pela confiança, pela doçura e pelo amor. Em meio a seu século e a seu povo, levanta triunfalmente a bandeira do otimismo evangélico, bandeira que em suas mãos não voltará a baixar jamais, por terrível que seja a força dos ventos e das tempestades.

4. Alegria constante

Celano nos assegura que “o Santo se esforçava por possuir continuamente o júbilo do coração e manter com todo cuidado a unção do espírito e o óleo da alegria”.
Ordinariamente, para vencer a melancolia que às vezes, por diversas causas, ameaçava invadir o seu ânimo, o seráfico Patriarca recorria à oração, gemendo e suplicando ao Pai celestial, até voltar a conseguir a habitual alegria do coração. Fazia também o uso freqüente do seguinte recurso: pegava o primeiro pedaço de madeira que encontrava e, apoiando no braço esquerdo a modo de violino, passava o outro por cima com a mão direita, como se fosse um arco flexível, dançando e cantando em francês.
Refere o mesmo biógrafo que, já perto do fim de sua vida, Francisco, prestes a ficar cego, se encaminhou a Rieti, para ser curado por um especialista. Apesar de todos os remédios da arte médica, o Pobrezinho não via mais que trevas, sentindo grande pena e observando que lhe iam faltando as forças e que o espírito corria o perigo de deixar-se dominar pela tristeza. De repente manda chamar a um frei que, no mundo havia sido tocador de cítara e lhe disse:
“Irmão, os filhos do século não compreendem os segredos divinos. Os instrumentos musicais foram feitos para cantar os louvores do Senhor e eles os empregam só para deleitar os ouvidos; dar-me-ía uma grande satisfação se pudesses encontrar, sem que ninguém te chame a atenção, qualquer instrumento e me cantasses alguma canção. Isto seria um grande alívio para meu pobre irmão corpo, que se encontra decaído por causa das fortes dores”.
O bom frade respondeu:
“Pai, faria com muito prazer o que me mandas; porém, isso poderia ser causa de escândalo para alguém, como de coisa pouco conveniente a gente religiosa”.
“Não se fala mais nisso - repôs Francisco -; existem coisas que em si são inocentes, mas às quais é necessário renunciar para não escandalizar os pequeninos”.
Na noite seguinte, não podendo conciliar o sono, meditava e orava; quando repentinamente ouviu o som de um alaúde, uma música dulcíssima. O Santo, arrebatado em Deus, ficou tão intimamente penetrado daquelas celestiais harmonias, que por um momento acreditava que havia perdido a vida. Chegada a manhã, apenas havia levantado, chamou o irmão e disse-lhe:
“O Deus que consola os aflitos não me deixou desconsolado. Não me foi concedido ouvir a música de um homem, e eis aqui que pude escutar a muito mais deliciosa música dos anjos”.
Desta sorte, Deus se dignava manifestar o quanto lhe era agradável o modo de obrar de seu Servo, a quem, pelo demais - como o demonstra toda a vida do Santo - nunca permitiu o céu que se visse privado daquele íntimo gozo, que lhe consolava como uma gota de bálsamo caída em seu coração, ainda em meio às mais intensas dores. Dessa maneira, pode Francisco manter constantemente a plenitude de sua alegria e apresentar-se ao mundo, em todos os instantes de sua vida, como um modelo ideal de perfeita alegria em suas relações com Deus, com seus irmãos  e com toda a natureza.

5. Ardores seráficos

“Ó meu irmão! Ó amor, meu amado irmãozinho, faz que eu possa viver em um castelo que não tenha ferros nem pedras! Ó meu amado irmãozinho, fabrica-me uma cidade sem pedras nem madeira!” Este castelo ideal, esta cidade imaterial edificada sobre o amor, inundada de luz e cheia de cânticos de alegria, que um dos melhores discípulos de Francisco imaginava em seus místicos sonhos, foi a morada habitual de nosso Santo.
“Pai - lhe dizia em tom profético um de seus filhos, pouco antes de morrer o Santo - tua vida e conversão foram e continuam sendo espelho, não só para os teus frades, senão para toda Igreja, e assim também será a tua morte: embora seja para os teus frades e para muitos outros, motivo de tristeza e de dor, para ti se converterá em motivo de consolo e de gozo infinito, já que passarás de grandes trabalhos a um grande descanso, de muitas dores e tentações à eterna paz, da pobreza temporal que tanto amaste e à qual permaneceste sempre fiel às verdadeiras riquezas sem fim, e desta mesma morte transitória à vida perpétua, onde verás o Senhor teu Deus face-a face, a quem amastes neste mundo com tão fervoroso amor e desejo”.
Na realidade, a morte do Pobrezinho amoroso foi uma cena cheia de poesia e encanto, por que toda a sua vida havia sido um hino de caridade e gozo no Senhor.
Tomás de Celano nota expressamente que, desde sua juventude, nosso Santo sentiu a alma inundada por uma onda de inefável alegria na contemplação gozosa da criação; e se por acaso pronunciava o nome do Criador, logo aparecia embebido em tal êxtase de júbilo e de graça puríssima, que qualquer um o tomaria por um ser do outro mundo.
Lembrando-se do que disse o Espírito Santo por boca do Apóstolo: “Deus ama a quem dá com alegria”, Francisco não deixou desaparecer nem uma só vez o sorriso de seus lábios e a alegria do seu coração, nem mesmo ante provas e sacrifícios que a sua nova vocação exigia.

6. Na renúncia

Contemplemos esse jovem, cujo pai, um dos homens mais ricos de Assis – o avarento Pedro Bernardone – arrasta brutalmente pelas ruas da cidade, enchendo-o de insultos, golpeando-o sem compaixão e trancando-o na prisão familiar. “Mas, ainda ali, no meio das trevas - escreve Celano -, sente-se embriagado por uma alegria tão grande que, todo inflamado por ela, decide abandonar sua prisão e se expor aos insultos e maldições... E, com efeito, levanta-se alegre e festivo, preparado para combater em favor do Senhor”.
Pouco depois, diante do bispo Guido II, o jovem e rico Francisco se despoja decididamente, sob o olhar enfurecido de seu pai e em meio à multidão emocionada de seus co-cidadãos, de quanto possui neste mundo, até de suas próprias roupas, de tal maneira que o Pastor espiritual vê-se obrigado a envolvê-lo com seu manto. Observemos como seus olhos e seu rosto brilham de gozo, e escutemos com que ímpeto sai dos seus lábios e de seu coração um ardente canto de felicidade. Pobre, desnudo, desprezado, Francisco crê e proclama-se realmente feliz porque, a partir daquele momento pertence por completo ao seu Senhor, e exclama com lírico entusiasmo, dirigindo ao céu sua alma e seu olhar:
- Até aqui chamei de Pai a Pedro Bernardone; de agora em diante não chamarei senão a Vós, ó meu Deus, com este doce nome.
Pouco tempo depois, vemo-lo subir, coberto com uma miserável roupa, as vertentes do Subasio e internar-se na montanha, com a liberdade dos filhos de Deus, preenchendo com seus harmoniosos cantos os bosques e as selvas. Encontra ladrões ou hereges que lhe interrogam a razão de sua alegria e proclamam-no arauto do grande Rei. Lançado em uma fossa cheia de lodo e neve, sai com tranqüila serenidade e, contentíssimo com o incidente, prossegue a subida do monte, lançando aos ares um hino de louvor.
Sigamo-lo por todas as etapas de sua vida de penitente, de apóstolo, de missionário, e ficaremos admirados ao ver este homem que, precisamente nos momentos mais críticos de sua existência, nos dias de maior heroísmo, aparece mais alegre e contente que de costume.
Assim acontece, por exemplo, quando nos hospitais de Gubbio e Assis consagra-se ao cuidado e assistência dos leprosos, com delicadeza, diligência e amor de uma mãe, não obstante a profunda repugnância que sentia aos afetados por aquela horrorosa doença: Assim acontece quando, pouco depois, na praça do mercado de sua cidade natal, pede pedras como esmola para continuar a restauração da igreja de São Damião, cantando entre a multidão que o rodeia o doce refrão: “Quem me der uma pedra receberá uma recompensa, quem me der duas receberá duas recompensas e quem me der três receberá três recompensas. Ou ainda quando vai de casa em casa, vaiado por uns, insultado por outros, desprezado por muitos como um louco, até pelos garotos que vão lhe atirando pedras e barro, enquanto ele segue impávido, mendigando de porta em porta, com uma sacola na mão, recolhendo os desperdícios que formará sua apetitosa refeição.

7. Estranho fenômeno

Vemos um estranho fenômeno acontecer nele constantemente: quanto mais sofre, mais alegre está; quanto mais seu coração se encontra vazio de consolos terrenos, tanto mais os enche as alegrias do céu; quando as dores, as cruzes e os sofrimentos são mais numerosos, tanto é mais impetuosa a onda de júbilo que o arrasta. Por isso o vemos correr espontaneamente em busca de sofrimento e humilhações, com o mesmo entusiasmo com que os mundanos corre em busca das honras e dos prazeres...
Celano observa, em particular, como o Santo disciplinava algumas vezes o seu inocente corpo, flagelando-o duramente com ásperas cordas. Os três companheiros confessam, por sua parte, que o Seráfico se atormentava com tamanha mortificação da carne que, são ou doente, nunca quis ser indulgente consigo mesmo; pelo que, estando próximo de morrer, confessou haver pecado muito contra o irmão corpo.
Há escritores que olham como uma extravagância o ardente desejo de dores e humilhações de Francisco, mas basta a mais simples reflexão e o mais elementar sentido comum para justificar nosso Santo de tão grosseira acusação.
O motivo que o induzia a buscar o seu próprio desprezo não era certamente a vaidade, senão o desejo cada dia mais vivo de agradar a Deus e de imitar mais de perto a seu Filho Jesus Cristo. Queria destruir em si a obra do pecado, para que triunfasse sem obstáculo a ação da graça; queria aniquilar-se ante o Altíssimo, a fim de desaparecer Nele mais facilmente. A penitência que nasce da virtude de Jesus em Nazaré é “obediente, afável, humilde, suave, mansa, paciente, como que procede da caridade: de tal maneira que, mesmo ao afligir o corpo com a dor e o espírito com a contrição, se mantém em certo modo alegre, animado e fortalecido pela esperança de seu propósito, conservando toda doçura da afabilidade e grandeza de ânimo”.
Esta é a verdadeira causa porque o nosso Santo, que chamava de irmã a doença e que mais tarde receberá como amiga a própria morte - à qual, menos ainda que a pobreza, “ninguém vê entrar prazeroso por suas portas” - foi sempre tão jovial e festivo, até nos momentos em que a negra melancolia pareça haver ocupado seu espírito e turbado o seu coração.
Quantas vezes, pensando nos anos de sua juventude passados em meio às vaidades do mundo, e em sua pretendida ingratidão à graça divina depois de sua conversão, se lo via inundado de lágrimas! Quantas vezes, contemplando a debilidade, a mansidão, a singeleza e docilidade de seus pobres animaizinhos, ou as dores e sofrimentos de seu próximo, colocava-se a chorar como um menino! Quantas vezes, meditando os mistérios de nossa redenção, caia em lágrimas e soluços aos pés do Crucifixo!
É que, se Francisco tinha o dom do sorriso, tinha também o das lágrimas; e essas serão para o Seráfico não só sacramento que lava, senão também pérolas que adornam. Ele, que devia inaugurar entre os homens o advento de uma nova bem-aventurança, a da alegria, realizava através das lágrimas a paz prometida por Cristo a seus seguidores e degustava, em meio ao pranto os mais suaves e doces consolos. Eis aqui porque jamais renunciou às inefáveis doçuras do pranto, ainda que lhe custasse perder a vista.

8. O ideal franciscano

A vida que os pobres frades abraçavam para seguir o seráfico era em si mesma dura e penosa. A realidade do ideal franciscano, que o grande Patriarca dos pobres havia feito brilhar ante a alma singela e que havia fixado, em suas linhas fundamentais, na Regra de vida que lhes havia mandado observar - ideal de pobreza absoluta, pureza integral, obediência perfeita, humildade profunda, caridade, de penitência, zelo apostólico, e completa renúncia a todas as seduções do demônio, invejoso de nossa felicidade - exigia-lhes sacrifícios que muitas vezes beiravam o heroísmo.
Sem a paz, a concórdia, a união de ânimos, a mútua compaixão, a imolação recíproca pela santidade e pela perfeição evangélica, logo aquele gênero de vida se faria intolerável. Sem essas coisas não passaria por suas rústicas moradas a suave brisa de sua serena alegria. À falta das satisfações terrenas acrescentaria a privação das alegrias celestes.
Era necessário que o peso das austeridades fosse aliviado e adocicado pela amabilidade do trato, pela suavidade das palavras, pela serenidade do rosto, pelo sorriso dos olhos, pelo canto dos lábios e do coração, por aquela pura e cristã alegria que deveria emanar, como perfume de nobreza, de cortesia e de amor fraterno, de toda sua pessoa, bem como de suas obras e de sua vida integralmente.
Em uma página muito sugestiva de sua “legenda”, Celano descreve-nos muito bem a vida que levavam os primeiros discípulos do Seráfico na Porciúncula e em Rivotorto, com um lirismo cheio de poesia:
“Quando aqueles amáveis frades voltavam a encontrar-se juntos, sentiam-se tão cheios de contentamento, que parecia não se recordarem do que em suas correrias apostólicas haviam tido que sofrer. Durante o dia se entregavam à oração e ao trabalho manual, e à meia-noite se levantavam solícitos para rezar, com grande devoção e abundantes lágrimas e suspiros. Amavam-se uns aos outros como uma mãe ao seu amado filhinho.”
Era tão intenso o fogo da caridade que lhes parecia pouco expor seus corpos à morte, não só por amor a Cristo, mas também  pela saúde da alma e do corpo de seus irmãos. E assim, certa vez, dois deles andavam juntos quando um louco começou a atirar pedras em um deles; o outro, dando-se conta, apresentou o seu corpo aos golpes das pedras, preferindo ferir-se a ver seu irmão ferido. Era assim por causa da mútua caridade que os consumia, e em virtude da qual estavam dispostos a dar a vida um pelo outro. Estavam tão bem fundados na humildade e na caridade e haviam lançado tão profundas raízes nela, que todos reverenciavam a cada um como a seu senhor, e os que pela dignidade do ofício, ou por outro motivo, estavam em um grau mais alto que os seus companheiros, pareciam mais humildes e cuidavam de si mesmos menos que dos outros. E todos estavam sempre aptos a obedecer, qualquer que fosse o mandato, porque jamais lhes passava pelo pensamento que o superior pudesse exceder no uso da autoridade; e desde o momento em que olhavam as ordens da obediência como a expressão da vontade de Deus, era fácil e suave colocá-las em prática.
Vigiavam. Além do mais, com toda solicitude, para não se ofenderem mutuamente. E se por acaso um dizia ao outro uma palavra que gerasse perturbação, o ofensor não encontrava descanso até haver reconhecido sua culpa e lançar-se humildemente por terra, obrigando ao ofendido a por o pé sobre sua boca. E quando este se negava a fazê-lo, se o ofensor era superior ao ofendido mandava-o por obediência; em caso contrário, fá-lo-ia ser mandado pelo superior. E assim procuravam desterrar dentre si todo rancor e malícia e observar sempre a caridade, esforçando-se com todo empenho em por a cada vício a virtude contrária, prevendo e ajudando os seus esforços com a graça de nosso Senhor Jesus Cristo.
Alegravam-se continuamente no Senhor, não tendo dentro nem fora de si coisa alguma que lhes pudesse causar tristeza. E quanto mais apartados estavam do mundo, tanto mais unidos se encontravam com Deus.

9. A lição do exemplo

Francisco era para cada um de seus discípulos um modelo perfeito, exemplar esclarecido, mestre eficaz de todas as virtudes que formam o conjunto ideal da vida religiosa, das mais simples até as mais sublimes, em modo particular da bondade, misericórdia, doçura, alegria e serenidade, que caracterizavam seu espírito. Escreve Le Monnier: “Apresentou-se sempre ante seus companheiros com o rosto cheio de uma expressão angelical... fixava-os sempre com aquele olhar terno, próprio de um pai e de uma mãe, sacrificando por eles tudo quanto tinha: seu tempo, seus conselhos, e sobretudo seu coração”.
O amado Pobrezinho era muito austero consigo mesmo, mas não permitia que seus filhos se mortificassem com excessiva dureza e costumava aconselhar quer tratassem ao irmão corpo com generosa caridade, provendo suas necessidades físicas, para não lhe dar motivo de queixa ou de preguiça. É conhecido de todos o fato referido nos Fioreti de São Francisco, o chamado “Capítulo das esteiras” quando pediu a seus frades para que o entregassem todos os instrumentos de penitência que usavam para atormentar suas carnes.
São Boaventura faz referência a um episódio um tanto engraçado. Certa noite, enquanto os primeiros discípulos do Santo dormiam no pequeno casebre de Rivotorto, um deles despertou aos demais, gritando:
“Estou morrendo, estou morrendo!”
Todos se levantaram de seus pobres leitos, cheios de espanto de terror, e Francisco, colocando-se instantaneamente de pé, gritou:
“Levantem! Acendam uma luz!”
Depois que a acenderam, perguntou quem havia gritado.
“Eu, disse o aludido, Pai, estou morrendo de fome!”
Isso não era realmente muito difícil de acontecer, pois os frades jejuavam com muito rigor. Francisco fez com que preparassem do pouco que tinham e sentou-se à mesa com o faminto frade, comendo alegremente em sua companhia, para que não se avergonhasse de comer só àquelas horas, e exortando depois a todos os companheiros a que medissem as próprias forças antes de fazer penitência.
O doce Pai mostrava-se, de uma maneira particular, bom e amável com os frades que se encontravam atribulados, fracos ou doentes. Há muitos exemplos. Celano conta, por exemplo, o de um pobre frade, atormentado pela mesma tentação de desesperação, mais terrível que as da carne, que depois de haver feito tudo quanto pode por vencê-la, convenceu-se de que só Francisco poderia livrá-lo da mesma. Foi ao seu encontro chorando e, lançando-se aos seus pés, não podia pronunciar palavra, pois os soluços afogavam sua voz. O Santo com seu olhar profundamente psicológico, leu instantaneamente o interior daquela alma, estremeceu ao pensar nas angústias que deveria estar sofrendo e, envolvendo aquele seu pobre filho com um olhar de terna compaixão, mandou que o demônio deixasse de atormentar àquele pobre infeliz. Dirigiu depois ao tímido religioso palavras tão doces e carinhosas que no mesmo instante renasceu em seu espírito uma profunda paz, jamais abalada no restante de sua vida.
Certa manhã, Francisco levantou-se cedinho para acompanhar um frade doente a um vinhedo, acreditando que este se sentiria bem comendo algumas uvas em jejum. Chegando ali, sentou-se ao lado do doente e cortando um cacho, começou a comer algumas uvas, a fim de que o companheiro não se sentisse envergonhado em fazer o mesmo. O frade, entendendo o pensamento do Mestre, ficou tão impressionado com aquela delicadeza paterna que, depois de vários anos não podia falar desse acontecimento sem sentir-se comovido a ponto de derramar ternas lágrimas.
Também as Clarissas, não menos que os Menores, encontravam no suave Pobrezinho um pai terno e afetuoso. Ele as protegia, aconselhava, e animava nos sacrifícios de sua vida austera. De vez em quando as visitava, para alegrando-as com sua presença e para consolando-as com sua palavra.
Quando o Santo se deu conta de que suas forças diminuíam, compôs para estas suas filhas, que sofriam só em ver-lhe sofrer, um cântico espiritual com música, segundo se diz, preparada por ele mesmo, no qual recomendava três coisas: que fossem fiéis à santa obediência, à santa pobreza e ao santo amor; que se sustentassem discreta e suficientemente, com alegria e agradecimento ao Senhor que lhes concedia o necessário; e que encontrassem valor nas enfermidades e no serviço aos enfermos.
Para São Francisco todos os homens eram irmãos, “feitos todos à imagem de um só”, e todos redimidos pelo mesmo sangue de Cristo. Por isso ele foi o defensor mais eficaz e o cantor mais entusiasta daquela fraternidade universal - que tem seu fundamento na indestrutível comunidade de origem, de natureza e de destino - precisamente numa das épocas em que a igualdade de raça e da unidade social foram negadas e violadas pelo orgulho da riqueza, da nobreza e da ciência. É sabido como no século XIII as mais temíveis lutas de partido, e as mais ferozes vinganças populares ensangüentaram as regiões da península itálica
Apresentou-se entre os combatentes como o apóstolo da paz, levando em suas mãos o ramo de oliva; e para melhor dobrar o coração dos poderosos e tiranos, fez-se amigo, a exemplo do divino Salvador, dos pequeninos e dos oprimidos. E isto é precisamente o que explica, em grande parte, sua admirável popularidade e a prodigiosa eficácia de seu apostolado.

10. O Santo do amor

Dizem que São Francisco é o Santo do amor; do amor terno, profundo, universal. E isto é muito certo!
São conhecidas suas relações com os leprosos ou doentes do bom Deus, com os pobres do Senhor, com os descartados da sociedade.
O pobre é como outro Cristo, por isso deve ser tratado como o Filho de Deus em pessoa, desde o momento em que Ele, o divino Salvador, se fez solidário, por assim dizer, com cada um de seus queridos pobres. Francisco entendia assim e por isso oferecia a estes os cuidados mais amorosos. Mostrava-se contentíssimo quando encontrava algum; e se isso ocorria na rua, dava-lhe o melhor lugar e manifestava por ele um grande respeito e doce simpatia.
Também os doentes eram para ele objeto dos mais ternos cuidados e da mais abnegada solicitude. Tomás de Celano afirma que o Santo “fazia seus os sentimentos de todos os doentes, consolando-os com palavras cheias de doçura, quando não podia socorrê-los com as obras”; quando era possível, ajudava-os com tamanha bondade que não somente conseguia restituir-lhes a saúde do corpo; muitas vezes realizava também em suas almas uma admirável conversão. Nos Floreti conta-se que por causa de muitos e graves sofrimentos, um pobre leproso andava proferindo blasfêmias contra Deus e contra os homens, escandalizando os companheiros do Seráfico. Este aproximou-se dele e começou a desnudar-lhe, lavando e curando-o com tanta paciência e doçura, com tão amorosa delicadeza, que enquanto o enfermo ficava curado no corpo, sentia que o seu espírito ia transformando-se por completo. E São Boaventura narra que outro destes desgraçados leprosos - cujo rosto se encontrava horrivelmente desfigurado por conta de um espantoso câncer - depois de haver recorrido inutilmente à ciência, laçou-se desesperado aos pés de Francisco. O santo tratou de impedir aquela humilhação do infeliz, levantando-o e, abraçando-o fortemente; estampou em seu rosto um terno e amoroso beijo. Ao contato daqueles lábios virginais, a horrível enfermidade desapareceu...
E os pecadores? Quantos infelizes consolou, redimiu e salvou com a doçura de sua palavra, com o atrativo de seu sorriso e com as efusões de seu coração?!
Existe nos Floreti um capítulo que narra “como São Francisco converteu três ladrões e estes se tornaram frades”. São Boaventura, em particular, fala-nos da misericordiosa ternura do Santo para com as almas redimidas por Cristo e mortas na sua graça e afirma expressamente que aquele grande Apóstolo estava persuadido de que não poderia ser amigo do Salvador, se não aquecesse com o fogo da caridade aquelas almas por Ele amadas. “Santo entre os santos - observa Celano - amante dos pecadores, como seu divino Mestre, quando se encontrava em companhia destes parecia mais um entre eles”.

11. Entusiasmo popular

A suavidade de seu caráter alegre e jovial é o que nos explica o indescritível entusiasmo excitado pelo grande Apóstolo no meio dos povos aos quais visitava e evangelizava.
Os primeiros que se enamoraram dele foram seus próprios discípulos que, gozando de sua amável companhia, conheciam melhor que ninguém sua condição suave e benigna e admiravam suas prodigiosas virtudes. Não se contentavam em venera-lo como fundador e imitá-lo como Mestre, mas o amavam como pai e amigo. Celano nos fala daquele religioso simplíssimo, de tão cândida ingenuidade que acreditava ser obrigado a imitar, em tudo que fazia, o bem-aventurado Pai, “para conformar-se com ele em todas coisas”, que não queria apartar-se nem por um instante de sua companhia, seguindo-o por onde quer que fosse, sendo considerado como um símbolo do amor e da veneração que o Pobrezinho havia chegado a excitar ao seu redor. Com efeito, apenas se sabia da chegada do humilde Francisco em qualquer povoado ou cidade, tocavam-se os sinos, os fiéis e o clero davam mostra de regozijo, e o povo em massa saia para recebê-lo. O maravilhoso triunfo que um dia Jerusalém viu homenageando o nosso divino Salvador se renovava: a glória do Pobrezinho. Homens, mulheres... todos apressavam-se, pegando flores dos jardins e ramos de árvores, levando-as pela cidade e cantando alegremente: Bendito seja aquele que vem em nome do Senhor!
E quando o Santo se encontrava no meio do povo, todos queriam ouvir suas palavras, todos queriam ver o seu semblante. Uns se dirigiam à Igreja, outros corriam à praça, onde se dizia que ia pregar. Os hereges, que até então haviam recebido muita atenção, viam-se obrigados a esconder-se pois a fé renovada do povo não tolerava vê-los. Era muito difícil abrir passagem por entre aquela amontoada multidão, porque o povo se colocava diante para contemplar o Santo, que algumas vezes não podia defender sua pobre túnica, já que os fieis cortavam pedaços inteiros e levavam a casa, guardando-os como relíquias. “Era considerado abençoado, conclui um moderno biógrafo, aquele que tivesse a oportunidade de ouvir a sua voz, gozar da serenidade e viveza de seus olhos, beijar a ponta de seu vestido. Não: ninguém pode tachar-nos de exagerados ao afirmar que o Pobrezinho foi o consolo e a alegria da Itália do século XIII”.

12. O poema da natureza

“Depois de Deus, os homens; depois dos homens, a natureza. Francisco sabia muito bem a distância que separava estes três termos, mas não acreditava que existisse entre eles um abismo insuperável: em sua mente e em seu sentimento estavam tão unidos como estão na realidade e na vida”.
Eis aqui a razão porque Francisco foi um dos maiores cantores cristãos da criação durante a Idade Média. Era da raça dos poetas, como da dos cavaleiros. Sua natureza estética, delicada, nobre, aristocrática, no verdadeiro sentido grego da palavra áristos, o impulsava a amar e a cantar com gozo e entusiasmo tudo que é belo, puro e grande no universo.
Já desde menino sentia uma grande paixão pelas flores, cujo suave perfume aspirava com prazer; quando jovem, lhe causava grande impressão os grandes espetáculos da natureza, desde os mais vulgares até os mais sublimes; já feito homem e chegado ao mais alto cume da perfeição e da santidade, não mudarão suas tendências poéticas, e a criação continuará sendo sua irmã e sua amiga. “Abandonava-se com ingenuidade a todas as suas carícias, sem temer - como os monges antigos - as seduções que nela pudesse ocultar o anjo caído”. O mundo invisível seguia manifestando-se a seus olhos com singela grandeza. “Nada havia no mundo - observa Dubois - desde os anjos do céu até as rochas da terra, que não fosse objeto de seu amor e veneração. Educado por uma mãe terna, e havendo crescido em um ambiente rico de todos os dons e de todas as belezas da natureza, Francisco se elevou tão alto nos sentimentos das maravilhas da criação, que chegou a ser um dos santos que mais se distinguiram nisso.
E este seu amor a todo o criado era, o que a sua vez, o que lhe fazia amável e simpático a todas as criaturas, as quais, vendo nele o verdadeiro tipo da simplicidade, da inocência e da serena alegria, não fugiam dele como de um inimigo, mas lhe amavam, obedeciam, e se sentiam - mesmo as mais tímidas - seguras e tranqüilas em sua companhia, de tal maneira que os episódios que as vezes encontramos isolados na vida de alguns santos, foram na do nosso um contínuo e admirável tecido.
Estes fatos podem explicar-se - como observa muito bem Ozanam, o cantor dos poetas franciscanos - ou por aquela força do amor que tarde ou cedo comove e subjuga, ou porque em presença dos servos de Deus os animais não sentem aquele pavor instintivo que nossa dureza e corrupção inspiram. “Por isso, quando o Penitente de Assis, meio desfeito pelos jejuns e as vigílias, saía de sua cela para percorrer os campos da Úmbria, parece que naquele semblante fraco e espiritualizado, onde já não havia nada de terrestre, os animais não viam mais que a pegada divina, e o rodeavam para admirar e servi-lo”.
Assim é que as aves de Bevagna, do Alverno ou das lagoas de Veneza escutavam tranqüilamente suas pregações; e as lebres, coelhos e faisões corriam para se esconderem debaixo de sua túnica; e as ovelhas e cordeirinhos a abandonavam suas pastagens e o seguiam pelos campos, sob o olhar dos pastores admirados; os pombinhos e rolinhas faziam os seus ninhos junto à sua cela; os grilos formavam concertos concorrendo com ele no canto de louvor do Senhor, enquanto que o irmão falcão passava a noite junto à gruta do amado Santo, para despertar-lhe pela manhã
Mas o episódio mais nobre, e que constitui a melhor prova do que estamos tratando é a conversão do feroz lobo de Gubbio. Esta fera, ante a doçura e afabilidade do Pobrezinho, chega a tornar-se tão mansa e doméstica, que se deixa levar pacificamente pelo Taumaturgo pelas ruas da cidade, da qual pouco antes era um terror; e no meio da praça, em presença de todo o povo, coloca a sua garra sobre a mão de Francisco, como que para concluir com os cidadãos um solene pacto social.
Onde encontrar um acontecimento mais eloqüente que este para demonstrar o poder prodigioso do seráfico Pai, a cuja bondade, doçura, afabilidade, ternura e amorosa complacência nada poderia resistir, e ante quem tudo cedia sempre, sem a menor dificuldade?
Até os elementos inferiores da criação eram seus amigos e se mostravam reconhecidos e benévolos, sorrindo às suas carícias, prevenindo os seus desejos e cumprindo a sua vontade. E assim vemos que os espinhos da Porciúncula se transformam em um campo de rosas; a irmã água se converte em  vinho para devolver-lhe as forças no deserto de São Damião, ou modera o seu ruído entre os barrancos das Carceri, para não distraí-lo, enquanto ele e seus frades se encontram entregues à oração; o irmão fogo controla o seu ardor, para não atormentar demais ao doçe Santo, numa operação cirúrgica sofrida em Rieti.
“Irmão fogo - havia dito ingenuamente Francisco - eu sempre te quis bem e  vou continuar te querendo, por amor daquele que te criou. Mostra-te suave e benigno comigo, e não me queimes mais do que eu possa sofrer!...”
O irmão fogo atendeu ao rogo do Pobrezinho, e não quis atormentar a seu querido amigo.
Eis aqui como e porque o seráfico Pai amava a natureza e a todos os seres criados, e estes, por sua vez, lhe correspondiam palpitantes de amor; e eis aqui a razão porque costumava chamar todas as criaturas com o doçe nome de irmãos e irmãs, convidando-os a louvar e a engrandecer o Senhor.

13. O Canto do Irmão Sol

Este maravilhoso Canto foi composto em 1225, um ano antes de morrer, quando, havendo descido do monte Alverno - seu Tabor e seu Calvário - se trancou em uma pequena cela de varas e ramagem, mandada construir por Irmã Clara no diminuto horto de São Damião. Naquele pedaço de paraíso, o Estigmatizado poderia reviver em sua memória todas as lembranças do passado. “Aqui a oliveira a qual, livre cavaleiro, havia atado seu corcel; ali o banco de pedra, onde se sentava seu amigo, o ancião sacerdote da pobre capela em ruínas; mais adiante o esconderijo em que se havia refugiado, para escapar das iras do pai, e que guardava o misterioso Crucifixo bizantino, que o falou na hora mais solene de sua vida”.
Por sua parte, Clara e suas virgens discípulas o recreavam com seus doces cantos e com o grato perfume de suas virtudes. Repentinamente, numa manhã, numa daquelas maravilhosas manhãs úmbrias, o Pobrezinho não pode conter a alegria em seu coração e, tomado de uma embriaguez infinita, se eleva em meio aos arbustos e flores, e debaixo do azulado manto do céu e da glória do sol nascente, “lança aos ares, com uma voz clara, limpa e melodiosa, uma harmonia sinfônica , precursora de uma nova era da civilização; lança, no encanto de seu amor, sobre as férteis planícies e sobre os risonhos montes da Úmbria natal, seu canto sublime, vívido e puro”:

“Altíssimo onipotente e bom Senhor,
teus são os louvores, a glória e a honra,
e toda benção.
A ti só, Altíssimo, correspondem.
E nenhum homem é digno
de pronunciar teu nome.
Louvado sejas, meu Senhor,
por todas as tuas criaturas,
especialmente pelo irmão sol,
que faz o dia e por ele nos iluminas.
Ele é belo e radiante e, com grande esplendor
de ti, ó Altíssimo, recebe seu significado.
Louvado sejas, meu Senhor,
pela irmã lua e as estrelas;
no céu as formaste claras, preciosas e belas.
Louvado sejas, meu Senhor, pela irmã água,
a qual é muito útil, humilde, preciosa e casta.
Louvado sejas, meu Senhor, pelo irmão fogo
com o qual iluminas a noite,
e é formoso, alegre, muito robusto e forte.
Louvado sejas, meu Senhor, por nossa irmã, a mãe terra,
que nos sustenta e governa
e produz diversos frutos, flores coloridas e ervas”.

14. A estrofe do perdão

Mas o canto da alegria franciscana não havia terminado nestas últimas palavras: faltavam ainda duas estrofes, por sinal, as mais sublimes e comovedoras.
Eis aqui em que circunstâncias Francisco acrescentou a primeira.
Um dia, hospedado caritativamente no palácio episcopal, repousava num leito, enfraquecido pelas doenças, quando ouviu dizer que se instalara a discórdia entre o bispo e a autoridade suprema de sua amada Assis. Se fosse mais jovem e estivesse são, ele mesmo em pessoa desceria à praça para pacificar os ânimos com a força de sua palavra instava doente, e teve que contentar-se com o lançar mão da eficácia persuasiva do canto. Pôs-se a entoar hinos à beleza do perdão e da paz. Depois pediu que viesse um de seus companheiros e lhe disse:
- Vai até o prefeito e peça-lhe, em meu nome, que se digne vir ao palácio do Bispo, com os principais cidadãos e com quantos possa convencer que lhe acompanhem.
E enquanto aquele vai cumprir o seu mandato, Francisco chama outros dois frades, a quem dá um mandato semelhante, dessa vez dirigido ao Bispo, instruindo-lhes sobre o que deveriam fazer. Quando todos se encontravam reunidos no pátio do palácio episcopal, os dois poetas do Senhor se adiantaram, colocaram-se no meio da multidão, sobiram numa plataforma, da qual podiam ser vistos por todos, e, dando a entender que queriam falar, um deles exclamou:
- Frei Francisco compôs, durante sua enfermidade, para a glória de Deus e edificação do próximo, um cântico de louvores ao Senhor pelas criaturas que Ele criou; e pedindo-nos que vos suplicássemos escutar com muita devoção.
E começaram a cantar, com fervoroso entusiasmo, o Canto do Irmão Sol, terminando assim:

“Louvado sejas, Senhor, por aqueles que perdoam por teu amor
e sofrem enfermidades e tribulações.
Benditos os que sofrerão em paz,
porque de ti, Altíssimo, serão coroados”.

A autoridade, apenas havia terminado de ouvir a nova estrofe, pôs-se a chorar amargamente, manifestando que estava disposto a perdoar, por amor de Cristo e de seu servo Francisco, não só ao Bispo - que prometeu outro tanto - senão até “a quem houvesse dado a morte a seu mesmo irmão, ou a seu próprio filho.”
O povo de Assis saudou com gritos de júbilo a paz que voltava a reinar sobre as verdes colinas da Úmbria, e o Canto do Pobrezinho deve ter infundido por aqueles dias, em todos os corações, uma alegria santa, pois era acontecimento bastante raro e estranho um acerto amistoso entre príncipes, quando tão acirradas se encontravam as iras dos partidos opostos, com suas paixões a desbordar incontrolavelmente.

15. Irmã morte!

Frei Elias, vendo que o seráfico Pai continuava contente, mesmo encontrando-se às portas da morte, pensou que era seu dever fazer-lhe uma observação.
-Ó amadíssimo Pai, não só gosto, senão que estou profundamente edificado com esta alegria celestial que, nessa última enfermidade, sabes mostrar tu e teus companheiros; mas temo que chegue a ser causa de escândalo para o povo ouvi-los cantar continuamente. “Como - as pessoas dirão entre si - pode estar tão contente, estando à beira do sepulcro? Um santo deveria pensar na morte com mais seriedade!”
Francisco respondeu:
- Lembras, ó irmão, da visão que tive em Foligno a dois anos atrás, e na qual Deus dignou revelar o fim de minha vida e garantir-me, além do mais, o perdão de meus pecados e a felicidade do céu? Pois bem, deves saber que, até aquele dia, o pensamento da morte me infundia temor, e a lembrança de minhas culpas fazia-me derramar amargas lágrimas. Porém, depois daquela revelação, sinto que o gozo inunda minh’alma de tal maneira, que já não posso chorar; antes bem, vejo-me na doçe necessidade de estar sempre alegre: deixai-me, pois, ó irmão, gozar no Senhor, e alegrar-me em seus louvores e em minhas doenças!
Ouvindo de um dos companheiros que o assistia sobre a aproximação da hora de seu ocaso. Francisco não pôde fazer menos que se alegrar, juntamente com o Salmista divino, ao grato anúncio: Iremos à casa do Senhor! Fazendo vir à sua presença os seus fiéis amigos, Frei Anjo e Frei Leão, exortou-os a que cantassem as laudes compostas por ele e o Canto do Irmão Sol.
Depois que acabaram, o Pobrezinho, pedindo à poesia e à música suas últimas harmonias, quis dirigir à morte, vista pelos homens como inimiga, e à qual ele, ao contrário, havia chamado sempre com o doce, cortês e afetuoso nome de irmã, sua pessoal e alegre saudação:

“Louvado sejas, meu Senhor, por nossa irmã, a morte corporal
da qual nenhum homem vivente pode escapar.
Ai daqueles que morrem em pecado mortal!
Benditos aqueles que se encontram em sua santa vontade,
porque a segunda morte não lhes fará mal.
Louvai e bendizei ao meu Senhor.
E dai-lhe graças e serví-o
sempre com toda humildade”.

16. A voz de comando

Aproximando-se o tempo do Capítulo, o bem-aventurado Francisco disse a seu companheiro:
“Estou persuadido de que não merecerei o nome de Frade Menor até que não chegue ao estado que te vou descrever. Supõe tu que os frades, com grande devoção me convidem ao Capítulo, e eu, levado pela mesma, assista-o. Durante a assembléia, me obriguem a fazer uso da palavra e a predicar-lhes em público; e eu, colocando-me de pé, pregue seguindo o Espírito Santo. Suponhamos agora que, depois do sermão, eles comecem a dar vozes contra mim e a dizer: “Não queremos que tenhas autoridade sobre nós, porque não és um bom orador; és muito vulgar e sem literatura, e nos envergonharemos de ter tal superior”. E, para arrematar os males, coloquem-me para fora com grande vergonha e confusão. Pois bem: nunca serei um bom Frade Menor, se em semelhante caso não conservar a alegria que brilhava em meu semblante e fazia dar saltos ao meu coração ao ver-me honrado e venerado, porque se a honra e exaltação, tão perigosas para a alma, inundam-me de gozo, com tanta mais razão devo alegrar-me e regozijar-me em meio às ofensas, sendo seguro o crescimento do espírito!...”
Em outra ocasião, querendo descrever a imagem do Frade Menor ideal, imagem que, pelo demais, não era fruto de sua fantasia, mas reproduzia as virtudes e traços característicos de seus mais íntimos e queridos discípulos, dizia:
- “O Frade Menor ideal deve ter a fé e o amor à pobreza que possui Frei Bernardo de Quintaval, a pureza e singeleza de Frei Leão, a nobreza e cortesia de Frei Anjo, a sensatez e destreza nos negócios que possui Frei Masel”.
Tinha uma ternura e predileção especiais por estes religiosos ideais. Conta-se que certa vez, quando Francisco vivia na Porciúncula, um desses regressava de Assis, depois de recolher esmola, à hora do crespúsculo. Com o saco nas costas, vinha cantando em voz alta os louvores e magnitudes do Senhor. O Santo ouviu e, transbordando de gozo, saiu ao seu encontro, beijou-o nas costas, na parte sobre a qual levava o saco e, carregou o mesmo para casa, dizendo com viva satisfação a quantos encontravam:
“Quero que meus frades saiam e regressem com as esmolas que recolheram; alegres contentes e louvando ao bom Deus!”
Como ele tinha o coração sempre alegre só queria ver junto a si rostos alegres e de bom humor, não suportando de seus frades a tristeza, o esquivar-se e a aflição.
“Pecaste, meu irmão? Perguntou a um que aparentava estar triste e melancólico: se te dá remorso em algo da consciência, vai à tua cela e ali deixa doer em boa hora e pede perdão ao céu; mas aqui, diante de mim e dos outros frades, procura estar sempre alegre e contente, porque não convém que o servo de Deus pareça triste.
Em outra ocasião repreendeu asperamente a dois de seus religiosos porque levavam a barba comprida, descuidada e suja, sob pretexto de humildade, dizendo-lhes:
“Não se deve tornar odiosa ou ridícula, com presunçosas novidades, uma religião que Deus fez bela em suas origens”; e foi então quando o santo pronunciou aquela maldição, que ainda hoje se encontra junto ao seu Testamento, contra os que destroem na Ordem o que Deus, por meio de seu santos religiosos, edificou e não cessa de edificar.
Refere-se à tristeza como o mal babilônico, fazendo alusão à Babilônia por ele abandonada, isto é, o mundo.
“Deixai que os que pertencem ao diabo andem com a cabeça baixa, dizia; nós devemos estar sempre de festa e regozijando com o Senhor! Porque - acrescentava com fervoroso entusiasmo - acaso não somos nós, os Frades Menores, os cantores e poetas do bom Deus, destinados a levantar os corações dos homens e movê-los a uma alegria espiritual ?”
Enfim, e como conclusão de tudo que foi dito, basta notar que a estima que Francisco tinha à prática desta virtude da alegria entre os seus frades era tanta que chegou até a fazer dela um dos preceitos de sua Regra.
“Os frades evitem aparentar exteriormente tristes e sombrios, na Regra antiga se lê; como os hipócritas: antes, mostrem-se alegres no Senhor, regozijados e convenientemente amáveis”.
Nos primeiros tempos da Ordem, os franciscanos praticavam e cultivavam a alegria seráfica com um cuidado especialíssimo. Observemos os fatos e veremos que os que mais se distinguiram no exercício contínuo dessa virtude, imitando o santo Patriarca, foram os seus mais íntimos e amados discípulos. Basta citar os nomes de Frei Leão, Frei Gil ou Egidio, Frei Junípero... e teremos a demonstração mais evidente e triunfal desta verdade histórica.
Frei Leão, célebre por sua sinceridade e amor ao Pobrezinho, o amigo mais fiel deste, seu confessor, seu secretário, sua ovelhinha, ou melhor ainda, a “ovelhinha do bom Deus”, meritou passar em companhia do Mestre as horas mais sublimes e deliciosas e dele receber uma benção especialíssima: cantar com ele antes que qualquer outro, os louvores do Senhor e o hino das criaturas...
Frei Gil, em seus “Fatos notáveis”, deixou admiráveis sentenças a respeito da alegria seráfica, da que ele mesmo foi modelo. Dele contam que, no jardim do convento perto de Perugia, costumava escutar as pombas e falava familiarmente com estas. Durante as belas manhãs de primavera, era comum vê-lo passeando de cima a baixo por entre os floridos prados, beijando a vegetação e as pedras, cantando os louvores do Senhor, acompanhado - à imitação do Mestre - de dois pedaços de madeira, simulando estar tocando um violino.
São Francisco, graciosamente, afirmava sobre Frei Junípero: “Quem me dera ter uma grande selva de juníperos!” Este, com seu imperturbável bom humor havia conseguido desconcertar irados, como aquele pobre homem, a quem tinha enraivado por haver cortado a pata de um dos seus porcos para poder cozinhar e dar a um religioso que estava doente. Levado pelo espírito de humildade e santa alegria, mistura-se com as crianças, para grande admiração dos soberbos do mundo, e começa a rodopiar alegremente pelas ruas de Roma.
No campo femininoos modelos de serenidade e alegria vêm de Clara e suas irmãs - as filhas da segunda Ordem - verdadeiras discípulas de Francisco. Quanto à primogênita do seráfico, mesmo em meio às mais duras provas e terríveis austeridades, “seu semblante parecia sorridente e seu coração alegre e comunicativo”. Dessa dama forte e delicada parece que desprendia o semblante daquela luz serena e brilhante que anuncia seu nome: Clara luce clarior; e a quantos se lhe acercava, comunicava algum raio daquele serenidade, daquela graça, daquela imperturbável paz que inundava o seu espírito e o seu coração. Encontrando-se no leito de morte, Frei Reginaldo, que exortava à paciência, ouviu dela esta preciosa confissão:
“Desde que conheci, por meio de Francisco, a graça de nosso Senhor, nenhuma dor me foi penosa, nenhuma penitência grave, nenhum sofrimento do corpo mortificante”.
E entregou a sua formosa alma, assistida por Frei Junípero, “o incomparável arauto do bom Deus”, e por Frei Leão, a amada ovelhinha, enquanto as monjas, chorando de alegria, cantavam louvores ao Senhor.
Isabel da Hungria, uma das figuras mais simpáticas da Terceira Ordem Franciscana, também foi modelo de amabilidade e heroísmo. O exemplo mais palpável é o da noite em que, depois de haver perdido tudo quanto tinha, ter sido derrubada do trono, e expulsa brutalmente de seu castelo, dirige-se, com o coração transbordante de gozo, à igreja dos Frades Menores, pedindo que cantem um Te Deum de ação de graças ao Senhor pelos grandes benefícios recebidos. Durante sua breve existência, tão agitada e cheia de calamidades, a amável rainha adotou como lema o “servite Domino in laetitia” do salmista; e, à imitação do seráfico Pai, quis colocá-lo em prática de maneira perfeita. Por isso mereceu ser apresentada por São Francisco de Sales, o santo da suavidade e da doçura franciscana nos tempos modernos,  como um ideal perfeito de alegria celeste.

17. O pensamento de São Francisco

Como este homem, que se chama Francisco de Assis, que viveu numa época de grandes lutas sociais, civis e religiosas, pregando a paz e a fraternidade cristã em um século transtornado pelo ódio e pelas guerras; este homem, que não possuía nenhum dos bens da terra, riquezas, honras, legítimos gozos da vida - pois se havia desposado com a dama Pobreza -; este homem, que havia renunciado a todas as vaidades do mundo para abraçar as humilhações da cruz; que se havia sujeitado aos jugos da obediência e de uma regra severíssimas que ordenava até as ações menores de sua vida; que havia professado o Evangelho da penitência e da mortificação; este homem que se nos apresenta tão puro, tão humilde e singelo, privado de todos aqueles bens nos quais os demais homens buscam a felicidade, o bem-estar, a paz... como este homem, o seráfico Pobrezinho, pôde estar sempre tão contente, tão alegre, tão festivo e sereno, mesmo em meio às mais fortes tempestades do sofrimento e da dor?... Eis aqui como se apresenta o problema, como se expõe a pergunta: uma das primeiras causas da alegria na vida é o saber ser dono da própria vontade, triunfar em suas próprias misérias e debilidades, não sucumbir baixo o peso da cruz, ou permanecer tranqüilos e serenos na dor e na perseguição. “E agora, Frei Leão, ouve a conclusão: Sobre todas as graças e dons do Espírito Santo que Deus concede a seus eleitos, está a de vencer-se a si mesmo, voluntariamente e por amor a Cristo, padecer penas, injúrias, e desprezos... Nisso está a perfeita alegria!”
“A alegria de espírito - costumava dizer - nasce da castidade do coração e do fervor da oração”. Exortando seus frades a regozijarem-se no Senhor, repetia: “O servo de Deus não deve sossegar até possuir, interior e exteriormente, a alegria espiritual... Por que então os demônios não lhes podem fazer dano algume se vêem forçados a dizer: “Desde que o servo do Senhor tornou-se alegre na tribulação e na adversidade não podemos entrar em sua vida.” Ao contrário, quando os demônios logram fazer desaparecer, ou impedir de alguma maneira, a alegria e devoção que provêm da pureza da oração e de outras obras virtuosas, aqueles espíritos malignos saltam de gozo. Porque quando o demônio consegue ter algum poder sobre o servo de Deus, se este não aplica os meios para livrar-se dele o quanto antes por meio da oração, da contrição, da confissão e satisfação, aquele insignificante fio chegará a se converter um uma grossa corda. Agora bem, meus irmãos, esta alegria de espírito se gera através da castidade do coração e da pureza da contínua oração; e para conseguir e conservar estes dois grandes bens é necessária uma diligência especial... Só o pecado e a indiferença são capazes de apagar ou de debilitar a celeste e clara luz da alma. Quando o espírito se torna frio, conclui o nosso Santo, pouco-a-pouco vai fazendo-se infiel, e a carne e os sentidos buscam incessantemente o que agrada”.
A pureza de coração, a castidade do corpo, a inocência da alma, acompanhadas de uma piedosa e constante oração, são os mananciais da alegria franciscana.

18. A alegria dos discípulos

Frei Gil exclama, no capítulo que trata das tentações espirituais e da necessidade de combatê-las, para não perder a graça do Senhor:
“Se o homem caminhasse reta e discretamente pelo caminho de Deus, não sentiria nem cansaço nem tédio em sua viagem; mas o homem que segue os caminhos do mundo não poderá deixar de experimentar fadigas, tédio, angústias e tribulações, até o último instante da vida”.
No capítulo sobre a santa cautela espiritual, exortava:
“Se queres gozar e estar em repouso, aflige-te a ti mesmo...; se queres viver uma boa vida, mortifica-te...; se queres ganhar muito e ser rico, procura perder e ser pobre...”
E no capítulo sobre a pureza, afirma com mais claridade ainda:
“É impossível que o homem consiga alguma graça espiritual enquanto se encontre inclinado aos desejos carnais; assim, move e remove-te como queiras, não encontrarás outro remédio para poder conseguir a graça espiritual (e por conseguinte a alegria de espírito), senão avassalando todo espírito carnal... De todas as virtudes, eu louvaria com preferência a da castidade, porque só ela é perfeita em si mesma, enquanto que as outras, sem ela, não podem ser perfeitas...”
E por isso, muitas vezes, cheio de entusiasmo, Frei Gil cantava:

“Ó santa castidade,
Quão grande é tua bondade!”

O seráfico doutor São Boaventura conhecia perfeitamente o espírito do Mestre e o assimilava com todo o ardor da alma sedenta de misticismo. Depois de falar, em vários lugares, de suas obras sobre a alegria espiritual, a qual chama fundamento e coroa de todas as virtudes, e do gozo carnal, efêmero e transitório, proclama em alta voz que “sem temor de uma reverência filial e o esplendor de uma inteligência celeste, o homem não pode, de maneira alguma, experimentar a doçura da alegria espiritual e o gozo do coração”.

19. O poema da natureza

A criação era vista por São Francisco como um espelho luminoso, uma página eloqüente, um livro magnífico, um poema sublime, um evangelho vivente que fala aos homens, com harmonia e com força, das perfeições da divindade, e que deve levantá-los da terra ao céu. Em outras palavras, a criação era para ele um símbolo, uma elevação, uma orquestra.
Um símbolo: ele encontrava o invisível no que se vê e o imutável no que passa e desaparece. Adorava o divino em todas as formas, e se sentia unido a todos os seres, verdadeiros ou imaginados por sua mente.
Para o santo, a água era imagem da penitência que purifica a alma das culpas, e por isso tinha tal respeito que, quando se lavava, procurava que não caísse nem uma gota que pudesse ser pisada. O sol, a lua e as estrelas, não só lhe falavam, como ao Profeta, dos esplendores do Senhor, senão que lhe trazia ao pensamento a fonte da luz, da graça, da vida. A estabilidade e firmeza das rochas era para ele uma figura de seguro refúgio que se encontra em Deus; e quando caminhava sobre as pedras, fazia com especial cuidado, porque lhe recordava o divino Salvador, chamado pedra angular. A visão de uma flor em sua frescura matinal, ou de um ninho de inocentes passarinhos com seus biquinhos abertos numa ingênua atitude de espera, revelava-lhe a genuína graça e pureza de Deus, e a ternura infinita de seu coração. Nas rosas dos campos respirava o perfume do Lírio dos vales, cujo bálsamo odorífero e fragrante devolvia a vida aos mortos. Diante dos cordeiros, figura simbólica de Jesus, não podia conter a sua emoção. Certo dia em que um homem levava dois desses ao matadouro, atados pelas patas e pendurados nos ombros, “como uma viva imagem do Salvador cravado e pendurado na cruz”, entregou ao que os levava o capuz e o manto para resgatá-los.
A criação é para Francisco, além de um símbolo, uma elevação. Para ele, como para o Salmista, os céus contam e cantam a glória de Deus, e a terra e tudo que nela existe não fazem outra coisa senão nos dizer a alta voze - como expressa Santo Agostinho - que amemos a nosso Senhor. É um convite incessante a louvar, agradecer e engrandecer o bom Deus.
A criação era para o Pobrezinho uma espécie de orquestra, da qual se servia para cantar o seu solene canto triunfal, como o artista se serve das cordas de seu violino para expressar seus mais recônditos sentimentos.
“Irmão faisão, louvai ao Senhor” - dizia a uma dessas aves raras que um amigo lhe havia enviado - e o faisão procurava estar sempre junto a Francisco, descansando e comendo com ele, recusando outra companhia.
“Cantai os louvores do Senhor, irmã cigarra”, exclamava Francisco aos pés das oliveiras da Porciúncula. E a irmã cigarra começava a cantar até que Francisco lhe pedisse para que parasse.
“Ó irmão grilo, entoai um hino ao teu Criador”, ia repetindo pelos bosques da Porciúncula e por entre as árvores do Alverne. E passava as noites debaixo do manto azulado do céu, bordado de estrelas, numa maravilhosa batalha, ao fim da qual tinha que confessar, cheio de gozo, que havia sido vencido pelo rei dos cantores o qual, naturalmente, o fazia melhor que o Pobrezinho.

20. A criação e nós

Benditas as almas que sabem contemplar a natureza com um espírito de fé. Ante sua mente iluminada, o universo inteiro se apresenta como uma brilhante escada com a qual se eleva continuamente a Deus, porque, segundo frase do Apóstolo, “da visão das coisas terrenas são levadas à contemplação das coisas divinas”.
No fundo de seu ser, sente ressoar a cada instante a harmonia do universo. Todos os elementos da criação têm para ele uma nota melodiosa que as preenche de suavidade e gozo. De todas as criaturas do universo escapa um hino compassado que canta a bondade, o poder e a magnitude do Senhor. É o encanto do Éden com toda sua beleza original, a poesia da natureza tal como foi criada por Deus; é o espetáculo do mundo como Jesus nos ensinou a contemplar, que desejava que nos lírios do campo e nas aves do céu admirássemos a obra grandiosa da divina Providência que se renova baixo nosso olhar.
A alegria espiritual que do alto dessa visão desce a estas almas só pode ser igualada a que experimentam os filhos de Deus, que se abandonam como crianças nos braços daquele que é nosso Pai; que se oferecem, qual confiantess pequeninos, aos ternos cuidados da Igreja que é nossa Mãe; que submetem suas mentes e corações, com entusiasmo e generosidade, a todas aquelas verdades escuras e luminosas, cuja clara e misteriosa síntese forma o credo de nossa fé e o fundamento de nossas esperanças cristãs.
Dessa fé cândida brota uma flor, um formoso jasmim, na alma do Seráfico, o espírito de simplicidade, de uma simplicidade realmente infantil. A prática dessa virtude é pois, condição indispensável para estar sempre de bom humor e, por conseguinte, uma fonte de bençãos

21. Virtude desconhecida

“Muitos cristãos estão tristes porque estão divididos. E porque estão divididos? Porque não consagrarem-se inteiramente ao Senhor, senão que sempre reservam algo para si. A unidade do amor forma parte da verdadeira alegria da existência” (Dom Gai).
Isso quer dizer que a alegria é fruto natural da simplicidade, assim como a simplicidade consiste precisamente em saber dar a Deus, sem regateio nem divisões, sem queixas ou lamentos, tudo quanto Dele recebemos? Uma alma simples não busca somente a Deus em suas orações, não encontra dificuldades nessa labor, em todas as partes goza de sua presença. Despoja-se de todo interesse e egoísmo, e desse buscar a si mesma, que tanto contribuí a alimentar a vaidade e o orgulho. “A simplicidade e pureza de intenção - adverte Gibergues - consiste em propor, em tudo quanto se pensa, diz ou faz, um só e único fim: agradar a Deus ou, para melhor expressar, fazer a vontade de Deus”.
Nos tempos do Pobrezinho, não eram muito numerosas as almas que reproduziam em sua existência tão nobre ideal, se consideramos que a vida de então, especialmente nas cortes feudais, nos povoados e nas cidades republicanas, era uma vida de comodidade, de riqueza, de elegância e suntuosidade; mas que hoje especialmente a “santa simplicidade” se vê desterrada do mundo do luxo, da moda e de todo confort moderno, para dar lugar a uma vida artificial e complexa, cheia de hipocrisia e de mentiras sociais.
A pobreza, uma das virtudes fundamentais e características de sua vida, era filha da simplicidade; já que o Santo não desprezou os bens da terra, mas, tendo continuamente sua alma ocupada em Deus, devia desprezar as misérias do mundo.

22. Homem singelo

Os companheiros de infância e juventude de Francisco já louvam sua pureza e ingenuidade de menino. “E, em verdade, sempre teve alma de menino, alma pura e transparente que não conhecia a malícia e que repudiou toda falsidade; alma de pura na que se reflete a simplicidade e perfeição evangélica”.
“E, em efeito, quem amou mais que ele à simplicidade no vestir, nos alimentos, nos lugares por ele habitados, em sua maneira de falar e de tratar, igualmente com os pequenos e com os grandes?”
O Pobrezinho encontrava-se certa vez em presença do Vigário de Cristo:
- “O que desejas? Perguntou o Pontífice.
- “Santíssimo Pai não quero tão somente poder observar: “Veja, vende tudo quanto tens e dê-lo aos pobres, e vem e segue-me sem alforja nem duas túnicas, nem calçado nem alforje”.
O Papa ficou admirado com aquela simplicidade e franqueza, e depois de alguma vacilação, aprova sua Ordem e sua Regra.
Nesta mesma ocasião, estando hospedado em Roma na casa de seu amigo, o Cardeal Hugolino, saiu pouco antes do jantar para pedir esmola, regressando quando os comensais, entre os quais haviam muitos nobres e cavaleiros, já haviam sentado à mesa. O Pobrezinho, convidado a sentar-se ao lado do Cardeal, colocou sobre a mesa o que tinha recolhido, e depois de comer um pouco daquela graça de Deus, fez com que todos os presentes participassem da graça que havia recebido com grande devoção aquele mendigo de pão. O Cardeal, que até então havia permanecido em silêncio, depois de pedir para que todos se sentassem, conduziu Francisco ao seu quarto, e abraçando-o amorosamente disse
- Meu irmão, porque me envergonhastes, pois vindo à minha casa, que é a de teus fiéis, fostes pedir esmola?
O Pobrezinho soube justificar tão bem o que havia feito, que o Cardeal, grandissimamente edificado, terminou dizendo:
Meu filho, faz tudo que te pareça conveniente, pois Deus está contigo e tu estás com Ele.
Outra vez encontramos a Francisco aos pés do Papa, pedindo com a maior ingenuidade, para proveito as almas, um favor tão grande, que põe em apuros os cardeais: uma indulgência plenária, gratuita, perpétua, para todos os pecadores. Apenas havia recebido resposta favorável, agradece calorosamente ao Pontífice a graça concedida, cumprimenta profundamente comovido e se afasta de sua presença, sem outra garantia que sua palavra. O Papa chama-o, e exclama admirado:
- Onde vais assim? Que documento poderás apresentar em prova de uma graça tão extraordinária como a que acabas de obter neste momento?”
- Pai Santo - Francisco responde tranqüilamente - basta-me a vossa palavra; Jesus será o escrivão, a Santíssima Virgem será o papel e os anjos as testemunhas. Enquanto a mim, não quero mais garantia, e deixo a Deus o cuidado de manifestar ao mundo a obra que Ele fez.
Agora se compreende como um homem tão singelo poderia abandonar-se com generosidade, pureza e confiança, nos braços do Senhor, e como dessa confiança brotava, límpida e fresca, a água da mais serena e profunda alegria. Tudo o que acontecia ao seu redor, favorável ou adverso, era aceito sempre como vindo da mão de Deus, e não havia razão para estar desanimado, já que era o mesmo Pai celestial quem assim o queria ou permitia para seu maior bem.
Por isso jamais houve coisa que pudesse transtornar seriamente a alma do Seráfico e, por isso também pode conservar sempre a sua calma, serenidade, alegria, o constante sorriso de suas amorosas pupilas, o incessante canto de seus lábios trêmulos de entusiasmo, o inalterável jubilo de seu coração cheio de bondade e de amor... e isto em meio às batalhas e contrariedades da vida, às enfermidades, sofrimentos e dores do corpo, às angústias do espírito e das tentações e atrativos do mundo, em meio das ingratidões e injustiças dos homens e do abandono e provas do céu... Porque o Patriarca de Assis, como o antigo Jó, olhava ao mundo e aos sucessos dele com olhos de fé humilde, e em qualquer circunstância de sua vida gostava de repetir como aquele:
“O Senhor me havia dado e o Senhor me tomou”. Podendo acrescentar com Cristo:“Faço sempre o que satisfaz ao meu Pai, que está nos céus” ;e por isso o meu gozo é pleno.

23. A autenticidade

Ninguém repudiou mais que ele a falsidade, a hipocrisia, o farisaísmo, tendo horror de parecer exteriormente distinto do que era na realidade. Dizia francamente a seus frades:
“Quero viver nos desertos e demais lugares onde vivo, como se me encontrasse em presença de todos os homens; porque se fosse tido por santo e não levasse uma vida santa, seria hipócrita.”
E assím, não queria ser tido por mais austero e do que lhe era permitido por suas forças e desejava que todos soubessem o que comia e o modo como se vestia.
Conta-se que, encontrando se em um eremitério do Vale Reatino, Francisco comeu durante o Advento alguns alimentos temperados com banha, já que suas doenças não lhe permitiam que se alimentasse com azeite. Pois bem, pregando ao povo na festa de Natal, suas primeiras palavras foram estas:
“Vinhestéis aqui com grande devoção, crendo que iriais ver e ouvir um homem santo; pois eu confesso, diante de Deus, que durante este Advento comi alimentos temperados com banha.”
Tomás de Celano narra um episódio ainda mais claro, acontecido nos últimos dias de sua vida. Seu guardião vendo que sofria, a causa das fortissimas dores fortes e frio, resolveu aliviá-lo, ofereçendo uma pele de raposa que havia conseguido:
- Pai, estás mal do fígado e do estômago; te suplico, em nome de Deus, que deixe-me costurar esta pele no interior de tua túnica”.
Francisco não recusou porém, quis que a costura aparecesse também por fora para que todos pudessem ver o pequeno alívio que se havia permitido. “Ó homem verdadeiramente admirável - exclama seu biógrafo ao referir-se e este e outros fatos - sempre o mesmo por fora e por dentro, nas palavras e nas obras, o mesmo quando era súdito que quando era prelado!”
Certo dia -refere-se Celano- o santo ia pelo campo montado em um pobre jumento, já que, por causa de sua extrema debilidade não podia andar a pé. Um andarilho aproximando-se, perguntou se ele era o frade Francisco. Este respondeu humildemente que sim. Então aquele de poucos estudos, com a maior naturalidade, replicou vivamente:
- Pois procura ser tão bondoso como o povo crê que és, porque muitos confiam em ti...
O homem de Deus ao ouvir isto, desceu rapidamente do seu jumento, colocou-se de joelhos diante daquele homem e beijou humildemente seus pés, em prova de gratidão pelo conselho que se havia dignado dar-lhe.
Estava convencido de que era insignificante diante do Senhor, e que o bem que fazia era obra da graça divina.
Certa ocasião Frei Masel ousou Perguntá-lo:
- Por que todos te seguem, se não és bonito, nem sábio, nem nobre?”
- Por que o Altíssimo não encontrou entre os pecadores nenhum mais vil e insuficiente que eu. Por isso escolheu-me para realizar a grande obra que pensa fazer, para confundir a nobreza, o poder e a fortaleza do mundo. E que seja visto que todo bem procede Dele e não da criatura, e que ninguém pode glorificar-se em sua presença”.
Costumava dizer estas admiráveis palavras: “Se Deus houvesse concedido a um bandido ou um ladrão as graças que lhe havia recebido, aquele malfeitor seria mais bondoso e agradecido que ele”.
Quem não conhece a cena descrita no capítulo IX dos Fioreti, ou seja, o curioso diálogo entre São Francisco e Frei Leão certo dia em que, encontrando-se num luga onde não havia breviário para rezar o Ofício, o Mestre exortava ao discípulo predileto a louvar juntamente com ele ao Senhor, repetindo, a todas as perguntas, com esta resposta afirmativa: “Miserável Francisco, pelos muitos pecados que cometestes nesse mindo, serás digno do inferno”? Ou, quem não recorda o episódio ainda mais estranho, narrado nesse mesmo livro, quando o filho de Pedro Bernardone obrigou a seu primogênito espiritual, Bernardo de Quintabal, e que lhe castigasse com um juízo temerário, formado contra ele, “colocando um pé sobre a garganta e outro sobre a boca”, e dizendo-lhe duras palavras de humilação e afronta: “Agüenta, vilão, filho de Pedro Bernardone, de onde vem tanta soberba, sendo uma criatura tão insignificante?” São Boaventura, aludindo a este fato, que nenhum orgulhoso do século XX vai querer acreditar, observa que o seráfico, com a mente e o semblante reboante de gozo, “abençoava contentissimo, em sinal de gratidão, ao irmão que soube dizer tão bem a verdade”.

24. Pobreza, virtude eminentemente franciscana

A pobreza é uma das virtudes mais características do espírito de São Francisco: a fonte oculta e profunda da qual brotam todas as outras virtudes.
Na moral menorítica, a virtude franciscana por antonomásia é o amor à pobreza, enquanto que o pecado franciscano por excelência é o da propriedade.
É a história alegórica de umas místicas núpcias de São Francisco e seus companheiros com a donaa do seu coração, encontrada por eles em meio ao maior abandono e desprezo, no cume de uma montanha, e levada a suas míseras moradas, onde inunda de celestiais delícias a estes pobres frades.
A seráfica alegria daqueles apaixonados da dama Pobreza, chega a seu ápice com o convite de casamento que celebram em sua honra na Porciúncula. É uma página deliciosa, que nunca poderá ser lida sem que não se sinta uma inefável emoção. Havendo servido a comida, suplicam que comparta dela em sua companhia. E ela responde:
- Mostra-me primeiro o vosso oratório, o capítulo, o claustro, o refeitório, a cozinha, o dormitório, as salas e as ricas cadeiras. Não vejo nada disso, mas observo que estais contentes e satisfeitos, e cheios de consolo e de alegria como se tivessem tudo isto à vossa disposição...
E foram ao refeitório, e a dama Pobreza lavou as mãos; mas não havia toalha para enxugá-las, tendo que servir-se da túnica de um frade...; todo o aparelho de jantar e os manjares consistia em pão e água, sem vinho, nem sal, nem verduras. A dama pobreza, cansada da viagem, quis descansar um pouco, mas não havia outro travesseiro que uma pedra. E logo manifestou desejo de visitar o claustro, levaram-na ao mais alto de um monte, do qual se podia avistar toda a região, assegurando-lhe de que aquele era o convento... Então a dama Pobreza mandou que sentassem todos ao seu redor e proferiu-lhes palavras de vida, animando-os à guarda de tão grande tesouro...
Esta é a mais perfeita, absoluta e radical pobreza, à que Francisco teve a honra de tomar por esposa desde o dia em que o entregou a seu pai tudo, até a roupa que estava vestido, acreditando ser “feliz –diz Bossuet- com não possuir na terra outro bem que Deus, com não receber absolutamente nada por amor a Ele”.
Aquele foi o dia em que o Pobrezinho pôde realizar seu místico sonho, saciar sua sede de despojamento absoluto, dá sua mão à dama que ele tanto cortejava, cumprir os votos e promessas que havia feito em Roma, quando depois de prostrar-se ante a tumba daqueles que foram pobres em modo tão sublime, os apóstolos Pedro e Paulo, que foi visto sentado na escadaria do maior templo da cristandade, vestido com os mendigos e esperando o pão da caridade da boa vontade dos que por ali passavam...
Desde aquele dia Francisco, que sempre havia tido secretas simpatias por seus irmãos, os pobres, torna-se o seu mais afetuoso e desinteressado amigo, rodeia-se de voluntários, e ama a pobreza com um amor profundo, chegando a chorar de “santa inveja” ao encontrar-se com um pobre mais miserável que ele.
Como ele mesmo afirma em seu Testamento, contentava-se em possuir uma única túnica, feita de lã, remendada por dentro e por fora, com uma corda e com os panos menores e não queria ter mais até sua morte. A cela em que vivia, e que não queria que fosse chamada sua, deveria ser uma mísera cela de ramos e barro, quando não era alguma gruta natural aberta entre as rochas e barrancos. Seu leito era uma miserável estrebaria ou a terra desnuda, e um tronco ou pedra era o seu travesseiro. E como nos utensílios, também nos alimentos queria ser sempre extremamente pobre.
Ninguém será capaz de retratar ao vivo o profundo desprezo que sentia em relação ao dinheiro. Não queria tocar, olhar ou falar dele: o odiava, sentia aversão. Um dia, peregrinando pelos arredores de Bari com um companheiro, encontraram no caminho uma bolsa cheia de moedas. Seu companheiro queria recolhê-la para poder dar o dinheiro aos pobres. Francisco se opôs, mesmo sendo para este fim; mas ante a insistência daquele, voltou atrás para pegar a bolsa. Santo Deus! Esta se havia convertido em uma serpente! A lição não poderia ser mais eloqüente para este frade!

25. Felizes os pobres

Um dia, conta-se nos Fioreti, o Pobrezinho viajava com frei Masel, quando sentiram-se atormentados pela fome e começaram a pedir esmola, segundo seu costume. Aconteceu que francisco, de aspecto fraco e de corpo pequeno e desprezível, não pôde recolher mais que algumas migalhas de pão, enquanto que Frei Masel, que “era alto e formoso de corpo, recolheu muitos pedaços e até, pães inteiros e frescos”. Colocaram tudo aquilo sobre uma pedra branca, junto a uma fonte ďáguas límpidas, debaixo dos raios de um magnífico sol de primavera. Francisco, admirado pela abundancia do banquete exclamou:
- Ó, Frei Masel, não somos dignos de tão grande tesouro!
E como repetia muitas vezes estas mesmas palavras, Frei Masel respondeu-lhe:
- Pai, como podes chamar de tesouro a tanta pobreza, na qual até as coisas mais necessárias nos faltam? Aqui não há toalha, nem casa, nem mesa, nem criados, nem serventes.
São Francisco contesta:
- Isso é precisamente o que eu chamo e tenho por tão grande tesouro; porque aqui não há nenhuma coisa preparada pela indústria humana, senão que tudo foi preparado pela divina Providência: o pão, a mesa de pedra, tão formosa; e a fonte, tão rica e cristalina. Por isso quero que peçamos a Deus, para que nos faça amar o tesouro da santa pobreza, tão nobre que tem por servidor ao mesmo Deus...
Em resumo, basta contemplar de novo ao Santo na cela de Rivotorto, ou na solidão do Trasimeno, ou entre os barrancos do Alvernia, e todos aqueles lugares onde não tinha nem um pobre colchão de palhas para deitar ou um travesseiro em que apoiar a cabeça ou quatro paredes com as quais pudesse proteger-se do frio, e onde muitas vezes devia contentar-se durante dias, com um pouco de pão e água; olhá-lo outra vez em Santa Maria dos Anjos, estendido no chão, nu sobre a desnuda terra, e esperando sorridente a irmã morte... para convencer-se praticamente de que a pobreza era para ele uma fonte fecunda de paz e de benção.

26. O crucificado do Alvernia

Francisco é conhecido como o crucificado do Alvernia. Desde o primeiro momento de sua conversão ao ideal cristão até o último instante de sua vida pobre e mortificada, pôde exclamar como Paulo de Tarso: “Minha vida está crucificada com Cristo e em Deus”, portanto: “Em nada posso vangloriar-me senão na loucura e sublimidade da cruz!
Pode-se dizer que ele teve a honra de restaurar, na Idade Média, o verdadeiro conceito de vida cristã. Antes dele os homens preferiam deleitarem-se na contemplação do Cristo triunfante. É o modelo de imagem do juiz, soberano e taumaturgo divino, que tem seu trono sobre a entrada das basílicas e catedrais.
Com o serafim de Assis, Jesus Cristo crucificado volta a descer à terra; São Francisco prefere a vida oculta e humilde do Salvador à sua vida radiante e gloriosa. É mais que o companheiro do Cenáculo e do Tabor, o discípulo de Belém, de Nazaré e do Calvário. Se percebe que durante toda sua vida, esteve atormentado pelo desejo daquele batismo de Sangue, cuja hora sublime, esperava impaciente.
Nada mais, nada menos que durante três vezes, São Francisco atravessou as fronteiras dos povos cristãos, e lançou-se animadamente às nações bárbaras e infieis em busca do martírio, e se lamentava amargamente de não haver sido digno de derramar até a última gota de seu sangue generoso, e de não haver podido sacrificar-se por Aquele que se sacrificou por nós. Por isso investia terrivelmente contra seu pobre corpo, chegando a atormentá-lo tanto com fome e sede, com disciplinas e vigílias, e com toda classe de penitências, que antes de morrer viu-se obrigado a pedir-lhe perdão pelos maus tratos aos quais o submetia.
Certo dia, estando no Alvernia, a montanha gloriosa e esplêndida de suas orações e solidão, pouco depois da Exaltação da Santa Cruz, sentiu-se invadido por um grande desejo de sofrer. Ajoelhou-se sobre uma pedra, e levantando os braços ao céu, voltou o rosto ao oriente, e fez a Deus esta oração:
- Ó meu Senhor Jesus Cristo, te suplico que me conceda duas graças antes de morrer: a de provar em minha alma e em meu corpo, tanto quanto seja possível a uma criatura humana, as dores que tu, doce Senhor, experimentaste na hora de tua paixão; e a de sentir em meu coração um pouco daquele amor, do qual tu, Filho de Deus, ardias quando morrestes por nós na cruz”.
A história nos faz saber quanto generosamente foi atendida esta oração do Santo.
Era uma fria noite de outono. Enquanto os ventos dormiam nas profundezas dos barrancos, os passarinhos silenciavam, as flores aguardavam a aurora para saudar de novo a seu doce amigo Francisco, o cume do Monte aparece envolto em chamas, com grande susto para os vizinhos e para os que viviam mais distante. Que estava acontecendo?... Um serafim descido do céu com seis asas inflamadas e resplandecentes, se aproximou do Pobrezinho, até este poder ver claramente a imagem crucificada naquele serafim. Suas asas estavam dispostas de modo que duas se estendiam sobre a cabeça, duas se despregavam para voar e as outras duas cobriam todo o corpo. Ante esta maravilhosa aparição, Francisco sentiu-se ao mesmo tempo cheio de alegria e de dor. Seu espírito se encontrava embriagado de jubilo, pois Cristo se lhe mostrava com um aspecto sumamente amável, olhando-o com indescritível ternura; mais, por outra parte, vendo-lhe como crucificado na cruz, sua alma experimentava uma profunda compaixão. O corpo do seráfico Pai encontrava-se possuído de um leve tremor, enquanto que daquele Crucifixo alado chegavam a ele palavras que jamais quis revelar a alguem. A visão desapareceu ; e nas mãos, pés e no costado do Santo ficaram gravadas as marcas dolorosas e sangrentas das Chagas. As Chagas! Última estrofe desse hino de luz e de amor, que se chama São Francisco de Assis!...


27. O enigma da dor

Pode ser que não se entenda o mistério do sofrimento, como acontece aos homens carnais; pode ser até que ele seja desprezado, como o fazem os filósofos estóicos. Mas é impossível negá-lo: quem o explica no sentido evangélico, colocará a base mais sólida do verdadeiro misticismo... A religião de Cristo, a essência do cristianismo, a síntese do evangelho, está resumida nessa frase: “Se algum de vós quer seguir-me, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me”. É necessário unir-se a Cristo como fundamento da nova vida inaugurada por ele sobre a terra; mas esta união deve consistir, antes de tudo, na íntima participação de suas dores, de suas lutas e de seus sofrimentos.
Assim foi como Francisco entendeu o mistério da dor cristã, e por isso não se contentava com rezar e meditar, senão que se esforçava por sofrer e padecer, para completar, em certo modo, as dores e padecimentos do Filho de Deus, merecendo por ele um grande privilégio que é como que o “último selo” de sua santidade.
Dessa maneira, pôde conseguir também para si mesmo a bem-aventurança prometida por Jesus Cristo no Evangelho e que ele, o santo Poeta, anunciou aos outros em seu Cântico do Irmão Sol:

“Benditos os que sofrerão em paz,
pois por ti, Altíssimo, serão coroados!”

Com este verso, divinamente suave, nos repete as palavras da filosofia cristã que divinizava a dor e, como Jesus, nos faz chorar de pura alegria.
Porque a religião de Cristo, sua doutrina e sua graça, tem a prodigiosa virtude de obrar na dor uma maravilhosa metamorfose, uma transformação gloriosa. Nossas lágrimas, aos pés do Crucifixo, transformam-se em pérolas, nossos sofrimentos em alegrias, os gritos de desesperação em cantos de esperança.
Ninguém melhor que o Estigmatizado do Alverno constitui a prova conclusiva e triunfal desta verdade consoladora. Sabemos que sua penitência esteve cheia de doçura e de suavidade, e que os sofrimentos eram para ele motivo de grande consolo e de inalterável paz. Quanto mais se exercitava no sacrifício, mais facilmente conseguia vencer o egoísmo; quanto mais esquecia de si mesmo, mais se fazia dono de sua vontade e de seu coração; quanto mais sofria, se humilhava e fazia-se pequeno, e quanto mais desprezado, mais contente mostrava-se.
Sabemos que precisamente quando seus pés, mãos e costelas se encontravam transpassados pelas chagas, que tantas dores causavam, quanto mais sofria pelas doenças dos olhos e do estômago, foi quando entoou seus cantos ao céu e à terra, aparecendo, evidentemente, como um modelo ideal de alegria na dor.
Por que, com efeito, desde o dia em que recebeu sobre o Alverno o misterioso abraço de Cristo, sua vida sofreu uma profunda transformação: Francisco era outro homem, ou melhor dizendo, já não parecia um homem da terra, senão um serafim do céu.


28. A verdadeira filosofia

Devemos reconhecer que Francisco foi um verdadeiro filósofo e que, durante sua vida, portou-se como tal. Dado que a dor é inevitável enquanto vivemos; dado que o sofrimento é a herança de todos os filhos de Adão, e a cruz sagrada é necessário uniforme de todos os discípulos de Cristo; e dado que esta cruz, levada com resignação e alegria, não só é mais suave e radiante, senão que se converte em um manancial de méritos nessa vida e de prêmio na outra, o Pobrezinho fez bem e, abraçando-a com paciência resignada e tranqüila e buscando-a com ardor, carregou-a com alegre intrepidez.

“Tão grande é o bem que espero,
que nas penas me divirto”.

Este refrão favorito, que dizem que costumava cantar pelos caminhos da Úmbria e do Casentino e pelas praças dos burgos e cidades da Itália, nos indica o segredo de sua constância na alegria em meio às sua lágrimas e dores. Fornece-nos um dado precioso para solucionar este misterioso problema que se chama “a cruz”, e nos dá a todos e a cada um de nós uma magnífica e prática lição.
A dor é antiga no mundo, pois logo depois que o homem pecou, foi desterrado do paraíso da felicidade, e um querubim com uma espada de fogo lhe proibía a entrada e o acesso à árvore da vida. O castigo não poderia ser mais completo, pois nele entram o trabalho forçado, o terror, as humilhações, debilidade, misérias, concupiscência, lutas, guerras e morte. Mesmo depois dos prodígios da redenção, as provas da vida conservam tal caráter de dureza e severidade, que podem servir de crisol de nossa moral, fazendo que seja mais abundante a fonte de nossos méritos. Apenas nascidos, saudamos a esta pobre existência com gemidos.
O progresso não pode nem pôde desterrar da terra a dor, nem transformar o nosso globo, banhado de água amarga em suas duas terças partes e coberto quase todo o resto de espinhos e de abrolhos, em um paraíso de felicidade.
E então? Pois bem, façamos da necessidade virtude; aceitemos de boa vontade os sofrimentos quotidianos, como oriundos da mão de Deus, como meio de expiação de nossos pecados, de redenção de nossos irmãos, de santificação de nossas almas.
Só assim poderemos, também nós, sorrir em meio às lágrimas, gozar em meio às dores, cantar serenamente, como o amável Francisco de Assis, entre o bramar da tempestade, o doce canto da alegria cristã.

29. Íntima alegria

Diz o autor da Imitação de Cristo: “Tenha boa consciência e terá sempre alegria”. E explica este pensamento com aquele outro: “Se existe alegria no mundo, os portadores serão os puros de coração”. A Pureza de coração é uma das bem-aventuranças do Evangelho!
Não há felicidade maior neste mundo, segundo muitos confessam, que aquela cujo segredo o cristão encontra numa pureza inteira e perfeita.
“As satisfações que produz a pratica dessa virtude - observa um notável pedagogo - são verdadeiramente inefáveis; é preciso provê-las para depois compreendê-las. É certo que o gozo é interior, mas se manifesta também no exterior com sinais característicos: uma alegria pura, plena, exuberante, impregnada de doçura, bondade e caridade; com o bom humor, a caridade e o sorriso.”
É certo que também em lábios libertinos aparece, de vez em quando, o sorriso; mas esse sorriso é quase sempre forçado, ou melhor, é um sorriso malicioso, gozador ou melancólico, porque procede de uma alma em guerra com Deus e consigo mesma, desgarrada pelo aborrecimento e pelo remorso. Não pensem que nos irão enganar com sua aparência de felicidade externa e ruidosa porque sabemos muito bem que a ferida está alojada lá dentro, derramando sangue em seu coração. Conhecemos perfeitamente os estragos de suas lutas, seu desespero, seu imenso vazio e aqueles instantes de profunda tristeza em que a alma cai sobre si mesma com todo o seu peso. Os suspiros que às vezes escapam de seu peito. são provas dessa verdade, como também o são as lágrimas involuntárias que caem de seus olhos, e os remorsos que despertam em certas horas de tristeza.
Nenhum amante deste mundo pode gozar, nem um só instante, a verdadeira e íntima alegria! Diferente é o homem casto. Com sua inteligência inundada de suave luz espiritual, já que a fumaça do prazer não conseguiu sufocá-la; com seu coração cheio de bons afetos, pois o germe do vício não conseguiu corrompê-lo; com sua vontade equilibrada no exercício da virtude, pois nenhuma vileza foi capaz de debilitá-la; com todo seu corpo são e robusto, sente em si mesmo a benção de viver. Vive de fé, esperança e amor. Conhece através do brilho de sua pureza, que é amigo dos santos, irmão de Cristo, filho de Deus, e assim permanece tranqüilo e sereno nas alturas luminosas de suas virtudes, ainda que aos seus pés, lá no fundo do vale, soem os ventos e o raio estale violento, e desencadeando furiosa tempestade.
Assim se explica como São Francisco, humilde e casto, pôde estar sempre alegre e contente em meio de todas as provas da vida, e se sentia tanto mais feliz e bendito, quanto maior era a violência que se fazia a si mesmo para permanecer em seu ideal, até o ponto de ver-se obrigado a expressar, com o hino de louvores que continuamente dirigia ao Senhor, a harmonia que brotava de seu coração.
O efeito dessa serena alegria na alma do seráfico e, ao mesmo tempo, meio eficaz ao qual costumava recorrer para conservar a pureza de coração, era o espírito de vigilância, de oração e o exercício das práticas de piedade. Porque é do conhecimento de todos que a oração, elevando a nossa mente e o nosso coração a Deus, fonte de toda luz e calor, estende um céu de alegria sobre todo o nosso ser, e mantém em nosso espírito a paz e a serenidade.

30. Vigiai e orai

Foi o mestre divino quem disse e impôs a todos como um mandato: “Vigiai e orai, para não cairdes em tentação”.
E eis aqui como Francisco, longe de confiar em suas próprias forças, evita com cuidado toda “excessiva” familiaridade com mulheres, único perigo que ainda poderia restar para a virtude de um homem que se auto-privara de todos os gozos da vida e que havia reduzido seu pobre corpo ao estado de um esqueleto ambulante. Afirmava: “Essas familiaridades são um doce veneno, veneno e mel que podem fazer cair até os santos!” E por isso, nos assegura Tomás de Celano, que quando falava com mulheres não fixava o olhar em seus rostos, o que nos faz crer que contribuiu para que ele pudesse confessar ingenuamente a um de seus companheiros que, com exceção das duas irmãs - sem dúvida, Santa Clara e Santa Inês, ou a piedosa dama romana Jacoba de Settesoli - lhe haveria sido impossível reconhecer a nenhuma outra mulher pelas características do semblante. São Boaventura tem a mesma opinião. Ao falar do rigor com que Francisco guardava os sentidos, afirma que “estando convencido de que a castidade é uma flor delicada que um leve sopro pode danar, recomendava aos seus frades a maior vigilância possível sobre os sentidos, a imaginação, as relações com o sexo oposto, sendo o primeiro a dar-lhes o exemplo.”
Levava ao heroísmo esta vigilância sobre si mesmo. Podem-os chegar a esta conclusão a partir do que dizem os mais acreditados biógrafos, que contam suas prolongadas vigílias, seus rigorosíssimos jejuns, suas incríveis abstinências e contínuas mortificações. São Boaventura conta que, já nos primeiros anos de sua conversão, Francisco jogou-se em uma fossa cheia de gelo para conter o inimigo doméstico e conservar intacto o vestido de seu pudor do fogo do prazer; “porque - como costumava dizer – parecia-lhe muito mais tolerável suportar um intenso frio no corpo, que sentir o mais mínimo ardor de luxúria no espírito.”
Bebendo de Tomás de Celano, São Boaventura continua narrando-nos como em uma noite de inverno, encontrando-se no deserto de Sarteano, e não sabendo como livrar-se de uma tentação contra a castidade, Francisco lançou-se desnudo na neve, rindo-se do espírito impuro com esta curiosa tática.

31. A oração do seráfico

Mas se estes eram os meios extraordinários e heróicos de que se valia para sair vencedor nas lutas generosas em prol da virtude, Francisco não esquecia que a oração contínua, confiada e ardente, é indispensável não só para obter energia espiritual para combater e vencer as sublimes batalhas da vida cristã, mas também para encontrar ali o segredo da paz e da serenidade em meio a essas batalhas. E não se enganava o grande místico de Assis: as doutrinas dos Padres da Igreja a este propósito são unânimes. “Se algum de vós está triste, faça oração”, dizia o apóstolo Tiago. O Crisóstomo chama a oração “refúgio de toda ansiedade, mãe da alegria, fonte de toda benção”.
Sendo assim, qual não seria a paz que Francisco obtinha da oração, se esta se encontrava sempre em seus lábios e ardia no tabernáculo de seu coração, como uma chama inextinguível? Na verdade, o Pobrezinho não cessou de orar durante toda a sua vida como nos manda o Evangelho. Tomás de Celano chega a dizer que são Francisco, mais que um homem de oração, era uma oração feita homem.
O seráfico Pai, fazia oração em público, no templo e em sua cela, no alto dos montes e no fundo das cavernas, sempre e em todas as partes.
Encontrava na oração as forças necessárias para poder colocar em prática seus grandes ideais de sacrifício e de apostolado; por isso, buscava com freqüência a solidão e o silêncio. “Sabia guerrear com os homens para ganhá-los à fé; também procurava retirar-se, para ir, qual avezinha terna, fabricar seu ninho na montanha e, encontrando lugar onde esconder-se, fazia de seu coração seu templo e sua cela. Fazia o possível por passar dias e noites arrebatado no fervor de suas orações, sem permitir que nenhum de seus frades se aproximassem dele para distraí-lo. E quando o Senhor lhe visitava com graças singulares, ajoelhado como estava, no chão de uma gruta, no piso de uma capela, ou sobre a rocha de um monte, costumava elevar seu olhar e, estendendo os braços em cruz, voltava-se ao oriente exclamando:
- Ó meu Deus! Enviaste este consolo e doçura a mim, indigno e miserável pecador; te devolvo de novo, para que o guarde para mim.
Suas orações não eram tristes e desconsoladas, mas alegres e confortantes; eram fruto do amor apaixonado à humanidade de Cristo e à misericordiosa bondade de Maria. Se nelas se dirige alguma vez a Deus, considerando-o como Senhor, juiz e Pai, o objeto habitual das mesmas e preferentemente Jesus e Maria. O culto que tributa ao Filho de Deus e à Virgem, sua mãe, é a mais bela manifestação de sua piedade.

32. O poema de Natal

O Cavaleiro de Assis foi o primeiro a introduzir - ao menos no ocidente - o bonito e simpático costume de representar o presépio do Nascimento.
De sua peregrinação à Palestina, onde teve o consolo de visitar os lugares santificados pela presença de Jesus e venerar a terra tocada por seus divinos pés, trouxe consigo uma lembrança muito viva e uma ternura maior aos mistérios de nossa redenção.
De volta a Itália, quis festejar, no mês de dezembro de 1223, sobre os montes de Greccio, no vale Reatino, a alegre solenidade da paz cristã, de uma maneira que até então ninguém havia idealizado entre nós. Fez com que colocassem no meio da selva, em uma gruta aberta na rocha, um presépio cheio de feno, sem que faltasse o asno e o boi, como em Belém. Uma imensa multidão veio ver, portando velas acesas. Celano nos conta que “Greccio foi convertida em uma nova Belém: do bosque iluminado ecoavam vozes harmoniosas, e as rochas respondiam aos cantos da multidão”.
A tradição assegura que houve um momento em que João Vellita, dono do bosque, acreditava ter visto um menino de verdade que, deitado no presépio, dormia tranqüilamente. Frei Francisco aproximou-se, colocou-o amorosamente nos braços e o divino Menino, despertando-se, acariciou com suas mãozinhas as barbudas bochechas e a rude túnica do Pobrezinho. Depois, cantando o evangelho, vestido de diácono, “suspirando profundamente, oprimido pela grandeza de sua piedade e inundado de um gozo inefável”, Francisco aproximou-se do presépio. Dirigiu-se logo ao público, pronunciando um discurso cheio de entusiasmo e de amor; e sempre que nomeava ao Menino de Belém ou pronunciava o Nome de Jesus “roçava os lábios com a língua, como que para provar toda a doçura e suavidade daquela palavra”.
Na festa de Natal não fazia jejum nem abstinência, ainda que caísse em uma sexta-feira. Desejou que nestas circunstâncias os pobres fossem alimentados abundantemente pelos ricos, e que em memória da honra que tiveram o boi e o asno, aquecendo com seu alimento os membros do recém-nascido, se desse a aqueles felizes animais um alimento mais abundante e escolhido. Ainda mais: dizia que, se pudesse falar com o imperador, haveria suplicado que nesse dia fizesse distribuir aos irmãos passarinhos, e especialmente aos seus amados irmãos pássaros, grandes quantidades de trigo, para que assim até as criaturas inferiores se associassem ao júbilo de todos os cristãos.

33. No calvário franciscano

Encontrando-o em certa ocasião, na selva da Porciúncula, entre lágrimas e soluços, um camponês perguntou pela causa de seu penar:
Choro - respondeu - a Paixão de nosso Senhor!
E foi tão grande e tão viva a expressão de sua dor, que o bom homem não pôde resistir ao íntimo sentimento despertado em sua alma, começando a chorar e a soluçar com o Santo.
Seus mais íntimos discípulos não ignoravam sua predileção pelo símbolo mais augusto de nossa redenção: Frei Silvestre viu uma cruz luminosa que saía da boca de São Francisco, que ía crescendo tanto que seus bracos abarcavam toda a terra; Frei Pacífico havia observado como duas espadas, em forma de cruz, brilhavam sobre o rosto do Mestre. Mais tarde, Frei Monaldo o contemplará com os braços abertos em forma de cruz, abençoando os religiosos enquanto escutavam a pregação de Santo Antônio de Pádua.
Este amor a Jesus crucificado foi o que levou o Pobrezinho ao Alverno. Mas se esta gloriosa montanha foi o Calvário de sua crucificação foi também o Tabor de sua transfiguração. A doçura, os consolos, os gozos de seus êxtases sobre aquele “monte sagrado, aquele monte angélico”, como se refere a ele o próprio seráfico Pai, não foram menores que seu martírio, antes ainda, aquelas rochas foram o teatro de suas alegrias porque foram o campo mais prodigioso e fecundo de suas dores.

34. Êxtase eucarístico

Durante sua juventude, impulsionado pela devoção à santa Eucaristia, começou a restaurar as capelas em ruínas de Assis e seus arredores. Por esta devoção visita as igrejas mais pobres e abandonadas, limpando-as com suas mãos, e depois envia seus frades por diferentes províncias, levando aos lugares necessitados cálices, âmbulas e máquinas para fabricar hóstias. Escolhe a França como campo de seu apostolado, porque esta nação se distinguia pela devoção à divina Eucaristia, e escreve uma carta a todos os sacerdotes, recomendando-lhes o culto de Jesus nos Sacramentos. Este mesmo respeito ao Tabernáculo, unido ao sentimento de sua profunda humildade, fez com que Francisco não consentisse ser ordenado sacerdote, preferindo ficar como simples diácono. Tinha tamanha estima pelos ministros do Senhor, por causa da sublime dignidade que ostentam, que se tivesse encontrado, juntos, um santo descido do céu e um pobre sacerdote, cumprimentaria a este antes que ao santo, inclinando-se com profundo respeito e beijando-lhe as mãos com muita devoção.
“O amor ao sacratíssimo Corpo do Senhor incendeia e abrasa todas as entranhas de Francisco. Considerava uma grande falta de respeito não ouvir diariamente ao menos uma missa. Comungava freqüentemente e com tamanha devoção, que edificava os que o viam, arrastando-os a fazer o mesmo”. Realmente, o culto do Corpus Christi, que teve uma parte predominante no desenvolvimento do pensamento religioso de Francisco, “foi em certo modo a alma de sua piedade”. Nutria pelo sacramento da Eucaristia “um culto tão impregnado de efusões indescritíveis e de doces lágrimas, que ajudou uma das mais nobres almas da humanidade a suportar o cansaço e o calor de cada dia”.
É certamente nessas preces aos pés do Tabernáculo, nessa assídua e devota assistência ao Santo Sacrifício, nessa íntima união com o corpo, sangue, alma e divindade de seu Senhor Jesus Cristo, que encontrava não somente a força e o valor necessários para vencer as tentações e trabalhos de uma vida de renúncia, de abnegação e de sacrifício, senão também aquela serena alegria que embargava e arrebatava constantemente seu ânimo. Se amar a Jesus “é doce paraíso”, que será, para quem tem fé, possuí-lo, não só pelo amor, mas na vivente realidade de sua pessoa divina e humana, que se dá a cada um de nós no mistério eucarístico?

35. A mais sublime devoção

O que dizer do culto de São Francisco a Maria Imaculada? Não há nada mais gracioso e amável, nada mais singelo e sublime, nada mais gratificante e arrebatador, que aquela ternura, do mais amante entre os filhos, à mais doce e bondosa das mães.
Cantava-lhe hinos e louvores, suplicava com singular fervor, oferecia o perfume de uma ternura, de um calor e de uma fé admiráveis. Proclamou-a padroeira de sua Ordem e encomendava a ela todos os seus filhos, para que debaixo de seu bendito manto, lhes desse calor e proteção.
Se a Virgem Santíssima é consolo dos aflitos, gozo do mundo e causa de nossa alegria, como o Seráfico não encontraria, em sua terna devoção a ela, uma das causas de sua íntima alegria? Por que não devemos buscar, em seu culto a este ideal de pureza e de força, o segredo daquela jovialidade infantil, daquele admirável candor, confiança sem limites, e abandono filial nos braços da Providência, que caracteriza as relações de São Francisco com a Divindade? Só a presença da mais doce das mães junto a seu filho bendito pode explicar o puro candor do Pobrezinho ante o trono do Altíssimo!

36. A alegria serve a tudo

A alegria é para o homem o que o sol é para a planta. Não estamos diante de uma expressão poética, mas de um fato real.
Além do mais, o bom humor reanima o espírito. Somente quem nunca provou a doce impressão da alegria intensa pode colocar este axioma em dúvida. “Enquanto estiverdes contentes - descreve Lombez - vosso espírito será mais fecundo e estará mais atento, vossas vidas serão mais claras, a imaginação mais viva, o coração se encontrará mais satisfeito, o humor será mais alegre, mais agradável vossa companhia, vossa piedade mais terna, vossa virtude mais generosa: vos fareis amáveis a Deus e aos homens, e vos sentireis com valor para tudo”.
Por isso a alegria vem a ser para todos um dever, e a prática constante da mesma se converte, para o cristão, numa verdadeira virtude; mais que virtude, é uma síntese ou ramalhete de virtudes. Por que há dias em que, para conservar o bom humor, é necessária uma absoluta confiança em Deus, um grande amor aos homens, e uma energia, valor e constância incomuns. “É verdade que a alegria não tem a grandeza das virtudes cardeais, mas que seriam todas essas juntas sem o raio de luz que ilumina sua frente?”
Como poderia o homem ter a força suficiente para suportar com paciência as tristezas, lutas e tribulações da vida, se um raio de consolo e de esperança não viesse alegrá-lo e reanimar? Eis aqui porque foi dito que o bom humor é um triunfo: triunfo do espírito sobre nossa misérias. É como o sol que brilha repentinamente num dia tempestuoso; é um feliz mensageiro que vem animar-nos, dizendo que nem tudo se perdeu em meio à tempestade, senão que fica sempre a esperança ancorada no fundo do coração. “A alegria parece multiplicar a pujança e a produtividade do homem, refrescando seu espírito, infundindo-lhe ousadia e valor. Da alegria nascem, freqüentemente, as grandes decisões e empresas generosas. Age como se jogasse com as dificuldades e contrariedades. Enobrece o homem, dispondo-o ao bom, ao verdadeiro e ao belo; freia as más inclinações e vivifica os bons sentimentos. Tornou-o bondoso, compassivo e disposto a servir em todo momento. Aproxima-nos uns dos outros, fomenta as relações sociais e tece laços de amizade”.

37. A tristeza não serve para nada

É sempre nociva. Afirmou, já faz muitos séculos, o Eclesiástico: “A tristeza matou a muitos e não há utilidade nela”. E no livro dos Provérbios se lê: “O coração alegre embeleza o rosto; mas pela tristeza do coração o espírito se abate. Todos os dias do aflito são molestos, mas o coração contente tem um convite contínuo”. “Lançai a tristeza para longe de vós como se fosse um veneno mortal. A quantos fez perder no tempo e na eternidade!... Ela arruína a saúde, esqueletiza o mais robusto consumindo-o até os ossos, e diminui seus dias, fazendo-o envelhecer antes do tempo... O homem triste sente seu espírito fraquejar, sua imaginação vai enchendo-se de idéias sombrias, e tudo que lhe rodeia é motivo de aflição: tudo lhe exaspera e excita, até as palavras mais doces que a amizade lhe dirige para alegrar o espírito. Sua tristeza é como uma chaga geral que infecciona todas as potências de sua alma e todos os membros de seu corpo.”
“A tristeza é uma coisa feia, seca e repugnante que, se penetra no coração, faz um imenso dano. Devemos esforçar-nos por colocá-la fora o quanto antes, pois é como um veneno que corre por todas as veias. Aquele que for possuído pela tristeza não poderá desejar nada de bom e belo, ficando reduzido à mais triste incapacidade. Trata-se de cumprir um dever? De sacrificar-se por dar gosto aos que amamos? Impossível! Estamos tristes! E aos tristes não devemos pedir nada, nem para si, nem para os outros, nem para Deus”.
Não bastará isto para nos persuadir que a tristeza é tão maléfica e destruidora, quanto útil e fecunda é a alegria? Não nos parece estar ouvindo a voz do Apóstolo úmbrio que, como um esperto educador, “devolvendo aos homens a esperança - como nota Sabatier – infundia-lhes valor?” Dizem que São Felipe Neri, o santo do humanismo cristão, repetia constantemente há alguns séculos atrás: “Tristeza e melancolia, fora da casa minha”.
Perguntou um pedagogo contemporâneo: “Cabe, em vossas cabeças, santos e santas dominados pelo mal humor? Ele mesmo responde: “Se dependesse de mim, estes não seriam canonizados”.

38. Deus o quer

A alegria cristã não é só uma necessidade: é também um dever. A própria natureza nos diz de maneiras diversas. O universo inteiro experimenta os mais vivos arrebatamentos de alegria em presença do Criador. “Os céus proclamam a sua glória e o firmamento anuncia a obra de suas mãos. As selvas e os montes, as colinas e os arrecifes saltam de gozo ante Deus - continua o Salmista - enquanto os rios e as torrentes precipitam-se bruscamente no oceano. Com o doce murmurar de suas ondas e a fragorosa harmonia de suas cascatas - semelhante a um alegre bater de palmas - aplaudem e exaltam a grandiosa potência do Senhor”.
Somente o homem, que deveria ser o mais fiel intérprete destes nobres sentimentos da criação, parece, não ouvir o carinhoso convite dos seres inferiores, incitando-o, com sua inteligência e seu coração, a dirigir a Deus um hino de júbilo e de agradecimento que eles queriam tributar-lhe de uma maneira mais livre e consciente. Esta é, sem dúvida, a causa pela qual Deus quis manifestar sua vontade com palavras mais claras e explícitas. Todos os livros do Antigo Testamento - em particular, os Salmos - estão cheios de exortações, conselhos e mandatos de nos alegrarmos e regozijarmos no Senhor.
A era da verdadeira e sólida alegria só começou na terra com o advento do Evangelho: a benção da vida não desceu a este mundo senão com o divino Salvador.
Este, o Redentor descido do céu, foi quem fez com que no dia de seu nascimento em Belém, os anjos anunciassem a paz aos homens de boa vontade. Ele é quem, não obstante a humildade, a pobreza e a pequenez que rodeava a sua casa, na qual vivia e trabalhava com a sua pobre família, soube inundá-la de uma alegria tão pura e de um esplendor tão sereno, que fazia com que todo sacrifício se tornasse doce e toda dor se transfigurasse.
Logo que apareceu em público para cumprir a sua missão, o Filho de Deus não perdeu sua amabilidade, doçura e gozo no seu Pai celestial.
No celestial consolador de todas as tristezas humanas, não encontramos o menor sintoma de pessimismo, nem sequer a mínima sombra de amargura espiritual em sua doutrina e em suas obras. Sua vida confirmou a palavra do Profeta: “Não será triste nem turbulento”. Ele, como diligente e confiado semeador, percorreu alegremente os belos e férteis campos, cantando suas bem-aventuranças, que transformam em benção pobreza, dores, e lágrimas: Bem-aventurados os que choram, porque serão consolados!
Ainda no Horto de sua agonia, no Pretório de sua flagelação e no Calvário de seus tormentos, conservou aquela serena alegria da alma, que nele é derivada de sua íntima união com a divindade.
E por último, saindo do sepulcro como vencedor do pecado e da morte, inaugurou, oficialmente o império da paz na terra: “Eu vos deixo a minha paz, eu vos dou a minha paz!” Assim como o Evangelho se abre com o canto triunfal do Magnificat, que brotou do coração da Virgem como o mais belo hino de celeste alegria, se fecha com este augúrio de paz que inaugurou o triunfo da alegria nas almas: “Para que a minha alegria seja em vós e a vossa alegria seja plena”.

39. A alegria na dor

A fé faz compreender - como também o faz São Francisco - que os sofrimentos dessa vida são nossa triste herança como filhos do pecado, uma necessidade inerente à nossa pobre natureza caída e condição essencial da vida cristã. Como não podemos ser homens sem nos afligir, tampouco podemos ser cristãos sem estar crucificados. “Aquele que querer vir depois de mim - disse o Mártir do Gólgota - deve pegar sua cruz, colocá-la sobre as costas e seguir-me pelo caminho sangrento da imolação e do sacrifício”. “E aquele que não quisser me seguir levando voluntariamente o suplício dos condenados à morte, não é digno de ser meu discípulo.” O caminho deste mundo é largo e espaçoso, inundado de sol e cheio de prazeres, como a via-láctea se encontra semeada de estrelas e a do Capitólio empedrada de triunfos e de vitórias; mas o caminho do céu e estreito e difícil, calcado de espinhos e de abrolhos, salpicado de gotas de sangue, umedecido com o orvalho das lágrimas. Todo aquele que queira possuir a verdade e a vida, deve passar por estes sendas de dor e morte!
O cristianismo revela e explica a tríplice função divina que o sofrimento exerce no mundo: a de justiça, que expia os nossos pecados; a de misericórdia, que nos livra de cair em outras culpas e no poder de nossas paixões; a do amor, que santifica, aperfeiçoa e enriquece nossa alma com grandes dádivas.
E dessa doutrina do Evangelho concluímos que o melhor é agir como filósofos práticos: fazer da necessidade virtude; aceitar agradecido, das mãos de Deus, todo tipo de tribulações, dores e sofrimentos; permanecer tranqüilos e resignados no meio do furor da tempestade. E devemos reconhecer que não se equivocaram os que discorrerem assim. A melhor solução para o problema da dor é a que nos dá o cristianismo.
Com sublime eloqüência, a história nos ensina, como estes nossos santos, fazendo uso de suas próprias forças e da ajuda da graça, foram em busca de trabalhos e de sofrimentos, a fim de participar mais intimamente da paixão e martírio de Cristo e,com Ele, subir o Calvário e ser crucificado no patíbulo. E como para encher-se rápido de méritos, e ao mesmo tempo suavizar o peso da cruz, não há meio mais propício que o de alegrar-se e regozijar quanto for possível, deram ao mundo o singular espetáculo de uma contínua e serena jovialidade, que aumentava na medida em que crescia o número, a violência e a intensidade de suas dores.
Eis aqui porque o Pobrezinho de Assis pôde arrancar do fundo do seu coração, nos momentos mais tristes de sua vida, as notas mais belas e harmoniosas do Canto do Irmão Sol. Da mesma forma souberam comportar-se todos os grandes heróis da santidade cristã.
Os discípulos do divino Mestre saíam radiantes de felicidade das sinagogas judaicas e dos tribunais pagãos, onde haviam sidos cruelmente açoitados, gozosos porque haviam sofrido afrontas e perseguições por Seu amor. E, seguindo o exemplo e as exortações desses discípulos de Cristo, os campeões de nossa fé conservaram sempre sua alegria ante os tiranos que os condenavam: trancafiados nas prisões, onde eram amarrados como criminosos; de joelhos sobre a ensangüentada arena do anfiteatro; fortes e impávidos em meio aos tormentos, que a raiva e ferocidade dos verdugos lhes faziam sofrer.


CONCLUSÃO

Para conseguir a alegria

Foi dito pelo divino Salvador: “Carregai meu jugo e encontrareis descanso para vossas almas”. “Buscai primeiro o reino de Deus e sua justiça, e tudo mais vos será acrescentado.” O que significa: sejai verdadeiros cristãos, como esses franciscanos, e sereis sempre felizes e alegres.
Francisco disse, há alguns séculos, depois de haver examinado todas as preocupações dos homens e o que constitui objeto de suas investigações e cuidados; depois de haver provado, por mim mesmo, de tudo que eles gostam - prazer, glória, riqueza - me convenci de que não há coisa melhor neste mundo que fazer o bem com alegria. A virtude e a alegria são, pois, dois bens unidos, e seria um absurdo pretender separá-los. O fruto não pode existir sem a planta: o gozo exterior seria impossível sem a paz interna do coração.
Pureza, amor, alegria: eis aqui três palavras que se iluminam e completam mutuamente, e que nos apresentam um singelo e admirável programa de vida cristã, cuja realização nos permite provar por antecipação as delícias do paraíso. A pureza conduz ao amor e o amor e a pureza produzem a alegria. A vida de São Francisco se reduz a isto! Sejai puros e amáveis com o Senhor; amai o Senhor e observareis a sua lei; observai sua lei e sereis embriagados de puro gozo. “O coração dos que buscam a Deus de verdade - assegura o Espírito Santo - reboa sempre de gozo, e a alma virtuosa terá sempre dentro de si a perfeita alegria”.
Somente a religião é capaz de despertar em nós a confiança em Deus, tão necessária para conservar a alegria, especialmente quando o ódio dos homens e a raiva de Satanás lançam contra nós todas as suas fúrias, como as ondas do mar que rugem, se incham, formam espuma, e se precipitam violentas contra os arrecifes, aos quais queriam vencer e fazer desaparecer. Em situação semelhante, a alma de Jesus se estremeceu e espantou, fazendo-o cair em uma angustiosa agonia, na qual haveria desmaiado se não lhe houvesse sustentado a divindade. Canta o salmista: Ó Senhor, eu levantei os meus olhos a ti, tive confiança em tua bondade, e estou certo de que ninguém poderá derrubar-me”.
Naturalmente, para que esta confiança possa fazer permanecer em nós a paz do coração, deve ser verdadeira, profunda, iluminada; deve basear-se na idéia clara e precisa dos atributos divinos: em seu poder sem limites, em seu amor sem medida, em sua eternidade imutável, semelhante a estas gigantescas montanhas que contemplamos, abismados, de admiração, e que de cujos cumes as coisas humanas parecem tão pequenas. “Do alto de seu refugio inviolável - diz Bossuet - a alma olha abatida todas as grandezas da terra, e todos os soberbos e orgulhosos do mundo, humilhados; e nessa completa destruição das coisas humanas, nada nos parece mais grande e elevado que os singelos e humildes de coração”, que colocam sua confiança no Senhor. Sabemos: uma só palavra de Cristo acalmou a tempestade do mar, seu olhar pode acalmar as tempestades de nossa alma. Basta que nos dirijamos a Ele com as asas da oração.
Luis Veillot, um dos mais nobres jornalistas do século passado, abrumado sempre por um trabalho enorme, exclamava em certa ocasião: “Eu não poderia começar nem terminar o dia sem colocar-me, ó Senhor, aos vossos pés; ali encontro tanto consolo e alegria, que nenhum prazer deste mundo pode comparar-se a ele”. E um dos mais admiráveis pensadores modernos, Maime de Birain, escrevia a sua filha estas precisas palavras: “Muitas tempestades da alma e do coração podem dissipar-se, colocando-nos na presença do bom Deus e esforçando-nos por manter-nos nela, com alguma breve consideração mental: só assim, encontraremos a paz. Que doce é para mim, ó minha filha, aspirar continuamente a este centro de repouso, gozando-me em pensar que meus amigos poderão encontrar-me ali”.
Este dom da “paz de espírito”, o gozo, a calma, é um presente do Senhor, fruto de sua graça, e um bem sobrenatural: Por conseguinte, devemos pedí-lo por meio da oração, com humildade e perseverança. Nossos santos pediam aos céus a alegria, como prova de sua amizade com Deus, e como meio para manter-se na prática da virtude, apesar de todas as tentações e sacrifícios. Nossa santa mãe, a Igreja, pede-a em sua liturgia e em seus ofícios. Ela bebeu dos Livros Santos:
“Senhor e Príncipe da casa de Israel, Tu que apareceste a Moisés, não no redemoinho que transtorna e destrói, mas na chama que ilumina e alegra; vem nos libertar da escravidão, da tristeza e do cansaço”.
Libertador, saído da estirpe de Jessé, tu, a quem todas as nações invocam e em cuja presença os reis da terra emudecem; pressa-te em arrancar-nos da servidão que envilece nossos corações e rompe as algemas que nos oprimem.
Sol de justiça e de luz eterna, cujo esplendor dissipa as trevas e ilumina os espíritos, acende em nossas almas teu divino fogo, que dilatando nossos corações nos faça viver uma vida nova e cheia de bênçãos”.

O apostolado da alegria

O apostolado da alegria se impõe a cada um de nós. Este dever se impõe a todos, em virtude dos princípios fundamentais da caridade cristã que ninguém deve ignorar: “Faz aos outros o que querias que fizessem a ti”; “cada qual deve cuidar da saúde de seu próximo”; “enxugai as lágrimas dos que choram, visitai os escravos da tristeza, os abatidos do espírito e os tristes de coração”; “derramai consolo sobre as almas que sofrem”.
Quantas dessas almas há junto a nós, tristes e dolorosas, que bebem a cada dia o cálice da amargura. Com o rosto murcho e esburacado de rugas, através do caminho da vida, não encontraram mais que sarças e espinhos, e já perderam a esperança de poder provar ao menos uma gota da felicidade pela qual tanto anseia seu pobre coração!
Devemos ser artífices da alegria. O cristianismo no-lo manda, com sua doutrina sobre as obras de misericórdia: “Um momento de felicidade subtraído das pobres almas que sofrem é uma espécie de roubo, ou pelo menos uma crueldade inútil e daninha... Mas isso não basta. Para cumprir o dever da fraternidade, imposto a alguns pela fé em um Pai comum e a outros por certas doutrinas humanitárias, é necessário, além do mais, intervir eficazmente na vida do próximo, e converter-se em portadores de alegria para os nossos irmãos...”
Quem poderá descrever o poder do sorriso?
Tudo bem que choremos com os que choram - seguindo o conselho do apóstolo Paulo - e que, por conseqüência, nossa alegria em relação aos nossos irmãos seja moderada por nossa compaixão por suas misérias. Ofenderíamos ao que se encontra abatido se este visse em nós não mais que alegria. Mas assim como o sol, desfazendo pouco a pouco as nuvens que o ocultam, nos envia primeiro a sua luz e logo seu calor, também nós temos que buscar com que o contentamento, guardado em nosso coração, rasgando insensivelmente o véu da tristeza que o envolve, leve luz ao espírito abatido e doce paz ao coração aflito. Porque se não demonstramos mais que tristeza e melancolia, nunca encontraremos o caminho para fazer alegria penetrar nas pessoas.
A confiança e a simpatia não são coisas que se possam impor, senão que se inspiram e se conseguem com a bondade e o amor. Se não amamos, não seremos amados, nem sequer poderemos apreciar o amor. Se somos frios para com o próximo, este será também conosco; e o afeto dos irmãos não alegrará nossa vida; se não o merecemos, não poderemos gozar deste, e nosso coração ficará sempre gelado, porque, como o gelo, pode até derreter, mas não é capaz de esquentar. E se ao coração duro se une uma expressão facial severa e antipática, como poderemos atrair as almas? “Pega-se mais moscas com uma colher de mel, que com cem barris de vinagre”, costumava dizer são Francisco de Sales, que conhecia muito bem a eficácia da bondade e da doçura.
Que confiança podeis inspirar com vossas caras sempre sisudas? A quem pretendeis consolar com essa cara que parece a entrada de um túnel? Como quereis aplicar remédio ao mal, lançando baba pela boca?... Disse Wagner: “O preto é, para muitos, a insígnia do pessimismo, o emblema do nada. Tenho repugnância por aqueles que querem servir ao bem no inicio da noite, vestindo-a de luto. Por isso desconfio dos moralistas tétricos e de quantos anunciam o bem com semblante sombrio, voz áspera e gestos mal humorados. Eu os compararia com as vassouras cheias de pó, que em vez de limpar, sujam...”
Pelo contrário, o homem alegre nos seduz e arrasta com tal força, que é impossível resistir. Quando, desde este ponto de vista, Faber fala sobre a benevolência, Guilbert sobre a bondade, pode-se dizer da alegria, que é a flor mais formosa e o fruto mais saboroso de ambas.
O simples fato de ver uma pessõa alegre, contente e satisfeita é suficiente para nos contaminar e nos envolver nas redes de tal felicidade. Nossa alma se abre instintivamente à sua, como a rosa ao beijo do sol, como o botão ao sopro da brisa primaveral.
Quando nos sentimos oprimidos pela melancolia e a tristeza, basta normalmente, ver um semblante inundado de alegria para renascer em nós a felicidade e o contentamento; quando nos encontramos turbados pela inquietude, basta uma palavra doce e carinhosa para devolver-nos a paz; quando estamos preocupados pelo temor, basta uma ação feita com graça, para que a imprecisão de um apoio seguro faça renascer em nós a confiança.
“Cada sorriso que excitamos no próximo equivale ao pedaço de pão dado a um faminto, a roupa que cobre o corpo do mendigo. E quem sabe o que pesará mais na balança divina?” Há mais caridade em estimular as almas ao bem, que em sustentá-las com o dinheiro; e o pão, misturado com alegria, se torna um alimento mais nutritivo. Quando as Irmãs da Caridade colocam suas hábeis mãos sobre as chagas dos corpos, não cumprem mais que seu dever se não curam as feridas da alma.
Por isso todos os santos lançaram mão da alegria, essa arma celestial, como uma das forças mais poderosas de seu apostolado.Convencidos da profunda filosofia desta frase de Victor Hugo: “Se quereis melhorar os homens, fazei-os felizes”, correram o mundo enxugando lágrimas, eliminando dores, socorrendo misérias, cantando e regozijando-se no Senhor.
A alegria e o bom humor foram um dos principais segredos do êxito do apostolado de Francisco de Assis e de seus discípulos. “Ele encantou seus frades - observa Gebhart - e estes a sua vez embelezaram a Itália com aquele amável e radiante sorriso com que acolhiam as grandes misérias, os pequenos consolos e as humildes doçuras da vida”.
Mas tanto o seráfico como todos os demais heróis da fé e do amor que evangelizaram as multidões indigentes de todos os séculos e de todos os países, não fizeram outra coisa senão imitar o apóstolo por excelência: Jesus, o Salvador. “Se com um olhar, ou uma palavra de sua boca proferida, homens rudes e incultos abandonaram a indústria da pesca e o banco publicano, deixando suas famílias e seus lares para seguí-lo; se as mulheres abandonaram as suas casas para servi-lo; se o último dos profetas enche-se de gozo ao eco de sua voz; a multidão, qual mar tempestuoso, tão obscura em seus pensamentos e indecisa em sua vontade se comovia agitada e proclamava-o rei e até mesmo os meninos se sentiam atraídos por ele e se apertavam ao seu redor, devemos deduzir que sua força atrativa, como sua virtude de curar, era essencialmente força de alegria, daquela alegria que é grato perfume e aroma do amor”.
Este é o exemplo ideal que devemos imitar no apostolado do bem e da paz ao qual estamos chamados a exercer entre amigos, famílias e na sociedade. “Se tendes ambições apostólicas, lembrai que somente a bondade vos fará conquistadores, como Cristo, que é rei porque é pacífico, e que quis revelar a nós todas as virtudes de seu coração divino, só aceitando como seus apóstolos os que sabem ser cordeiros em meio a lobos”.
Não digamos palavras que não sejam suave poesia, não dirijamos nenhum olhar que não seja um sorriso de alegria; não façamos nenhuma ação que não seja uma carícia, uma graça para as criaturas que nos rodeiam.
A alegria é por sua própria natureza, comunicativa, como é também o mau humor. Na verdade, não sabemos que vivendo em um ambiente onde reina a tristeza é sumamente difícil não ser influenciado por ele? A chatice, melancolia e mau humor dos companheiros de trabalho, dos parentes e amigos de casa, é comunicada a nós e aos demais.
Mas a alegria, mais intensamente que a tristeza, é contagiosa. Como o sol, levantando-se sobre o horizonte, ilumina e alegra toda a natureza, assim as almas felizes e satisfeitas derramam ao seu redor a luz e o calor da alegria. Assim é como se explica que as pessoas alegres se encontrem sempre reunidas em grupos, como as flores e as estrelas.
Às vezes, basta uma só destas almas para transformar todo um ambiente, para irradiar luz, sossego e paz sobre toda uma casa, para consolar e fazer feliz a toda uma família...
Diz-se que Rubens, de uma só pincelada, mudou por completo a imagem de um menino, fazendo-o risonho. Certos espíritos são também grandes artistas, mas em sentido contrário: com um gesto, com uma palavra, com uma súplica, com um canto, com o sorriso que brilha sempre em seus olhos e transborda continuamente de seus lábios, consolam e distraem todos aqueles que têm o privilégio de estarem ao seu lado.
“Estou persuadida - afirma Dora Melegari - de que a conservação do gênero humano deve-se precisamente a eles. Sem os sorrisos que provocam, os cantos que fazem brotar de seus lábios, a luz que projetam sobre os rostos, já há muito tempo que o sol haveria deixado de brilhar sobre este mundo desgraçado e triste; a terra converter-se-ia em gelo, e o último dos homens pereceria congelado de frio. O mundo deve a estes sua salvação. Felizmente são mais numerosos que os dez justos de Sodoma e Gomorra que o Eterno pediu a Abraão, para não lançar sobre estas cidades infames a chuva de fogo que lhes havia reservado”.


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