A FORÇA DA ALEGRIA
(FREI VITTORINO
FACCHINETTI, OFM)
A presente tradução, feita sobre a primeira edição castelhana de La Fuerza de la Alegría, adaptação do livro “Sede alegres”, publicada no ano 2000 por Noticias Cristianas, de Barcelona, esteve a cargo de Claudio Dionizio Rocha Santos.
NOTA DO TRADUTOR
Recém-chegado à Espanha, em mil
novecentos e noventa e nove, travei o meu primeiro contato com o editorial
Notícias Cristianas. Linguagem acessível, poucas páginas, sã doutrina, para os
que querem, aprofundar o conhecimento da fé cristã, mas não conseguem dedicar
muito tempo à oração ou à leitura: eis uma realidade européia, possível alvo
dos livros de Notícias. Pude conhecer o editor-chefe e propor-lhe a tradução à
língua falada nas Terras Brasileiras.
Dos adjetivos acima elencados, acrescentei
o fato da carestia de livros, escassez de recursos do povo: ambiente favorável
à difusão dos livros, uma possibilidade de aportar algo a labor dos pastores da
Igreja no Brasil.
A obra que agora vos apresento não
pode ser considerada de todo autêntica; já Taciano, escritor dos primórdios do
cristianismo, fez do seu Diatessaron uma tentativa de fusão dos
Evangelhos em uma única narração da vida de Cristo. De auntêntica tem o fato de
ser uma obra sintética, sem perder a singularidade da vida de Nosso Senhor.
Aceita a proposta, veio-nos o
desafio: traduzir conservando ao máximo a fidelidade ao original, dando um
toque de brasilidade ao opúsculo. Levamos a cabo com ajuda de umas tantas mãos.
Agradeço aos amigos de Barcelona, Santiago de Compostela e Roma que me ajudaram
nessa empreitada. Minha gratidão especial aos seminaristas da Arquidiocese de
Aracaju pelo apoio; a Fabiano, responsável pelo que há de bom na tradução.
Quanto aos possíveis erros e imprecisões, esperamos corrigir numa posterior
edição. De Fabiano, transcrevo fazendo minhas estas palavras: “Desculpe alguma
imprecisão, afinal não sou nenhum gramático. Dei só uma ajudinha”.
Claudio Dionizio
______________________
INTRODUÇÃO
Francisco
educou a sua inteligência, iluminando-a com os raios de sua fé simples e
sublime; educou seu coração, livrando-o da escravidão dos bens terrenos, por
meio da pobreza e de suas naturais conseqüências; educou a sua vontade ,
fortificando-a na observância da pureza e da castidade, que conservou por meio
da humildade da oração e do espírito de piedade. E é na prática e na possessão
triunfal dessas virtudes onde devemos buscar e podemos encontrar as verdadeiras
causas de sua seráfica alegria.
Numa tarde
de inverno Francisco regressava de Perugia a Assis, em companhia de seu amado
Frei Leão. Tremendo de frio, açoitados pela chuva e quase mortos de fome,
caminhavam por um lugar estreito, cheio de lodo, indo um à frente e outro
atrás. Certamente, aquela não era a melhor ocasião para estarem alegres! E
ainda assim, Francisco dirige a seu companheiro de viagem esta repentina
pergunta:
“Poderias
dizer-me, Frei Leão, em que consiste a verdadeira alegria?”
A amável ovelhinha
do Senhor propõe ingenuamente várias soluções, que não chegam a satisfazer
de todo ao Mestre, o qual, com sua linguagem simples e devota, começa a instruir
desta maneira o amado discípulo:
“Frei
Leão, supondo que os Frades Menores dessem, em toda a terra, um grande exemplo
de santidade e de boa edificação, escreve e adverte com cuidado que a perfeita
alegria não consiste nisso”.
Depois de
andar um pouco mais, São Francisco chamou-o por segunda vez:
“Frei
Leão, ainda que os Frades Menores dessem luz aos cegos, audição aos surdos, pés
aos aleijados e fala aos mudos; ainda que curassem paralíticos, expulsassem
demônios, e embora chegassem a ressuscitar os mortos de quatro dias, escreve
que a perfeita alegria não está nisso”.
E, andando
um pouco mais, gritou-lhe mais forte:
“Frei
Leão, se o Frade Menor soubesse todas as línguas e todas as ciências e toda a
Escritura, e ainda que pudesse profetizar e revelar não somente as coisas
futuras, senão também os segredos das consciências das almas, escreve que não
consiste nisso a perfeita alegria”.
Seguindo
um pouco mais adiante, São Francisco voltou a chamar-lhe mais forte:
“Frei
Leão, ovelhinha de Deus, embora o Frade Menor falasse a língua dos anjos
e soubesse o curso das estrelas e as propriedades das ervas; ainda que lhe
fosse revelado os tesouros da terra, e conhecesse as qualidades dos pássaros,
dos peixes e de todos os animais, dos homens e das árvores e das pedras e das
raízes e das águas, escreve que a perfeita alegria não está nisso”.
E, andando
um trecho mais, São Francisco gritou:
Frei Leão!
Ainda que o Frei Menor soubesse pregar tão bem, que chegasse a converter todos
os infiéis à fé de Cristo, escreve que nisso não está a perfeita alegria”.
E, como
seguisse falando deste modo por mais duas milhas, Frei Leão, abismado,
perguntou-lhe:
“Pai,
rogo-te em nome de Deus, que me diga em que consiste a perfeita alegria”.
E São
Francisco respondeu:
“Se quando
estivermos chegando a Santa Maria dos Anjos, encharcados pela chuva, tremendo
de frio, cobertos de barro e famintos, chamarmos à porta do convento e o
porteiro sair enraivecido e nos disser: “Quem sois vós?” E nós respondermos:
“Somos dois de vossos frades”. E ele replicar: “Não dizeis a verdade; sois uns
enganadores, andais mentindo para as pessoas e roubando as esmolas dos pobres.
Fora daqui ! E com isso não nos abrirem, fazendo-nos passar a noite à
intempérie, com a neve, o frio e a fome. Se suportamos com paciência, sem nos
perturbar, sem gritar nem murmurar ante tamanha injúria, crueldade e tantos
desprezos, pensando humilde e caridosamente que aquele porteiro nos conhece bem
e que Deus o faz falar contra nós, então, ó Frei Leão, escreve que nisso
consiste a perfeita alegria. E se nós seguirmos chamando e ele sair à porta
muito indignado, e como a malandros inoportunos nos por para fora com desprezo
e bofetadas, dizendo: “Saiam daqui, ladrãozinhos mentirosos, vão ao hospital
que aqui não lhes será dada nem hospedagem nem alimentos”. Se nós suportarmos
isto com paciência e com amor, então, ó Frei Leão escreve que nisso consiste a
perfeita alegria. E se, pressionados pela fome, pelo frio e pelo rigor da
noite, voltarmos a chamar, e pedirmos pelo amor de Deus e com muitas lágrimas
que nos abram e nos deixem entrar, e o porteiro, furioso nos disser: “Cuidado
com estes malandros! Que inoportunos sois! Eu vos darei o que merecem!”; e sair
à porta com um pau e nos agarrar e, segurando pelo capuz, nos jogar ao
solo, nos arrastar pela neve e nos bater sem piedade com aquela madeira; se
sofrermos tudo isto com paciência e alegria, pensando nas penas de Cristo
bendito que devemos sofrer por seu amor, escreve então, ó Frei Leão, que nisso
está a perfeita alegria. E agora escuta a conclusão, ó Frei Leão: Sobre todas
as graças e dons do Espírito Santo que Deus concede aos seus escolhidos, está a
de vencer a si mesmo e, voluntariamente e por amor de Cristo, padecer
penas, injúrias, desonra e desprezos...”
1. A
figura do Pobrezinho
Francisco
de Assis, o seráfico pobrezinho - como hoje se costuma referir-se a ele
- o Apóstolo da paz da Idade Média, o poeta da natureza, o cantor da
fraternidade universal, é indubitavelmente uma das almas que melhor soube
compreender e reproduzir en si, em sua vida prática, o evangelho da benção e da
alegria cristã.
Ele é um
dos tipos mais refinados, dos modelos mais perfeitos e das figuras que melhor
representam a serenidade e a alegria de espírito.
A
simpática figura deste gentil cavaleiro, que arrebatado por um sublime ideal se
despoja, na flor dos anos, de todos os bens da terra, de todos os prazeres da
vida, de todas as vaidades do mundo e renuncia, com heróico entusiasmo, às
riquezas, aos gozos, às honras, a um porvir cheio de promessas e esperanças,
nos atrai com irresistível força. E ao pensar que um dia o jovem Francisco,
lançando longe se si, com um nobre gesto, suas elegantes roupas, cobriu-se com
um áspero saco, cingiu a sua cintura com corda, e com os pés descalços e a
cabeça raspada percorreu a Umbria e Itália, o Oriente e o Ocidente, pregando a
todos a penitência e o perdão, então essa fúlgida e serena figura de apóstolo e
evangelista do bem e da paz se apresenta ao nosso olhar como uma radiante e
deslumbrante encarnação de bondade e amor.
Acostumamo-nos
a vê-lo conversando com os passarinhos e com os peixes, acariciando os
cordeirinhos e as inocentes rolinhas, aprendendo lições de atividade e
prudência com a irmã formiga, de vigilância com a irmã cigarra e de canto com o
irmão pardal, estreitando entre as suas mãos a garra do irmão lobo, correndo ao
encontro dos irmãos bandidos, dobrando en sua presença o coração e os joelhos
dos irmãos assassinos. Acostumamo-nos a comtemplá-lo em meio às multidões,
pregando o evangelho da paz, do amor e da vida, cantando as maravilhas da
Natureza com seu Canto do Irmão Sol e elevando-se no ar, na solidão das ilhotas
dos lagos e das grutas das montanhas, arrebatado pelo fervor da oração e pelo
divino impulso do êxtase. Acostumamo-nos a saudar o nosso Santo quando, no
dourado crepúsculo de uma serena tarde de outono, extendido sobre a desnuda
terra e coberto com uma pobre túnica pedida de esmola, entre o gorjeio dos
irmãos pássaros e o canto de seus frades, dar boas-vindas à irmã morte e
entregar sua formosa alma nas mãos do Criador...
2.
Espírito de alegria seráfica
Paul
Sabatier afirma que a “alegria, entendida como potência de vida e de expansão,
foi a característica do primitivo movimento franciscano e uma de suas
principais forças”.
O Servite
Domino in laetitia do Profeta em nenhum outro santo encontrou uma
aplicação tão marcada e contínua como no Pobrezinho de Assis. Little,
historiador inglês protestante, alma do movimento franciscano en sua pátria,
escreve seguindo a Sabatier: “Está fora de dúvida que a maior parte do
extraordinário poder do apóstolo úmbrio sobre as almas deriva de seu
brilhante temperamento e sua inesgotável cortesia. Nunca ameaçou os homens,
nem abusou deles, nem perdeu sua alegria com eles”. São Francisco é o
modelo ideal do verdadeiro espírito evangélico que se distancia da murmuração
queixosa dos eternos descontentes da vida, colocando sua confiança em um ideal
de bem e de amor que sente invadir todo o seu ser.
Jörgensen,
protestante convertido ao catolicismo por influência do franciscanismo, se
expressa com estas palavras: “Podemos afirmar com justiça que um dos sinais
distintivos de toda a Ordem Franciscana, e em particular de cada uma de
suas figuras mais eminentes, é precisamente esta: o estar de toda maneira
disposto psicologicamente, ao serviço de Deus, o que é para a alma que se
entrega a Ele uma alegria, uma benção, uma bem-aventurança que supera toda
medida. A vida destes homens é um júbilo em Deus quase contínuo, em tal
grau que nos sentimos tentados a dizer, usando uma expressão que não teria aqui
nada de irreverente, que suas almas estavam sempre mergulhadas na divindade”.
Celano,
que desde as primeiras páginas de sua história afirma que Francisco era cortês
em sumo grau, descreve-o como um homem de costumes suaves, de natureza
tranqüila, afável en suas conversas, insinuante ao exortar... gracioso em tudo;
de mente serena, de ânimo dócil, de espírito equilibrado... e sempre dono de si
mesmo; fácil para perdoar, pouco propenso à ira, generoso de coração... de uma
admirável simplicidade em tudo; rigoroso consigo mesmo, condescendente com os
demais, discreto e moderado em todas as coisas, de palavra fecunda; seu
semblante irradiava a toda hora uma alegria impregnada de benevolência, isenta
de tristeza e de melancolia, incapaz de insolências. E como era
humilíssimo, se mostrava doce e tolerante com todos, acomodando-se ao
temperamento e modo de ser de cada um Santo entre os santos, tratava os
pecadores como se fosse um deles.
A
santidade de Francisco não é a melancólica tristeza de um misticismo limitado,
sisudo, senão a tranqüila alegria de um espírito idealmente sereno e repousado.
Sabe-se
que a idéia fundamental que dominava em certas formas de vida ascética e monástica
da Idade Média se baseavam, substancialmente, na concepção dualística, segundo
a qual a terra, com todos os seus bens, com todos os seus prazeres, com todas
as atividades que dela se derivam e nela vão terminar, não era outra coisa que
culpa, tristeza e dor. Em toda alegria, em todo sorriso, ainda o mais puro e
inocente, escondia-se e a malícia sutil do pecado. Toda nossa existência estava
como que sob o domínio de um princípio perverso, a quem não é possível vencer
senão com a fuga e a renúncia por meio de uma vida isolada, de oração e de
privações.
As
heresias contemporâneas ao nosso Santo não faziam mais que desenvolver e torna
credivel cada vez mais este pessimismo de negra desesperação, que se estendia
sobre as almas com o terrível pesadelo do pecado, com o horror da vida presente
e com a angústia da futura, e conduzia, por uma lógica conseqüência, à mania de
sofrer, ao furor da penitência e às mais tristes aberrações do espírito e do
coração. Com tais frutos, esse pessimismo implicava o mais inumano, anticristão
e anti-social conceito da vida que jamais havia existido no mundo, porque era
como um dique que acumulava toda a atividade da mente e, ao mesmo tempo, era a
negação da beleza, da natureza e da arte, a qual não podia conceber mais que manifestações
sem vida e inspirações doentias e caprichosas: como estes grandes Redentores
bizantinos que se destacam nas catedrais daquela época, de olhos tão irados e
semblante tão feroz, que - como alguém disse - levantam a mão para abençoar e
mais parecem que vão lançar uma maldição.
A
originalidade de Francisco consiste precisamente em não se haver deixado
arrastar pela influência do ambiente e em haver iniciado, com sua palavra e
exemplo, uma nobre e vigorosa reação contra todas aquelas obscuras formas de
misticismo terrível e austero, que representam uma das mais antipáticas e
danosas degenerações do ideal religioso. O amável Pobrezinho inaugura, por
assim dizer, na história, uma nova era de religiosidade propriamente cristã,
caracterizada pela confiança, pela doçura e pelo amor. Em meio a seu século e a
seu povo, levanta triunfalmente a bandeira do otimismo evangélico, bandeira que
em suas mãos não voltará a baixar jamais, por terrível que seja a força dos
ventos e das tempestades.
4. Alegria
constante
Celano nos
assegura que “o Santo se esforçava por possuir continuamente o júbilo do
coração e manter com todo cuidado a unção do espírito e o óleo da alegria”.
Ordinariamente,
para vencer a melancolia que às vezes, por diversas causas, ameaçava invadir o
seu ânimo, o seráfico Patriarca recorria à oração, gemendo e suplicando ao Pai
celestial, até voltar a conseguir a habitual alegria do coração. Fazia também o
uso freqüente do seguinte recurso: pegava o primeiro pedaço de madeira que
encontrava e, apoiando no braço esquerdo a modo de violino, passava o outro por
cima com a mão direita, como se fosse um arco flexível, dançando e cantando em
francês.
Refere o
mesmo biógrafo que, já perto do fim de sua vida, Francisco, prestes a ficar
cego, se encaminhou a Rieti, para ser curado por um especialista. Apesar de
todos os remédios da arte médica, o Pobrezinho não via mais que trevas,
sentindo grande pena e observando que lhe iam faltando as forças e que o
espírito corria o perigo de deixar-se dominar pela tristeza. De repente manda
chamar a um frei que, no mundo havia sido tocador de cítara e lhe disse:
“Irmão, os
filhos do século não compreendem os segredos divinos. Os instrumentos musicais
foram feitos para cantar os louvores do Senhor e eles os empregam só para deleitar
os ouvidos; dar-me-ía uma grande satisfação se pudesses encontrar, sem que
ninguém te chame a atenção, qualquer instrumento e me cantasses alguma canção.
Isto seria um grande alívio para meu pobre irmão corpo, que se encontra decaído
por causa das fortes dores”.
O bom
frade respondeu:
“Pai,
faria com muito prazer o que me mandas; porém, isso poderia ser causa de
escândalo para alguém, como de coisa pouco conveniente a gente religiosa”.
“Não se
fala mais nisso - repôs Francisco -; existem coisas que em si são inocentes,
mas às quais é necessário renunciar para não escandalizar os pequeninos”.
Na noite
seguinte, não podendo conciliar o sono, meditava e orava; quando repentinamente
ouviu o som de um alaúde, uma música dulcíssima. O Santo, arrebatado em Deus,
ficou tão intimamente penetrado daquelas celestiais harmonias, que por um
momento acreditava que havia perdido a vida. Chegada a manhã, apenas havia
levantado, chamou o irmão e disse-lhe:
“O Deus
que consola os aflitos não me deixou desconsolado. Não me foi concedido ouvir a
música de um homem, e eis aqui que pude escutar a muito mais deliciosa música
dos anjos”.
Desta
sorte, Deus se dignava manifestar o quanto lhe era agradável o modo de obrar de
seu Servo, a quem, pelo demais - como o demonstra toda a vida do Santo - nunca
permitiu o céu que se visse privado daquele íntimo gozo, que lhe consolava como
uma gota de bálsamo caída em seu coração, ainda em meio às mais intensas dores.
Dessa maneira, pode Francisco manter constantemente a plenitude de sua alegria
e apresentar-se ao mundo, em todos os instantes de sua vida, como um modelo
ideal de perfeita alegria em suas relações com Deus, com seus irmãos e
com toda a natureza.
5. Ardores
seráficos
“Ó meu
irmão! Ó amor, meu amado irmãozinho, faz que eu possa viver em um castelo que
não tenha ferros nem pedras! Ó meu amado irmãozinho, fabrica-me uma cidade sem
pedras nem madeira!” Este castelo ideal, esta cidade imaterial edificada sobre
o amor, inundada de luz e cheia de cânticos de alegria, que um dos melhores
discípulos de Francisco imaginava em seus místicos sonhos, foi a morada
habitual de nosso Santo.
“Pai - lhe
dizia em tom profético um de seus filhos, pouco antes de morrer o Santo - tua
vida e conversão foram e continuam sendo espelho, não só para os teus frades,
senão para toda Igreja, e assim também será a tua morte: embora seja para os
teus frades e para muitos outros, motivo de tristeza e de dor, para ti se
converterá em motivo de consolo e de gozo infinito, já que passarás de grandes
trabalhos a um grande descanso, de muitas dores e tentações à eterna paz, da
pobreza temporal que tanto amaste e à qual permaneceste sempre fiel às
verdadeiras riquezas sem fim, e desta mesma morte transitória à vida perpétua,
onde verás o Senhor teu Deus face-a face, a quem amastes neste mundo com tão
fervoroso amor e desejo”.
Na
realidade, a morte do Pobrezinho amoroso foi uma cena cheia de poesia e
encanto, por que toda a sua vida havia sido um hino de caridade e gozo no
Senhor.
Tomás de
Celano nota expressamente que, desde sua juventude, nosso Santo sentiu a alma
inundada por uma onda de inefável alegria na contemplação gozosa da criação; e
se por acaso pronunciava o nome do Criador, logo aparecia embebido em tal
êxtase de júbilo e de graça puríssima, que qualquer um o tomaria por um ser do
outro mundo.
Lembrando-se
do que disse o Espírito Santo por boca do Apóstolo: “Deus ama a quem dá com
alegria”, Francisco não deixou desaparecer nem uma só vez o sorriso de seus
lábios e a alegria do seu coração, nem mesmo ante provas e sacrifícios que a
sua nova vocação exigia.
Contemplemos
esse jovem, cujo pai, um dos homens mais ricos de Assis – o avarento Pedro
Bernardone – arrasta brutalmente pelas ruas da cidade, enchendo-o de insultos,
golpeando-o sem compaixão e trancando-o na prisão familiar. “Mas, ainda ali, no
meio das trevas - escreve Celano -, sente-se embriagado por uma alegria tão
grande que, todo inflamado por ela, decide abandonar sua prisão e se expor aos
insultos e maldições... E, com efeito, levanta-se alegre e festivo, preparado
para combater em favor do Senhor”.
Pouco
depois, diante do bispo Guido II, o jovem e rico Francisco se despoja
decididamente, sob o olhar enfurecido de seu pai e em meio à multidão
emocionada de seus co-cidadãos, de quanto possui neste mundo, até de suas
próprias roupas, de tal maneira que o Pastor espiritual vê-se obrigado a
envolvê-lo com seu manto. Observemos como seus olhos e seu rosto brilham de
gozo, e escutemos com que ímpeto sai dos seus lábios e de seu coração um
ardente canto de felicidade. Pobre, desnudo, desprezado, Francisco crê e
proclama-se realmente feliz porque, a partir daquele momento pertence por
completo ao seu Senhor, e exclama com lírico entusiasmo, dirigindo ao céu sua
alma e seu olhar:
- Até
aqui chamei de Pai a Pedro Bernardone; de agora em diante não chamarei senão a
Vós, ó meu Deus, com este doce nome.
Pouco
tempo depois, vemo-lo subir, coberto com uma miserável roupa, as vertentes do
Subasio e internar-se na montanha, com a liberdade dos filhos de Deus,
preenchendo com seus harmoniosos cantos os bosques e as selvas. Encontra
ladrões ou hereges que lhe interrogam a razão de sua alegria e proclamam-no
arauto do grande Rei. Lançado em uma fossa cheia de lodo e neve, sai com
tranqüila serenidade e, contentíssimo com o incidente, prossegue a subida do
monte, lançando aos ares um hino de louvor.
Sigamo-lo
por todas as etapas de sua vida de penitente, de apóstolo, de missionário, e
ficaremos admirados ao ver este homem que, precisamente nos momentos mais
críticos de sua existência, nos dias de maior heroísmo, aparece mais alegre e
contente que de costume.
Assim
acontece, por exemplo, quando nos hospitais de Gubbio e Assis consagra-se ao
cuidado e assistência dos leprosos, com delicadeza, diligência e amor de uma
mãe, não obstante a profunda repugnância que sentia aos afetados por aquela
horrorosa doença: Assim acontece quando, pouco depois, na praça do mercado de
sua cidade natal, pede pedras como esmola para continuar a restauração da
igreja de São Damião, cantando entre a multidão que o rodeia o doce refrão:
“Quem me der uma pedra receberá uma recompensa, quem me der duas receberá duas
recompensas e quem me der três receberá três recompensas. Ou ainda quando vai
de casa em casa, vaiado por uns, insultado por outros, desprezado por muitos
como um louco, até pelos garotos que vão lhe atirando pedras e barro, enquanto
ele segue impávido, mendigando de porta em porta, com uma sacola na mão,
recolhendo os desperdícios que formará sua apetitosa refeição.
7.
Estranho fenômeno
Vemos um
estranho fenômeno acontecer nele constantemente: quanto mais sofre, mais
alegre está; quanto mais seu coração se encontra vazio de consolos
terrenos, tanto mais os enche as alegrias do céu; quando as dores, as cruzes e
os sofrimentos são mais numerosos, tanto é mais impetuosa a onda de júbilo que
o arrasta. Por isso o vemos correr espontaneamente em busca de sofrimento e
humilhações, com o mesmo entusiasmo com que os mundanos corre em busca das
honras e dos prazeres...
Celano
observa, em particular, como o Santo disciplinava algumas vezes o seu inocente
corpo, flagelando-o duramente com ásperas cordas. Os três companheiros
confessam, por sua parte, que o Seráfico se atormentava com tamanha
mortificação da carne que, são ou doente, nunca quis ser indulgente consigo
mesmo; pelo que, estando próximo de morrer, confessou haver pecado muito contra
o irmão corpo.
Há
escritores que olham como uma extravagância o ardente desejo de dores e
humilhações de Francisco, mas basta a mais simples reflexão e o mais elementar
sentido comum para justificar nosso Santo de tão grosseira acusação.
O motivo
que o induzia a buscar o seu próprio desprezo não era certamente a vaidade,
senão o desejo cada dia mais vivo de agradar a Deus e de imitar mais de perto a
seu Filho Jesus Cristo. Queria destruir em si a obra do pecado, para que
triunfasse sem obstáculo a ação da graça; queria aniquilar-se ante o Altíssimo,
a fim de desaparecer Nele mais facilmente. A penitência que nasce da virtude de
Jesus em Nazaré é “obediente, afável, humilde, suave, mansa, paciente, como que
procede da caridade: de tal maneira que, mesmo ao afligir o corpo com a dor e o
espírito com a contrição, se mantém em certo modo alegre, animado e fortalecido
pela esperança de seu propósito, conservando toda doçura da afabilidade e
grandeza de ânimo”.
Esta é a
verdadeira causa porque o nosso Santo, que chamava de irmã a doença e que mais
tarde receberá como amiga a própria morte - à qual, menos ainda que a pobreza,
“ninguém vê entrar prazeroso por suas portas” - foi sempre tão jovial e
festivo, até nos momentos em que a negra melancolia pareça haver ocupado seu
espírito e turbado o seu coração.
Quantas
vezes, pensando nos anos de sua juventude passados em meio às vaidades do
mundo, e em sua pretendida ingratidão à graça divina depois de sua conversão,
se lo via inundado de lágrimas! Quantas vezes, contemplando a debilidade, a
mansidão, a singeleza e docilidade de seus pobres animaizinhos, ou as dores e
sofrimentos de seu próximo, colocava-se a chorar como um menino! Quantas vezes,
meditando os mistérios de nossa redenção, caia em lágrimas e soluços aos pés do
Crucifixo!
É que, se Francisco
tinha o dom do sorriso, tinha também o das lágrimas; e essas serão para o
Seráfico não só sacramento que lava, senão também pérolas que adornam. Ele, que
devia inaugurar entre os homens o advento de uma nova bem-aventurança, a da
alegria, realizava através das lágrimas a paz prometida por Cristo a seus
seguidores e degustava, em meio ao pranto os mais suaves e doces consolos. Eis
aqui porque jamais renunciou às inefáveis doçuras do pranto, ainda que lhe
custasse perder a vista.
8. O ideal
franciscano
A vida que
os pobres frades abraçavam para seguir o seráfico era em si mesma dura e
penosa. A realidade do ideal franciscano, que o grande Patriarca dos pobres
havia feito brilhar ante a alma singela e que havia fixado, em suas linhas
fundamentais, na Regra de vida que lhes havia mandado observar - ideal de
pobreza absoluta, pureza integral, obediência perfeita, humildade profunda,
caridade, de penitência, zelo apostólico, e completa renúncia a todas as
seduções do demônio, invejoso de nossa felicidade - exigia-lhes sacrifícios que
muitas vezes beiravam o heroísmo.
Sem a paz,
a concórdia, a união de ânimos, a mútua compaixão, a imolação recíproca pela
santidade e pela perfeição evangélica, logo aquele gênero de vida se faria
intolerável. Sem essas coisas não passaria por suas rústicas moradas a suave
brisa de sua serena alegria. À falta das satisfações terrenas acrescentaria a
privação das alegrias celestes.
Era
necessário que o peso das austeridades fosse aliviado e adocicado pela amabilidade
do trato, pela suavidade das palavras, pela serenidade do rosto, pelo sorriso
dos olhos, pelo canto dos lábios e do coração, por aquela pura e cristã alegria
que deveria emanar, como perfume de nobreza, de cortesia e de amor fraterno, de
toda sua pessoa, bem como de suas obras e de sua vida integralmente.
Em uma
página muito sugestiva de sua “legenda”, Celano descreve-nos muito bem a
vida que levavam os primeiros discípulos do Seráfico na Porciúncula e em
Rivotorto, com um lirismo cheio de poesia:
“Quando
aqueles amáveis frades voltavam a encontrar-se juntos, sentiam-se tão cheios de
contentamento, que parecia não se recordarem do que em suas correrias
apostólicas haviam tido que sofrer. Durante o dia se entregavam à oração e ao
trabalho manual, e à meia-noite se levantavam solícitos para rezar, com grande
devoção e abundantes lágrimas e suspiros. Amavam-se uns aos outros como uma mãe
ao seu amado filhinho.”
Era tão
intenso o fogo da caridade que lhes parecia pouco expor seus corpos à morte,
não só por amor a Cristo, mas também pela saúde da alma e do corpo de
seus irmãos. E assim, certa vez, dois deles andavam juntos quando um louco
começou a atirar pedras em um deles; o outro, dando-se conta, apresentou o seu
corpo aos golpes das pedras, preferindo ferir-se a ver seu irmão ferido. Era
assim por causa da mútua caridade que os consumia, e em virtude da qual estavam
dispostos a dar a vida um pelo outro. Estavam tão bem fundados na humildade e
na caridade e haviam lançado tão profundas raízes nela, que todos reverenciavam
a cada um como a seu senhor, e os que pela dignidade do ofício, ou por outro
motivo, estavam em um grau mais alto que os seus companheiros, pareciam mais
humildes e cuidavam de si mesmos menos que dos outros. E todos estavam sempre aptos
a obedecer, qualquer que fosse o mandato, porque jamais lhes passava pelo
pensamento que o superior pudesse exceder no uso da autoridade; e desde o
momento em que olhavam as ordens da obediência como a expressão da vontade de
Deus, era fácil e suave colocá-las em prática.
Vigiavam.
Além do mais, com toda solicitude, para não se ofenderem mutuamente. E se por
acaso um dizia ao outro uma palavra que gerasse perturbação, o ofensor não
encontrava descanso até haver reconhecido sua culpa e lançar-se humildemente
por terra, obrigando ao ofendido a por o pé sobre sua boca. E quando este se
negava a fazê-lo, se o ofensor era superior ao ofendido mandava-o por
obediência; em caso contrário, fá-lo-ia ser mandado pelo superior. E assim
procuravam desterrar dentre si todo rancor e malícia e observar sempre a
caridade, esforçando-se com todo empenho em por a cada vício a virtude
contrária, prevendo e ajudando os seus esforços com a graça de nosso Senhor
Jesus Cristo.
Alegravam-se
continuamente no Senhor, não tendo dentro nem fora de si coisa alguma que lhes
pudesse causar tristeza. E quanto mais apartados estavam do mundo, tanto mais
unidos se encontravam com Deus.
Francisco
era para cada um de seus discípulos um modelo perfeito, exemplar esclarecido,
mestre eficaz de todas as virtudes que formam o conjunto ideal da vida
religiosa, das mais simples até as mais sublimes, em modo particular da
bondade, misericórdia, doçura, alegria e serenidade, que caracterizavam seu
espírito. Escreve Le Monnier: “Apresentou-se sempre ante seus companheiros com
o rosto cheio de uma expressão angelical... fixava-os sempre com aquele olhar
terno, próprio de um pai e de uma mãe, sacrificando por eles tudo quanto tinha:
seu tempo, seus conselhos, e sobretudo seu coração”.
O amado
Pobrezinho era muito austero consigo mesmo, mas não permitia que seus filhos se
mortificassem com excessiva dureza e costumava aconselhar quer tratassem ao irmão
corpo com generosa caridade, provendo suas necessidades físicas, para não
lhe dar motivo de queixa ou de preguiça. É conhecido de todos o fato referido
nos Fioreti de São Francisco, o chamado “Capítulo das esteiras” quando
pediu a seus frades para que o entregassem todos os instrumentos de penitência
que usavam para atormentar suas carnes.
São
Boaventura faz referência a um episódio um tanto engraçado. Certa noite,
enquanto os primeiros discípulos do Santo dormiam no pequeno casebre de
Rivotorto, um deles despertou aos demais, gritando:
“Estou
morrendo, estou morrendo!”
Todos se
levantaram de seus pobres leitos, cheios de espanto de terror, e Francisco,
colocando-se instantaneamente de pé, gritou:
“Levantem!
Acendam uma luz!”
Depois que
a acenderam, perguntou quem havia gritado.
“Eu, disse
o aludido, Pai, estou morrendo de fome!”
Isso não
era realmente muito difícil de acontecer, pois os frades jejuavam com muito
rigor. Francisco fez com que preparassem do pouco que tinham e sentou-se à mesa
com o faminto frade, comendo alegremente em sua companhia, para que não se
avergonhasse de comer só àquelas horas, e exortando depois a todos os
companheiros a que medissem as próprias forças antes de fazer penitência.
O doce Pai
mostrava-se, de uma maneira particular, bom e amável com os frades que se
encontravam atribulados, fracos ou doentes. Há muitos exemplos. Celano conta,
por exemplo, o de um pobre frade, atormentado pela mesma tentação de
desesperação, mais terrível que as da carne, que depois de haver feito tudo
quanto pode por vencê-la, convenceu-se de que só Francisco poderia livrá-lo da
mesma. Foi ao seu encontro chorando e, lançando-se aos seus pés, não podia
pronunciar palavra, pois os soluços afogavam sua voz. O Santo com seu olhar
profundamente psicológico, leu instantaneamente o interior daquela alma,
estremeceu ao pensar nas angústias que deveria estar sofrendo e, envolvendo
aquele seu pobre filho com um olhar de terna compaixão, mandou que o demônio
deixasse de atormentar àquele pobre infeliz. Dirigiu depois ao tímido religioso
palavras tão doces e carinhosas que no mesmo instante renasceu em seu espírito
uma profunda paz, jamais abalada no restante de sua vida.
Certa
manhã, Francisco levantou-se cedinho para acompanhar um frade doente a um
vinhedo, acreditando que este se sentiria bem comendo algumas uvas em jejum.
Chegando ali, sentou-se ao lado do doente e cortando um cacho, começou a comer
algumas uvas, a fim de que o companheiro não se sentisse envergonhado em fazer
o mesmo. O frade, entendendo o pensamento do Mestre, ficou tão impressionado
com aquela delicadeza paterna que, depois de vários anos não podia falar desse
acontecimento sem sentir-se comovido a ponto de derramar ternas lágrimas.
Também as
Clarissas, não menos que os Menores, encontravam no suave Pobrezinho um pai
terno e afetuoso. Ele as protegia, aconselhava, e animava nos sacrifícios de
sua vida austera. De vez em quando as visitava, para alegrando-as com sua
presença e para consolando-as com sua palavra.
Quando o
Santo se deu conta de que suas forças diminuíam, compôs para estas suas filhas,
que sofriam só em ver-lhe sofrer, um cântico espiritual com música, segundo se
diz, preparada por ele mesmo, no qual recomendava três coisas: que fossem fiéis
à santa obediência, à santa pobreza e ao santo amor; que se sustentassem
discreta e suficientemente, com alegria e agradecimento ao Senhor que lhes
concedia o necessário; e que encontrassem valor nas enfermidades e no serviço
aos enfermos.
Para São
Francisco todos os homens eram irmãos, “feitos todos à imagem de um só”, e todos
redimidos pelo mesmo sangue de Cristo. Por isso ele foi o defensor mais eficaz
e o cantor mais entusiasta daquela fraternidade universal - que tem seu
fundamento na indestrutível comunidade de origem, de natureza e de destino -
precisamente numa das épocas em que a igualdade de raça e da unidade social
foram negadas e violadas pelo orgulho da riqueza, da nobreza e da ciência. É
sabido como no século XIII as mais temíveis lutas de partido, e as mais ferozes
vinganças populares ensangüentaram as regiões da península itálica
Apresentou-se
entre os combatentes como o apóstolo da paz, levando em suas mãos o ramo de
oliva; e para melhor dobrar o coração dos poderosos e tiranos, fez-se amigo, a
exemplo do divino Salvador, dos pequeninos e dos oprimidos. E isto é
precisamente o que explica, em grande parte, sua admirável popularidade e a
prodigiosa eficácia de seu apostolado.
10. O
Santo do amor
Dizem que
São Francisco é o Santo do amor; do amor terno, profundo, universal. E isto é
muito certo!
São
conhecidas suas relações com os leprosos ou doentes do bom Deus, com os pobres
do Senhor, com os descartados da sociedade.
O pobre é
como outro Cristo, por isso deve ser tratado como o Filho de Deus em pessoa,
desde o momento em que Ele, o divino Salvador, se fez solidário, por assim
dizer, com cada um de seus queridos pobres. Francisco entendia assim e por isso
oferecia a estes os cuidados mais amorosos. Mostrava-se contentíssimo quando
encontrava algum; e se isso ocorria na rua, dava-lhe o melhor lugar e manifestava
por ele um grande respeito e doce simpatia.
Também os doentes
eram para ele objeto dos mais ternos cuidados e da mais abnegada solicitude.
Tomás de Celano afirma que o Santo “fazia seus os sentimentos de todos
os doentes, consolando-os com palavras cheias de doçura, quando não podia
socorrê-los com as obras”; quando era possível, ajudava-os com tamanha bondade
que não somente conseguia restituir-lhes a saúde do corpo; muitas vezes
realizava também em suas almas uma admirável conversão. Nos Floreti conta-se
que por causa de muitos e graves sofrimentos, um pobre leproso andava
proferindo blasfêmias contra Deus e contra os homens, escandalizando os
companheiros do Seráfico. Este aproximou-se dele e começou a desnudar-lhe,
lavando e curando-o com tanta paciência e doçura, com tão amorosa delicadeza,
que enquanto o enfermo ficava curado no corpo, sentia que o seu espírito ia
transformando-se por completo. E São Boaventura narra que outro destes
desgraçados leprosos - cujo rosto se encontrava horrivelmente desfigurado por
conta de um espantoso câncer - depois de haver recorrido inutilmente à ciência,
laçou-se desesperado aos pés de Francisco. O santo tratou de impedir aquela
humilhação do infeliz, levantando-o e, abraçando-o fortemente; estampou em seu
rosto um terno e amoroso beijo. Ao contato daqueles lábios virginais, a
horrível enfermidade desapareceu...
E os
pecadores? Quantos infelizes consolou, redimiu e salvou com a doçura de sua
palavra, com o atrativo de seu sorriso e com as efusões de seu coração?!
Existe nos
Floreti um capítulo que narra “como São Francisco converteu três ladrões e
estes se tornaram frades”. São Boaventura, em particular, fala-nos
da misericordiosa ternura do Santo para com as almas redimidas por Cristo e
mortas na sua graça e afirma expressamente que aquele grande Apóstolo estava
persuadido de que não poderia ser amigo do Salvador, se não aquecesse com o
fogo da caridade aquelas almas por Ele amadas. “Santo entre os santos - observa
Celano - amante dos pecadores, como seu divino
Mestre, quando se encontrava em companhia destes parecia mais um entre eles”.
11.
Entusiasmo popular
A
suavidade de seu caráter alegre e jovial é o que nos explica o indescritível entusiasmo
excitado pelo grande Apóstolo no meio dos povos aos quais visitava e
evangelizava.
Os
primeiros que se enamoraram dele foram seus próprios discípulos que, gozando de
sua amável companhia, conheciam melhor que ninguém sua condição suave e benigna
e admiravam suas prodigiosas virtudes. Não se contentavam em venera-lo como
fundador e imitá-lo como Mestre, mas o amavam como pai e amigo. Celano nos fala
daquele religioso simplíssimo, de tão cândida ingenuidade que acreditava ser
obrigado a imitar, em tudo que fazia, o bem-aventurado Pai, “para conformar-se
com ele em todas coisas”, que não queria apartar-se nem por um instante de sua
companhia, seguindo-o por onde quer que fosse, sendo considerado como um
símbolo do amor e da veneração que o Pobrezinho havia chegado a excitar ao seu
redor. Com efeito, apenas se sabia da chegada do humilde Francisco em qualquer
povoado ou cidade, tocavam-se os sinos, os fiéis e o clero davam mostra de
regozijo, e o povo em massa saia para recebê-lo. O maravilhoso triunfo que um
dia Jerusalém viu homenageando o nosso divino Salvador se renovava: a glória do
Pobrezinho. Homens, mulheres... todos apressavam-se, pegando flores dos jardins
e ramos de árvores, levando-as pela cidade e cantando alegremente: Bendito seja
aquele que vem em nome do Senhor!
E quando o
Santo se encontrava no meio do povo, todos queriam ouvir suas palavras, todos
queriam ver o seu semblante. Uns se dirigiam à Igreja, outros corriam à praça,
onde se dizia que ia pregar. Os hereges, que até então haviam recebido muita
atenção, viam-se obrigados a esconder-se pois a fé renovada do povo não
tolerava vê-los. Era muito difícil abrir passagem por entre aquela amontoada
multidão, porque o povo se colocava diante para contemplar o Santo, que algumas
vezes não podia defender sua pobre túnica, já que os fieis cortavam pedaços
inteiros e levavam a casa, guardando-os como relíquias. “Era considerado
abençoado, conclui um moderno biógrafo, aquele que tivesse a oportunidade de
ouvir a sua voz, gozar da serenidade e viveza de seus olhos, beijar a ponta de
seu vestido. Não: ninguém pode tachar-nos de exagerados ao afirmar que o
Pobrezinho foi o consolo e a alegria da Itália do século XIII”.
“Depois de
Deus, os homens; depois dos homens, a natureza. Francisco sabia muito bem a
distância que separava estes três termos, mas não acreditava que existisse
entre eles um abismo insuperável: em sua mente e em seu sentimento estavam tão
unidos como estão na realidade e na vida”.
Eis aqui a
razão porque Francisco foi um dos maiores cantores cristãos da criação durante
a Idade Média. Era da raça dos poetas, como da dos cavaleiros. Sua natureza
estética, delicada, nobre, aristocrática, no verdadeiro sentido grego da
palavra áristos, o impulsava a amar e a cantar com gozo e entusiasmo
tudo que é belo, puro e grande no universo.
Já desde
menino sentia uma grande paixão pelas flores, cujo suave perfume aspirava com
prazer; quando jovem, lhe causava grande impressão os grandes espetáculos da
natureza, desde os mais vulgares até os mais sublimes; já feito homem e chegado
ao mais alto cume da perfeição e da santidade, não mudarão suas tendências
poéticas, e a criação continuará sendo sua irmã e sua amiga. “Abandonava-se com
ingenuidade a todas as suas carícias, sem temer - como os monges antigos - as
seduções que nela pudesse ocultar o anjo caído”. O mundo invisível seguia
manifestando-se a seus olhos com singela grandeza. “Nada havia no mundo -
observa Dubois - desde os anjos do céu até as rochas da terra, que não fosse
objeto de seu amor e veneração. Educado por uma mãe terna, e havendo crescido
em um ambiente rico de todos os dons e de todas as belezas da natureza,
Francisco se elevou tão alto nos sentimentos das maravilhas da criação, que
chegou a ser um dos santos que mais se distinguiram nisso.
E este seu
amor a todo o criado era, o que a sua vez, o que lhe fazia amável e simpático a
todas as criaturas, as quais, vendo nele o verdadeiro tipo da simplicidade,
da inocência e da serena alegria, não fugiam dele como de um inimigo, mas
lhe amavam, obedeciam, e se sentiam - mesmo as mais tímidas - seguras e
tranqüilas em sua companhia, de tal maneira que os episódios que as vezes
encontramos isolados na vida de alguns santos, foram na do nosso um contínuo e
admirável tecido.
Estes
fatos podem explicar-se - como observa muito bem Ozanam, o cantor dos poetas
franciscanos - ou por aquela força do amor que tarde ou cedo comove e subjuga,
ou porque em presença dos servos de Deus os animais não sentem aquele pavor
instintivo que nossa dureza e corrupção inspiram. “Por isso, quando o Penitente
de Assis, meio desfeito pelos jejuns e as vigílias, saía de sua cela para
percorrer os campos da Úmbria, parece que naquele semblante fraco e
espiritualizado, onde já não havia nada de terrestre, os animais não viam mais
que a pegada divina, e o rodeavam para admirar e servi-lo”.
Assim é
que as aves de Bevagna, do Alverno ou das lagoas de Veneza escutavam
tranqüilamente suas pregações; e as lebres, coelhos e faisões corriam para se
esconderem debaixo de sua túnica; e as ovelhas e cordeirinhos a abandonavam
suas pastagens e o seguiam pelos campos, sob o olhar dos pastores admirados; os
pombinhos e rolinhas faziam os seus ninhos junto à sua cela; os grilos formavam
concertos concorrendo com ele no canto de louvor do Senhor, enquanto que o
irmão falcão passava a noite junto à gruta do amado Santo, para despertar-lhe
pela manhã
Mas o
episódio mais nobre, e que constitui a melhor prova do que estamos tratando é a
conversão do feroz lobo de Gubbio. Esta fera, ante a doçura e afabilidade do
Pobrezinho, chega a tornar-se tão mansa e doméstica, que se deixa levar
pacificamente pelo Taumaturgo pelas ruas da cidade, da qual pouco antes era um
terror; e no meio da praça, em presença de todo o povo, coloca a sua garra
sobre a mão de Francisco, como que para concluir com os cidadãos um solene
pacto social.
Onde
encontrar um acontecimento mais eloqüente que este para demonstrar o poder
prodigioso do seráfico Pai, a cuja bondade, doçura, afabilidade, ternura e
amorosa complacência nada poderia resistir, e ante quem tudo cedia sempre, sem
a menor dificuldade?
Até os
elementos inferiores da criação eram seus amigos e se mostravam reconhecidos e benévolos,
sorrindo às suas carícias, prevenindo os seus desejos e cumprindo a sua
vontade. E assim vemos que os espinhos da Porciúncula se transformam em um
campo de rosas; a irmã água se converte em vinho para devolver-lhe as
forças no deserto de São Damião, ou modera o seu ruído entre os barrancos das
Carceri, para não distraí-lo, enquanto ele e seus frades se encontram entregues
à oração; o irmão fogo controla o seu ardor, para não atormentar demais ao doçe
Santo, numa operação cirúrgica sofrida em Rieti.
“Irmão
fogo - havia dito ingenuamente Francisco - eu sempre te quis bem e vou
continuar te querendo, por amor daquele que te criou. Mostra-te suave e benigno
comigo, e não me queimes mais do que eu possa sofrer!...”
O irmão
fogo atendeu ao rogo do Pobrezinho, e não quis atormentar a seu querido amigo.
Eis aqui
como e porque o seráfico Pai amava a natureza e a todos os seres criados, e
estes, por sua vez, lhe correspondiam palpitantes de amor; e eis aqui a razão
porque costumava chamar todas as criaturas com o doçe nome de irmãos e irmãs,
convidando-os a louvar e a engrandecer o Senhor.
13. O
Canto do Irmão Sol
Este
maravilhoso Canto foi composto em 1225, um ano antes de morrer, quando, havendo
descido do monte Alverno - seu Tabor e seu Calvário - se trancou em uma pequena
cela de varas e ramagem, mandada construir por Irmã Clara no diminuto horto de
São Damião. Naquele pedaço de paraíso, o Estigmatizado poderia reviver em sua
memória todas as lembranças do passado. “Aqui a oliveira a qual, livre cavaleiro,
havia atado seu corcel; ali o banco de pedra, onde se sentava seu amigo, o
ancião sacerdote da pobre capela em ruínas; mais adiante o esconderijo em que
se havia refugiado, para escapar das iras do pai, e que guardava o misterioso
Crucifixo bizantino, que o falou na hora mais solene de sua vida”.
Por sua
parte, Clara e suas virgens discípulas o recreavam com seus doces cantos e com
o grato perfume de suas virtudes. Repentinamente, numa manhã, numa daquelas
maravilhosas manhãs úmbrias, o Pobrezinho não pode conter a alegria em seu
coração e, tomado de uma embriaguez infinita, se eleva em meio aos arbustos e
flores, e debaixo do azulado manto do céu e da glória do sol nascente, “lança
aos ares, com uma voz clara, limpa e melodiosa, uma harmonia sinfônica ,
precursora de uma nova era da civilização; lança, no encanto de seu amor, sobre
as férteis planícies e sobre os risonhos montes da Úmbria natal, seu canto
sublime, vívido e puro”:
“Altíssimo
onipotente e bom Senhor,
teus são
os louvores, a glória e a honra,
e toda
benção.
A ti só,
Altíssimo, correspondem.
E nenhum
homem é digno
de
pronunciar teu nome.
Louvado
sejas, meu Senhor,
por todas
as tuas criaturas,
especialmente
pelo irmão sol,
que faz o
dia e por ele nos iluminas.
Ele é belo
e radiante e, com grande esplendor
de ti, ó
Altíssimo, recebe seu significado.
Louvado
sejas, meu Senhor,
pela irmã
lua e as estrelas;
no céu as
formaste claras, preciosas e belas.
Louvado
sejas, meu Senhor, pela irmã água,
a qual é
muito útil, humilde, preciosa e casta.
Louvado
sejas, meu Senhor, pelo irmão fogo
com o qual
iluminas a noite,
e é
formoso, alegre, muito robusto e forte.
Louvado
sejas, meu Senhor, por nossa irmã, a mãe terra,
que nos
sustenta e governa
e produz
diversos frutos, flores coloridas e ervas”.
Mas o
canto da alegria franciscana não havia terminado nestas últimas palavras:
faltavam ainda duas estrofes, por sinal, as mais sublimes e comovedoras.
Eis aqui
em que circunstâncias Francisco acrescentou a primeira.
Um dia,
hospedado caritativamente no palácio episcopal, repousava num leito,
enfraquecido pelas doenças, quando ouviu dizer que se instalara a discórdia
entre o bispo e a autoridade suprema de sua amada Assis. Se fosse mais jovem e
estivesse são, ele mesmo em pessoa desceria à praça para pacificar os ânimos
com a força de sua palavra instava doente, e teve que contentar-se com o lançar
mão da eficácia persuasiva do canto. Pôs-se a entoar hinos à beleza do perdão e
da paz. Depois pediu que viesse um de seus companheiros e lhe disse:
- Vai até
o prefeito e peça-lhe, em meu nome, que se digne vir ao palácio do Bispo, com
os principais cidadãos e com quantos possa convencer que lhe acompanhem.
E enquanto
aquele vai cumprir o seu mandato, Francisco chama outros dois frades, a quem dá
um mandato semelhante, dessa vez dirigido ao Bispo, instruindo-lhes sobre o que
deveriam fazer. Quando todos se encontravam reunidos no pátio do palácio
episcopal, os dois poetas do Senhor se adiantaram, colocaram-se no meio da
multidão, sobiram numa plataforma, da qual podiam ser vistos por todos, e,
dando a entender que queriam falar, um deles exclamou:
- Frei
Francisco compôs, durante sua enfermidade, para a glória de Deus e edificação
do próximo, um cântico de louvores ao Senhor pelas criaturas que Ele criou; e
pedindo-nos que vos suplicássemos escutar com muita devoção.
E
começaram a cantar, com fervoroso entusiasmo, o Canto do Irmão Sol,
terminando assim:
“Louvado
sejas, Senhor, por aqueles que perdoam por teu amor
e sofrem
enfermidades e tribulações.
Benditos
os que sofrerão em paz,
porque de
ti, Altíssimo, serão coroados”.
A
autoridade, apenas havia terminado de ouvir a nova estrofe, pôs-se a chorar
amargamente, manifestando que estava disposto a perdoar, por amor de Cristo e
de seu servo Francisco, não só ao Bispo - que prometeu outro tanto - senão até
“a quem houvesse dado a morte a seu mesmo irmão, ou a seu próprio filho.”
O povo de
Assis saudou com gritos de júbilo a paz que voltava a reinar sobre as verdes
colinas da Úmbria, e o Canto do Pobrezinho deve ter infundido por aqueles dias,
em todos os corações, uma alegria santa, pois era acontecimento bastante raro e
estranho um acerto amistoso entre príncipes, quando tão acirradas se
encontravam as iras dos partidos opostos, com suas paixões a desbordar
incontrolavelmente.
15. Irmã
morte!
Frei
Elias, vendo que o seráfico Pai continuava contente, mesmo encontrando-se às
portas da morte, pensou que era seu dever fazer-lhe uma observação.
-Ó
amadíssimo Pai, não só gosto, senão que estou profundamente edificado com esta
alegria celestial que, nessa última enfermidade, sabes mostrar tu e teus
companheiros; mas temo que chegue a ser causa de escândalo para o povo ouvi-los
cantar continuamente. “Como - as pessoas dirão entre si - pode estar tão
contente, estando à beira do sepulcro? Um santo deveria pensar na morte com
mais seriedade!”
Francisco
respondeu:
- Lembras,
ó irmão, da visão que tive em Foligno a dois anos atrás, e na qual Deus dignou revelar
o fim de minha vida e garantir-me, além do mais, o perdão de meus pecados e a
felicidade do céu? Pois bem, deves saber que, até aquele dia, o pensamento da
morte me infundia temor, e a lembrança de minhas culpas fazia-me derramar
amargas lágrimas. Porém, depois daquela revelação, sinto que o gozo inunda
minh’alma de tal maneira, que já não posso chorar; antes bem, vejo-me na doçe
necessidade de estar sempre alegre: deixai-me, pois, ó irmão, gozar no
Senhor, e alegrar-me em seus louvores e em minhas doenças!
Ouvindo de
um dos companheiros que o assistia sobre a aproximação da hora de seu ocaso.
Francisco não pôde fazer menos que se alegrar, juntamente com o Salmista
divino, ao grato anúncio: Iremos à casa do Senhor! Fazendo vir à sua
presença os seus fiéis amigos, Frei Anjo e Frei Leão, exortou-os a que
cantassem as laudes compostas por ele e o Canto do Irmão Sol.
Depois que
acabaram, o Pobrezinho, pedindo à poesia e à música suas últimas harmonias,
quis dirigir à morte, vista pelos homens como inimiga, e à qual ele, ao
contrário, havia chamado sempre com o doce, cortês e afetuoso nome de irmã,
sua pessoal e alegre saudação:
“Louvado
sejas, meu Senhor, por nossa irmã, a morte corporal
da qual
nenhum homem vivente pode escapar.
Ai daqueles
que morrem em pecado mortal!
Benditos
aqueles que se encontram em sua santa vontade,
porque a
segunda morte não lhes fará mal.
Louvai e
bendizei ao meu Senhor.
E dai-lhe
graças e serví-o
sempre com
toda humildade”.
16. A voz
de comando
Aproximando-se
o tempo do Capítulo, o bem-aventurado Francisco disse a seu companheiro:
“Estou
persuadido de que não merecerei o nome de Frade Menor até que não chegue ao
estado que te vou descrever. Supõe tu que os frades, com grande devoção me
convidem ao Capítulo, e eu, levado pela mesma, assista-o. Durante a assembléia,
me obriguem a fazer uso da palavra e a predicar-lhes em público; e eu,
colocando-me de pé, pregue seguindo o Espírito Santo. Suponhamos agora que,
depois do sermão, eles comecem a dar vozes contra mim e a dizer: “Não queremos
que tenhas autoridade sobre nós, porque não és um bom orador; és muito vulgar e
sem literatura, e nos envergonharemos de ter tal superior”. E, para arrematar
os males, coloquem-me para fora com grande vergonha e confusão. Pois bem: nunca
serei um bom Frade Menor, se em semelhante caso não conservar a alegria que
brilhava em meu semblante e fazia dar saltos ao meu coração ao ver-me honrado e
venerado, porque se a honra e exaltação, tão perigosas para a alma, inundam-me
de gozo, com tanta mais razão devo alegrar-me e regozijar-me em meio às
ofensas, sendo seguro o crescimento do espírito!...”
Em outra
ocasião, querendo descrever a imagem do Frade Menor ideal, imagem que, pelo
demais, não era fruto de sua fantasia, mas reproduzia as virtudes e traços
característicos de seus mais íntimos e queridos discípulos, dizia:
- “O Frade
Menor ideal deve ter a fé e o amor à pobreza que possui Frei Bernardo de
Quintaval, a pureza e singeleza de Frei Leão, a nobreza e cortesia de Frei
Anjo, a sensatez e destreza nos negócios que possui Frei Masel”.
Tinha uma
ternura e predileção especiais por estes religiosos ideais. Conta-se que certa
vez, quando Francisco vivia na Porciúncula, um desses regressava de Assis,
depois de recolher esmola, à hora do crespúsculo. Com o saco nas costas, vinha
cantando em voz alta os louvores e magnitudes do Senhor. O Santo ouviu e,
transbordando de gozo, saiu ao seu encontro, beijou-o nas costas, na parte
sobre a qual levava o saco e, carregou o mesmo para casa, dizendo com viva
satisfação a quantos encontravam:
“Quero que
meus frades saiam e regressem com as esmolas que recolheram; alegres contentes
e louvando ao bom Deus!”
Como ele
tinha o coração sempre alegre só queria ver junto a si rostos alegres e de bom
humor, não suportando de seus frades a tristeza, o esquivar-se e a aflição.
“Pecaste,
meu irmão? Perguntou a um que aparentava estar triste e melancólico: se te dá
remorso em algo da consciência, vai à tua cela e ali deixa doer em boa hora e
pede perdão ao céu; mas aqui, diante de mim e dos outros frades, procura
estar sempre alegre e contente, porque não convém que o servo de Deus pareça
triste.
Em outra
ocasião repreendeu asperamente a dois de seus religiosos porque levavam a barba
comprida, descuidada e suja, sob pretexto de humildade, dizendo-lhes:
“Não se
deve tornar odiosa ou ridícula, com presunçosas novidades, uma religião que
Deus fez bela em suas origens”; e foi então quando o santo pronunciou aquela
maldição, que ainda hoje se encontra junto ao seu Testamento, contra os que
destroem na Ordem o que Deus, por meio de seu santos religiosos, edificou e não
cessa de edificar.
Refere-se
à tristeza como o mal babilônico, fazendo alusão à Babilônia por ele
abandonada, isto é, o mundo.
“Deixai
que os que pertencem ao diabo andem com a cabeça baixa, dizia; nós devemos
estar sempre de festa e regozijando com o Senhor! Porque - acrescentava com
fervoroso entusiasmo - acaso não somos nós, os Frades Menores, os cantores e
poetas do bom Deus, destinados a levantar os corações dos homens e movê-los a
uma alegria espiritual ?”
Enfim, e
como conclusão de tudo que foi dito, basta notar que a estima que Francisco
tinha à prática desta virtude da alegria entre os seus frades era tanta que chegou
até a fazer dela um dos preceitos de sua Regra.
“Os frades
evitem aparentar exteriormente tristes e sombrios, na Regra antiga se lê; como
os hipócritas: antes, mostrem-se alegres no Senhor, regozijados e
convenientemente amáveis”.
Nos
primeiros tempos da Ordem, os franciscanos praticavam e cultivavam a alegria
seráfica com um cuidado especialíssimo. Observemos os fatos e veremos que os
que mais se distinguiram no exercício contínuo dessa virtude, imitando o santo
Patriarca, foram os seus mais íntimos e amados discípulos. Basta citar os nomes
de Frei Leão, Frei Gil ou Egidio, Frei Junípero... e teremos a demonstração
mais evidente e triunfal desta verdade histórica.
Frei Leão,
célebre por sua sinceridade e amor ao Pobrezinho, o amigo mais fiel deste, seu
confessor, seu secretário, sua ovelhinha, ou melhor ainda, a “ovelhinha do bom
Deus”, meritou passar em companhia do Mestre as horas mais sublimes e
deliciosas e dele receber uma benção especialíssima: cantar com ele antes que
qualquer outro, os louvores do Senhor e o hino das criaturas...
Frei Gil,
em seus “Fatos notáveis”, deixou admiráveis sentenças a respeito da
alegria seráfica, da que ele mesmo foi modelo. Dele contam que, no jardim do
convento perto de Perugia, costumava escutar as pombas e falava familiarmente
com estas. Durante as belas manhãs de primavera, era comum vê-lo passeando de
cima a baixo por entre os floridos prados, beijando a vegetação e as pedras,
cantando os louvores do Senhor, acompanhado - à imitação do Mestre - de dois
pedaços de madeira, simulando estar tocando um violino.
São
Francisco, graciosamente, afirmava sobre Frei Junípero: “Quem me dera ter uma
grande selva de juníperos!” Este, com seu imperturbável bom humor havia
conseguido desconcertar irados, como aquele pobre homem, a quem tinha enraivado
por haver cortado a pata de um dos seus porcos para poder cozinhar e dar a um
religioso que estava doente. Levado pelo espírito de humildade e santa alegria,
mistura-se com as crianças, para grande admiração dos soberbos do mundo, e
começa a rodopiar alegremente pelas ruas de Roma.
No campo
femininoos modelos de serenidade e alegria vêm de Clara e suas irmãs - as
filhas da segunda Ordem - verdadeiras discípulas de Francisco. Quanto à
primogênita do seráfico, mesmo em meio às mais duras provas e terríveis
austeridades, “seu semblante parecia sorridente e seu coração alegre e
comunicativo”. Dessa dama forte e delicada parece que desprendia o semblante
daquela luz serena e brilhante que anuncia seu nome: Clara luce clarior;
e a quantos se lhe acercava, comunicava algum raio daquele serenidade, daquela
graça, daquela imperturbável paz que inundava o seu espírito e o seu coração.
Encontrando-se no leito de morte, Frei Reginaldo, que exortava à paciência,
ouviu dela esta preciosa confissão:
“Desde que
conheci, por meio de Francisco, a graça de nosso Senhor, nenhuma dor me foi
penosa, nenhuma penitência grave, nenhum sofrimento do corpo mortificante”.
E entregou
a sua formosa alma, assistida por Frei Junípero, “o incomparável arauto do bom
Deus”, e por Frei Leão, a amada ovelhinha, enquanto as monjas, chorando de
alegria, cantavam louvores ao Senhor.
Isabel da
Hungria, uma das figuras mais simpáticas da Terceira Ordem Franciscana, também
foi modelo de amabilidade e heroísmo. O exemplo mais palpável é o da noite em
que, depois de haver perdido tudo quanto tinha, ter sido derrubada do trono, e
expulsa brutalmente de seu castelo, dirige-se, com o coração transbordante de
gozo, à igreja dos Frades Menores, pedindo que cantem um Te Deum de ação de graças
ao Senhor pelos grandes benefícios recebidos. Durante sua breve existência, tão
agitada e cheia de calamidades, a amável rainha adotou como lema o “servite
Domino in laetitia” do salmista; e, à imitação do seráfico Pai, quis colocá-lo
em prática de maneira perfeita. Por isso mereceu ser apresentada por São
Francisco de Sales, o santo da suavidade e da doçura franciscana nos tempos
modernos, como um ideal perfeito de alegria celeste.
17. O
pensamento de São Francisco
Como este
homem, que se chama Francisco de Assis, que viveu numa época de grandes lutas
sociais, civis e religiosas, pregando a paz e a fraternidade cristã em um
século transtornado pelo ódio e pelas guerras; este homem, que não possuía
nenhum dos bens da terra, riquezas, honras, legítimos gozos da vida - pois se
havia desposado com a dama Pobreza -; este homem, que havia renunciado a todas
as vaidades do mundo para abraçar as humilhações da cruz; que se havia
sujeitado aos jugos da obediência e de uma regra severíssimas que ordenava até
as ações menores de sua vida; que havia professado o Evangelho da penitência e
da mortificação; este homem que se nos apresenta tão puro, tão humilde e
singelo, privado de todos aqueles bens nos quais os demais homens buscam a
felicidade, o bem-estar, a paz... como este homem, o seráfico Pobrezinho, pôde
estar sempre tão contente, tão alegre, tão festivo e sereno, mesmo em meio às
mais fortes tempestades do sofrimento e da dor?... Eis aqui como se apresenta o
problema, como se expõe a pergunta: uma das primeiras causas da alegria na vida
é o saber ser dono da própria vontade, triunfar em suas próprias misérias e
debilidades, não sucumbir baixo o peso da cruz, ou permanecer tranqüilos e
serenos na dor e na perseguição. “E agora, Frei Leão, ouve a conclusão: Sobre
todas as graças e dons do Espírito Santo que Deus concede a seus eleitos, está
a de vencer-se a si mesmo, voluntariamente e por amor a Cristo, padecer penas,
injúrias, e desprezos... Nisso está a perfeita alegria!”
“A alegria
de espírito - costumava dizer - nasce da castidade do coração e do fervor da
oração”. Exortando seus frades a regozijarem-se no Senhor, repetia: “O servo de
Deus não deve sossegar até possuir, interior e exteriormente, a alegria
espiritual... Por que então os demônios não lhes podem fazer dano algume se
vêem forçados a dizer: “Desde que o servo do Senhor tornou-se alegre na
tribulação e na adversidade não podemos entrar em sua vida.” Ao contrário,
quando os demônios logram fazer desaparecer, ou impedir de alguma maneira, a alegria
e devoção que provêm da pureza da oração e de outras obras virtuosas, aqueles
espíritos malignos saltam de gozo. Porque quando o demônio consegue ter algum
poder sobre o servo de Deus, se este não aplica os meios para livrar-se dele o
quanto antes por meio da oração, da contrição, da confissão e satisfação,
aquele insignificante fio chegará a se converter um uma grossa corda. Agora
bem, meus irmãos, esta alegria de espírito se gera através da castidade do
coração e da pureza da contínua oração; e para conseguir e conservar estes dois
grandes bens é necessária uma diligência especial... Só o pecado e a
indiferença são capazes de apagar ou de debilitar a celeste e clara luz da
alma. Quando o espírito se torna frio, conclui o nosso Santo, pouco-a-pouco vai
fazendo-se infiel, e a carne e os sentidos buscam incessantemente o que
agrada”.
A pureza
de coração, a castidade do corpo, a inocência da alma, acompanhadas de uma
piedosa e constante oração, são os mananciais da alegria franciscana.
18. A
alegria dos discípulos
Frei Gil
exclama, no capítulo que trata das tentações espirituais e da necessidade de
combatê-las, para não perder a graça do Senhor:
“Se o
homem caminhasse reta e discretamente pelo caminho de Deus, não sentiria nem
cansaço nem tédio em sua viagem; mas o homem que segue os caminhos do mundo não
poderá deixar de experimentar fadigas, tédio, angústias e tribulações, até o
último instante da vida”.
No
capítulo sobre a santa cautela espiritual, exortava:
“Se queres
gozar e estar em repouso, aflige-te a ti mesmo...; se queres viver uma boa
vida, mortifica-te...; se queres ganhar muito e ser rico, procura perder e ser
pobre...”
E no
capítulo sobre a pureza, afirma com mais claridade ainda:
“É
impossível que o homem consiga alguma graça espiritual enquanto se encontre
inclinado aos desejos carnais; assim, move e remove-te como queiras, não
encontrarás outro remédio para poder conseguir a graça espiritual (e por
conseguinte a alegria de espírito), senão avassalando todo espírito carnal...
De todas as virtudes, eu louvaria com preferência a da castidade, porque só ela
é perfeita em si mesma, enquanto que as outras, sem ela, não podem ser
perfeitas...”
E por
isso, muitas vezes, cheio de entusiasmo, Frei Gil cantava:
“Ó santa
castidade,
Quão grande
é tua bondade!”
O seráfico
doutor São Boaventura conhecia perfeitamente o espírito do Mestre e o
assimilava com todo o ardor da alma sedenta de misticismo. Depois de falar, em
vários lugares, de suas obras sobre a alegria espiritual, a qual chama fundamento
e coroa de todas as virtudes, e do gozo carnal, efêmero e transitório, proclama
em alta voz que “sem temor de uma reverência filial e o esplendor de uma
inteligência celeste, o homem não pode, de maneira alguma, experimentar a
doçura da alegria espiritual e o gozo do coração”.
19. O
poema da natureza
A criação
era vista por São Francisco como um espelho luminoso, uma página eloqüente, um
livro magnífico, um poema sublime, um evangelho vivente que fala aos homens,
com harmonia e com força, das perfeições da divindade, e que deve levantá-los
da terra ao céu. Em outras palavras, a criação era para ele um símbolo, uma
elevação, uma orquestra.
Um
símbolo: ele encontrava o invisível no que se vê e o imutável no que passa e
desaparece. Adorava o divino em todas as formas, e se sentia unido a todos os
seres, verdadeiros ou imaginados por sua mente.
Para o
santo, a água era imagem da penitência que purifica a alma das culpas, e por
isso tinha tal respeito que, quando se lavava, procurava que não caísse nem uma
gota que pudesse ser pisada. O sol, a lua e as estrelas, não só lhe falavam,
como ao Profeta, dos esplendores do Senhor, senão que lhe trazia ao pensamento
a fonte da luz, da graça, da vida. A estabilidade e firmeza das rochas era para
ele uma figura de seguro refúgio que se encontra em Deus; e quando caminhava
sobre as pedras, fazia com especial cuidado, porque lhe recordava o divino
Salvador, chamado pedra angular. A visão de uma flor em sua frescura matinal,
ou de um ninho de inocentes passarinhos com seus biquinhos abertos numa ingênua
atitude de espera, revelava-lhe a genuína graça e pureza de Deus, e a ternura
infinita de seu coração. Nas rosas dos campos respirava o perfume do Lírio
dos vales, cujo bálsamo odorífero e fragrante devolvia a vida aos mortos.
Diante dos cordeiros, figura simbólica de Jesus, não podia conter a sua emoção.
Certo dia em que um homem levava dois desses ao matadouro, atados pelas patas e
pendurados nos ombros, “como uma viva imagem do Salvador cravado e pendurado na
cruz”, entregou ao que os levava o capuz e o manto para resgatá-los.
A criação
é para Francisco, além de um símbolo, uma elevação. Para ele, como para o
Salmista, os céus contam e cantam a glória de Deus, e a terra e tudo que nela
existe não fazem outra coisa senão nos dizer a alta voze - como expressa Santo
Agostinho - que amemos a nosso Senhor. É um convite incessante a louvar,
agradecer e engrandecer o bom Deus.
A criação
era para o Pobrezinho uma espécie de orquestra, da qual se servia para cantar o
seu solene canto triunfal, como o artista se serve das cordas de seu violino
para expressar seus mais recônditos sentimentos.
“Irmão
faisão, louvai ao Senhor” - dizia a uma dessas aves raras que um amigo lhe
havia enviado - e o faisão procurava estar sempre junto a Francisco,
descansando e comendo com ele, recusando outra companhia.
“Cantai os
louvores do Senhor, irmã cigarra”, exclamava Francisco aos pés das oliveiras da
Porciúncula. E a irmã cigarra começava a cantar até que Francisco lhe pedisse
para que parasse.
“Ó irmão
grilo, entoai um hino ao teu Criador”, ia repetindo pelos bosques da
Porciúncula e por entre as árvores do Alverne. E passava as noites debaixo do
manto azulado do céu, bordado de estrelas, numa maravilhosa batalha, ao fim da
qual tinha que confessar, cheio de gozo, que havia sido vencido pelo rei dos
cantores o qual, naturalmente, o fazia melhor que o Pobrezinho.
Benditas
as almas que sabem contemplar a natureza com um espírito de fé. Ante sua mente
iluminada, o universo inteiro se apresenta como uma brilhante escada com a qual
se eleva continuamente a Deus, porque, segundo frase do Apóstolo, “da visão das
coisas terrenas são levadas à contemplação das coisas divinas”.
No fundo
de seu ser, sente ressoar a cada instante a harmonia do universo. Todos os
elementos da criação têm para ele uma nota melodiosa que as preenche de
suavidade e gozo. De todas as criaturas do universo escapa um hino compassado
que canta a bondade, o poder e a magnitude do Senhor. É o encanto do Éden com
toda sua beleza original, a poesia da natureza tal como foi criada por Deus; é
o espetáculo do mundo como Jesus nos ensinou a contemplar, que desejava que nos
lírios do campo e nas aves do céu admirássemos a obra grandiosa da divina
Providência que se renova baixo nosso olhar.
A alegria
espiritual que do alto dessa visão desce a estas almas só pode ser igualada a
que experimentam os filhos de Deus, que se abandonam como crianças nos braços
daquele que é nosso Pai; que se oferecem, qual confiantess pequeninos, aos
ternos cuidados da Igreja que é nossa Mãe; que submetem suas mentes e corações,
com entusiasmo e generosidade, a todas aquelas verdades escuras e luminosas,
cuja clara e misteriosa síntese forma o credo de nossa fé e o fundamento de
nossas esperanças cristãs.
Dessa fé
cândida brota uma flor, um formoso jasmim, na alma do Seráfico, o espírito de
simplicidade, de uma simplicidade realmente infantil. A prática dessa virtude é
pois, condição indispensável para estar sempre de bom humor e, por conseguinte,
uma fonte de bençãos
21.
Virtude desconhecida
“Muitos
cristãos estão tristes porque estão divididos. E porque estão divididos? Porque
não consagrarem-se inteiramente ao Senhor, senão que sempre reservam algo para
si. A unidade do amor forma parte da verdadeira alegria da existência” (Dom
Gai).
Isso quer
dizer que a alegria é fruto natural da simplicidade, assim como a simplicidade
consiste precisamente em saber dar a Deus, sem regateio nem divisões, sem
queixas ou lamentos, tudo quanto Dele recebemos? Uma alma simples não busca
somente a Deus em suas orações, não encontra dificuldades nessa labor, em todas
as partes goza de sua presença. Despoja-se de todo interesse e egoísmo, e desse
buscar a si mesma, que tanto contribuí a alimentar a vaidade e o orgulho. “A
simplicidade e pureza de intenção - adverte Gibergues - consiste em propor, em
tudo quanto se pensa, diz ou faz, um só e único fim: agradar a Deus ou, para
melhor expressar, fazer a vontade de Deus”.
Nos tempos
do Pobrezinho, não eram muito numerosas as almas que reproduziam em sua
existência tão nobre ideal, se consideramos que a vida de então, especialmente
nas cortes feudais, nos povoados e nas cidades republicanas, era uma vida de
comodidade, de riqueza, de elegância e suntuosidade; mas que hoje especialmente
a “santa simplicidade” se vê desterrada do mundo do luxo, da moda e de todo confort
moderno, para dar lugar a uma vida artificial e complexa, cheia de hipocrisia e
de mentiras sociais.
A pobreza,
uma das virtudes fundamentais e características de sua vida, era filha da
simplicidade; já que o Santo não desprezou os bens da terra, mas, tendo
continuamente sua alma ocupada em Deus, devia desprezar as misérias do mundo.
22. Homem
singelo
Os companheiros
de infância e juventude de Francisco já louvam sua pureza e ingenuidade de
menino. “E, em verdade, sempre teve alma de menino, alma pura e transparente
que não conhecia a malícia e que repudiou toda falsidade; alma de pura na que
se reflete a simplicidade e perfeição evangélica”.
“E, em
efeito, quem amou mais que ele à simplicidade no vestir, nos alimentos, nos
lugares por ele habitados, em sua maneira de falar e de tratar, igualmente com
os pequenos e com os grandes?”
O
Pobrezinho encontrava-se certa vez em presença do Vigário de Cristo:
- “O que
desejas? Perguntou o Pontífice.
-
“Santíssimo Pai não quero tão somente poder observar: “Veja, vende tudo
quanto tens e dê-lo aos pobres, e vem e segue-me sem alforja nem duas túnicas,
nem calçado nem alforje”.
O Papa
ficou admirado com aquela simplicidade e franqueza, e depois de alguma
vacilação, aprova sua Ordem e sua Regra.
Nesta
mesma ocasião, estando hospedado em Roma na casa de seu amigo, o Cardeal
Hugolino, saiu pouco antes do jantar para pedir esmola, regressando quando os
comensais, entre os quais haviam muitos nobres e cavaleiros, já haviam sentado
à mesa. O Pobrezinho, convidado a sentar-se ao lado do Cardeal, colocou sobre a
mesa o que tinha recolhido, e depois de comer um pouco daquela graça de Deus,
fez com que todos os presentes participassem da graça que havia recebido com
grande devoção aquele mendigo de pão. O Cardeal, que até então havia
permanecido em silêncio, depois de pedir para que todos se sentassem, conduziu
Francisco ao seu quarto, e abraçando-o amorosamente disse
- Meu
irmão, porque me envergonhastes, pois vindo à minha casa, que é a de teus
fiéis, fostes pedir esmola?
O
Pobrezinho soube justificar tão bem o que havia feito, que o Cardeal,
grandissimamente edificado, terminou dizendo:
Meu filho,
faz tudo que te pareça conveniente, pois Deus está contigo e tu estás com Ele.
Outra vez
encontramos a Francisco aos pés do Papa, pedindo com a maior ingenuidade, para
proveito as almas, um favor tão grande, que põe em apuros os cardeais: uma
indulgência plenária, gratuita, perpétua, para todos os pecadores. Apenas havia
recebido resposta favorável, agradece calorosamente ao Pontífice a graça
concedida, cumprimenta profundamente comovido e se afasta de sua presença, sem
outra garantia que sua palavra. O Papa chama-o, e exclama admirado:
- Onde
vais assim? Que documento poderás apresentar em prova de uma graça tão
extraordinária como a que acabas de obter neste momento?”
- Pai
Santo - Francisco responde tranqüilamente - basta-me a vossa palavra; Jesus
será o escrivão, a Santíssima Virgem será o papel e os anjos as testemunhas.
Enquanto a mim, não quero mais garantia, e deixo a Deus o cuidado de manifestar
ao mundo a obra que Ele fez.
Agora se
compreende como um homem tão singelo poderia abandonar-se com generosidade,
pureza e confiança, nos braços do Senhor, e como dessa confiança brotava,
límpida e fresca, a água da mais serena e profunda alegria. Tudo o que
acontecia ao seu redor, favorável ou adverso, era aceito sempre como vindo da
mão de Deus, e não havia razão para estar desanimado, já que era o mesmo Pai
celestial quem assim o queria ou permitia para seu maior bem.
Por isso
jamais houve coisa que pudesse transtornar seriamente a alma do Seráfico e, por
isso também pode conservar sempre a sua calma, serenidade, alegria, o constante
sorriso de suas amorosas pupilas, o incessante canto de seus lábios trêmulos de
entusiasmo, o inalterável jubilo de seu coração cheio de bondade e de amor... e
isto em meio às batalhas e contrariedades da vida, às enfermidades, sofrimentos
e dores do corpo, às angústias do espírito e das tentações e atrativos do
mundo, em meio das ingratidões e injustiças dos homens e do abandono e provas
do céu... Porque o Patriarca de Assis, como o antigo Jó, olhava ao mundo e aos
sucessos dele com olhos de fé humilde, e em qualquer circunstância de sua vida
gostava de repetir como aquele:
“O Senhor
me havia dado e o Senhor me tomou”. Podendo acrescentar com Cristo:“Faço
sempre o que satisfaz ao meu Pai, que está nos céus” ;e por isso o meu gozo
é pleno.
Ninguém
repudiou mais que ele a falsidade, a hipocrisia, o farisaísmo, tendo
horror de parecer exteriormente distinto do que era na realidade. Dizia
francamente a seus frades:
“Quero
viver nos desertos e demais lugares onde vivo, como se me encontrasse em
presença de todos os homens; porque se fosse tido por santo e não levasse uma
vida santa, seria hipócrita.”
E assím,
não queria ser tido por mais austero e do que lhe era permitido por suas forças
e desejava que todos soubessem o que comia e o modo como se vestia.
Conta-se
que, encontrando se em um eremitério do Vale Reatino, Francisco comeu durante o
Advento alguns alimentos temperados com banha, já que suas doenças não lhe
permitiam que se alimentasse com azeite. Pois bem, pregando ao povo na festa de
Natal, suas primeiras palavras foram estas:
“Vinhestéis
aqui com grande devoção, crendo que iriais ver e ouvir um homem santo; pois eu
confesso, diante de Deus, que durante este Advento comi alimentos temperados
com banha.”
Tomás de
Celano narra um episódio ainda mais claro, acontecido nos últimos dias de sua
vida. Seu guardião vendo que sofria, a causa das fortissimas dores fortes e
frio, resolveu aliviá-lo, ofereçendo uma pele de raposa que havia conseguido:
- Pai,
estás mal do fígado e do estômago; te suplico, em nome de Deus, que deixe-me
costurar esta pele no interior de tua túnica”.
Francisco
não recusou porém, quis que a costura aparecesse também por fora para que todos
pudessem ver o pequeno alívio que se havia permitido. “Ó homem verdadeiramente
admirável - exclama seu biógrafo ao referir-se e este e outros fatos - sempre o
mesmo por fora e por dentro, nas palavras e nas obras, o mesmo quando era
súdito que quando era prelado!”
Certo dia
-refere-se Celano- o santo ia pelo campo montado em um pobre jumento, já que,
por causa de sua extrema debilidade não podia andar a pé. Um andarilho
aproximando-se, perguntou se ele era o frade Francisco. Este respondeu
humildemente que sim. Então aquele de poucos estudos, com a maior naturalidade,
replicou vivamente:
- Pois
procura ser tão bondoso como o povo crê que és, porque muitos confiam em ti...
O homem de
Deus ao ouvir isto, desceu rapidamente do seu jumento, colocou-se de joelhos
diante daquele homem e beijou humildemente seus pés, em prova de gratidão pelo
conselho que se havia dignado dar-lhe.
Estava
convencido de que era insignificante diante do Senhor, e que o bem que fazia
era obra da graça divina.
Certa
ocasião Frei Masel ousou Perguntá-lo:
- Por que
todos te seguem, se não és bonito, nem sábio, nem nobre?”
- Por que
o Altíssimo não encontrou entre os pecadores nenhum mais vil e insuficiente que
eu. Por isso escolheu-me para realizar a grande obra que pensa fazer, para
confundir a nobreza, o poder e a fortaleza do mundo. E que seja visto que todo
bem procede Dele e não da criatura, e que ninguém pode glorificar-se em sua
presença”.
Costumava
dizer estas admiráveis palavras: “Se Deus houvesse concedido a um bandido ou um
ladrão as graças que lhe havia recebido, aquele malfeitor seria mais bondoso e
agradecido que ele”.
Quem não
conhece a cena descrita no capítulo IX dos Fioreti, ou seja, o curioso diálogo
entre São Francisco e Frei Leão certo dia em que, encontrando-se num luga onde
não havia breviário para rezar o Ofício, o Mestre exortava ao discípulo
predileto a louvar juntamente com ele ao Senhor, repetindo, a todas as
perguntas, com esta resposta afirmativa: “Miserável Francisco, pelos muitos
pecados que cometestes nesse mindo, serás digno do inferno”? Ou, quem não
recorda o episódio ainda mais estranho, narrado nesse mesmo livro, quando o
filho de Pedro Bernardone obrigou a seu primogênito espiritual, Bernardo de
Quintabal, e que lhe castigasse com um juízo temerário, formado contra ele,
“colocando um pé sobre a garganta e outro sobre a boca”, e dizendo-lhe duras
palavras de humilação e afronta: “Agüenta, vilão, filho de Pedro Bernardone, de
onde vem tanta soberba, sendo uma criatura tão insignificante?” São Boaventura,
aludindo a este fato, que nenhum orgulhoso do século XX vai querer acreditar,
observa que o seráfico, com a mente e o semblante reboante de gozo, “abençoava
contentissimo, em sinal de gratidão, ao irmão que soube dizer tão bem a
verdade”.
24.
Pobreza, virtude eminentemente franciscana
A pobreza
é uma das virtudes mais características do espírito de São Francisco: a fonte
oculta e profunda da qual brotam todas as outras virtudes.
Na moral
menorítica, a virtude franciscana por antonomásia é o amor à pobreza, enquanto
que o pecado franciscano por excelência é o da propriedade.
É a
história alegórica de umas místicas núpcias de São Francisco e seus
companheiros com a donaa do seu coração, encontrada por eles em meio ao maior
abandono e desprezo, no cume de uma montanha, e levada a suas míseras moradas,
onde inunda de celestiais delícias a estes pobres frades.
A seráfica
alegria daqueles apaixonados da dama Pobreza, chega a seu ápice com o convite
de casamento que celebram em sua honra na Porciúncula. É uma página deliciosa,
que nunca poderá ser lida sem que não se sinta uma inefável emoção. Havendo
servido a comida, suplicam que comparta dela em sua companhia. E ela responde:
-
Mostra-me primeiro o vosso oratório, o capítulo, o claustro, o refeitório, a
cozinha, o dormitório, as salas e as ricas cadeiras. Não vejo nada disso, mas
observo que estais contentes e satisfeitos, e cheios de consolo e de alegria
como se tivessem tudo isto à vossa disposição...
E foram ao
refeitório, e a dama Pobreza lavou as mãos; mas não havia toalha para
enxugá-las, tendo que servir-se da túnica de um frade...; todo o aparelho de
jantar e os manjares consistia em pão e água, sem vinho, nem sal, nem verduras.
A dama pobreza, cansada da viagem, quis descansar um pouco, mas não havia outro
travesseiro que uma pedra. E logo manifestou desejo de visitar o claustro,
levaram-na ao mais alto de um monte, do qual se podia avistar toda a região,
assegurando-lhe de que aquele era o convento... Então a dama Pobreza mandou que
sentassem todos ao seu redor e proferiu-lhes palavras de vida, animando-os à
guarda de tão grande tesouro...
Esta é a
mais perfeita, absoluta e radical pobreza, à que Francisco teve a honra de
tomar por esposa desde o dia em que o entregou a seu pai tudo, até a roupa que
estava vestido, acreditando ser “feliz –diz Bossuet- com não possuir na terra
outro bem que Deus, com não receber absolutamente nada por amor a Ele”.
Aquele foi
o dia em que o Pobrezinho pôde realizar seu místico sonho, saciar sua sede de
despojamento absoluto, dá sua mão à dama que ele tanto cortejava, cumprir os
votos e promessas que havia feito em Roma, quando depois de prostrar-se ante a
tumba daqueles que foram pobres em modo tão sublime, os apóstolos Pedro e
Paulo, que foi visto sentado na escadaria do maior templo da cristandade,
vestido com os mendigos e esperando o pão da caridade da boa vontade dos que
por ali passavam...
Desde
aquele dia Francisco, que sempre havia tido secretas simpatias por seus irmãos,
os pobres, torna-se o seu mais afetuoso e desinteressado amigo, rodeia-se de voluntários,
e ama a pobreza com um amor profundo, chegando a chorar de “santa inveja” ao
encontrar-se com um pobre mais miserável que ele.
Como ele
mesmo afirma em seu Testamento, contentava-se em possuir uma única
túnica, feita de lã, remendada por dentro e por fora, com uma corda e com os
panos menores e não queria ter mais até sua morte. A cela em que vivia, e que
não queria que fosse chamada sua, deveria ser uma mísera cela de ramos e barro,
quando não era alguma gruta natural aberta entre as rochas e barrancos. Seu
leito era uma miserável estrebaria ou a terra desnuda, e um tronco ou pedra era
o seu travesseiro. E como nos utensílios, também nos alimentos queria ser
sempre extremamente pobre.
Ninguém
será capaz de retratar ao vivo o profundo desprezo que sentia em relação ao
dinheiro. Não queria tocar, olhar ou falar dele: o odiava, sentia aversão. Um
dia, peregrinando pelos arredores de Bari com um companheiro, encontraram no
caminho uma bolsa cheia de moedas. Seu companheiro queria recolhê-la para poder
dar o dinheiro aos pobres. Francisco se opôs, mesmo sendo para este fim; mas
ante a insistência daquele, voltou atrás para pegar a bolsa. Santo Deus! Esta
se havia convertido em uma serpente! A lição não poderia ser mais eloqüente
para este frade!
Um dia,
conta-se nos Fioreti, o Pobrezinho viajava com frei Masel, quando
sentiram-se atormentados pela fome e começaram a pedir esmola, segundo seu
costume. Aconteceu que francisco, de aspecto fraco e de corpo pequeno e
desprezível, não pôde recolher mais que algumas migalhas de pão, enquanto que
Frei Masel, que “era alto e formoso de corpo, recolheu muitos pedaços e até,
pães inteiros e frescos”. Colocaram tudo aquilo sobre uma pedra branca, junto a
uma fonte ďáguas límpidas, debaixo dos raios de um magnífico sol de primavera.
Francisco, admirado pela abundancia do banquete exclamou:
- Ó, Frei
Masel, não somos dignos de tão grande tesouro!
E como
repetia muitas vezes estas mesmas palavras, Frei Masel respondeu-lhe:
- Pai,
como podes chamar de tesouro a tanta pobreza, na qual até as coisas mais
necessárias nos faltam? Aqui não há toalha, nem casa, nem mesa, nem criados,
nem serventes.
São
Francisco contesta:
- Isso é
precisamente o que eu chamo e tenho por tão grande tesouro; porque aqui não há
nenhuma coisa preparada pela indústria humana, senão que tudo foi preparado
pela divina Providência: o pão, a mesa de pedra, tão formosa; e a fonte, tão
rica e cristalina. Por isso quero que peçamos a Deus, para que nos faça amar o
tesouro da santa pobreza, tão nobre que tem por servidor ao mesmo Deus...
Em resumo,
basta contemplar de novo ao Santo na cela de Rivotorto, ou na solidão do
Trasimeno, ou entre os barrancos do Alvernia, e todos aqueles lugares onde não
tinha nem um pobre colchão de palhas para deitar ou um travesseiro em que
apoiar a cabeça ou quatro paredes com as quais pudesse proteger-se do frio, e
onde muitas vezes devia contentar-se durante dias, com um pouco de pão e água;
olhá-lo outra vez em Santa Maria dos Anjos, estendido no chão, nu sobre a
desnuda terra, e esperando sorridente a irmã morte... para convencer-se
praticamente de que a pobreza era para ele uma fonte fecunda de paz e de
benção.
26. O
crucificado do Alvernia
Francisco
é conhecido como o crucificado do Alvernia. Desde o primeiro momento de sua
conversão ao ideal cristão até o último instante de sua vida pobre e
mortificada, pôde exclamar como Paulo de Tarso: “Minha vida está crucificada
com Cristo e em Deus”, portanto: “Em nada posso vangloriar-me senão na
loucura e sublimidade da cruz!”
Pode-se
dizer que ele teve a honra de restaurar, na Idade Média, o verdadeiro conceito
de vida cristã. Antes dele os homens preferiam deleitarem-se na contemplação do
Cristo triunfante. É o modelo de imagem do juiz, soberano e taumaturgo divino,
que tem seu trono sobre a entrada das basílicas e catedrais.
Com o
serafim de Assis, Jesus Cristo crucificado volta a descer à terra; São
Francisco prefere a vida oculta e humilde do Salvador à sua vida radiante e
gloriosa. É mais que o companheiro do Cenáculo e do Tabor, o discípulo de
Belém, de Nazaré e do Calvário. Se percebe que durante toda sua vida, esteve
atormentado pelo desejo daquele batismo de Sangue, cuja hora sublime, esperava
impaciente.
Nada mais,
nada menos que durante três vezes, São Francisco atravessou as fronteiras dos
povos cristãos, e lançou-se animadamente às nações bárbaras e infieis em busca
do martírio, e se lamentava amargamente de não haver sido digno de derramar até
a última gota de seu sangue generoso, e de não haver podido sacrificar-se por
Aquele que se sacrificou por nós. Por isso investia terrivelmente contra seu
pobre corpo, chegando a atormentá-lo tanto com fome e sede, com disciplinas e
vigílias, e com toda classe de penitências, que antes de morrer viu-se obrigado
a pedir-lhe perdão pelos maus tratos aos quais o submetia.
Certo dia,
estando no Alvernia, a montanha gloriosa e esplêndida de suas orações e
solidão, pouco depois da Exaltação da Santa Cruz, sentiu-se invadido por um
grande desejo de sofrer. Ajoelhou-se sobre uma pedra, e levantando os braços ao
céu, voltou o rosto ao oriente, e fez a Deus esta oração:
- Ó meu
Senhor Jesus Cristo, te suplico que me conceda duas graças antes de morrer: a
de provar em minha alma e em meu corpo, tanto quanto seja possível a uma
criatura humana, as dores que tu, doce Senhor, experimentaste na hora de tua
paixão; e a de sentir em meu coração um pouco daquele amor, do qual tu, Filho
de Deus, ardias quando morrestes por nós na cruz”.
A história
nos faz saber quanto generosamente foi atendida esta oração do Santo.
Era uma
fria noite de outono. Enquanto os ventos dormiam nas profundezas dos barrancos,
os passarinhos silenciavam, as flores aguardavam a aurora para saudar de novo a
seu doce amigo Francisco, o cume do Monte aparece envolto em chamas, com grande
susto para os vizinhos e para os que viviam mais distante. Que estava
acontecendo?... Um serafim descido do céu com seis asas inflamadas e
resplandecentes, se aproximou do Pobrezinho, até este poder ver claramente a
imagem crucificada naquele serafim. Suas asas estavam dispostas de modo que
duas se estendiam sobre a cabeça, duas se despregavam para voar e as outras
duas cobriam todo o corpo. Ante esta maravilhosa aparição, Francisco sentiu-se
ao mesmo tempo cheio de alegria e de dor. Seu espírito se encontrava embriagado
de jubilo, pois Cristo se lhe mostrava com um aspecto sumamente amável,
olhando-o com indescritível ternura; mais, por outra parte, vendo-lhe como
crucificado na cruz, sua alma experimentava uma profunda compaixão. O corpo do
seráfico Pai encontrava-se possuído de um leve tremor, enquanto que daquele
Crucifixo alado chegavam a ele palavras que jamais quis revelar a alguem. A
visão desapareceu ; e nas mãos, pés e no costado do Santo ficaram gravadas as
marcas dolorosas e sangrentas das Chagas. As Chagas! Última estrofe desse hino
de luz e de amor, que se chama São Francisco de Assis!...
27. O
enigma da dor
Pode ser
que não se entenda o mistério do sofrimento, como acontece aos homens carnais;
pode ser até que ele seja desprezado, como o fazem os filósofos estóicos. Mas é
impossível negá-lo: quem o explica no sentido evangélico, colocará a base mais
sólida do verdadeiro misticismo... A religião de Cristo, a essência do
cristianismo, a síntese do evangelho, está resumida nessa frase: “Se algum
de vós quer seguir-me, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me”. É
necessário unir-se a Cristo como fundamento da nova vida inaugurada por ele
sobre a terra; mas esta união deve consistir, antes de tudo, na íntima
participação de suas dores, de suas lutas e de seus sofrimentos.
Assim foi
como Francisco entendeu o mistério da dor cristã, e por isso não se contentava
com rezar e meditar, senão que se esforçava por sofrer e padecer, para
completar, em certo modo, as dores e padecimentos do Filho de Deus, merecendo
por ele um grande privilégio que é como que o “último selo” de sua santidade.
Dessa
maneira, pôde conseguir também para si mesmo a bem-aventurança prometida por Jesus
Cristo no Evangelho e que ele, o santo Poeta, anunciou aos outros em seu
Cântico do Irmão Sol:
“Benditos
os que sofrerão em paz,
pois por
ti, Altíssimo, serão coroados!”
Com este verso,
divinamente suave, nos repete as palavras da filosofia cristã que divinizava a
dor e, como Jesus, nos faz chorar de pura alegria.
Porque a
religião de Cristo, sua doutrina e sua graça, tem a prodigiosa virtude de obrar
na dor uma maravilhosa metamorfose, uma transformação gloriosa. Nossas
lágrimas, aos pés do Crucifixo, transformam-se em pérolas, nossos sofrimentos
em alegrias, os gritos de desesperação em cantos de esperança.
Ninguém
melhor que o Estigmatizado do Alverno constitui a prova conclusiva e triunfal
desta verdade consoladora. Sabemos que sua penitência esteve cheia de doçura e
de suavidade, e que os sofrimentos eram para ele motivo de grande consolo e de
inalterável paz. Quanto mais se exercitava no sacrifício, mais facilmente
conseguia vencer o egoísmo; quanto mais esquecia de si mesmo, mais se fazia
dono de sua vontade e de seu coração; quanto mais sofria, se humilhava e
fazia-se pequeno, e quanto mais desprezado, mais contente mostrava-se.
Sabemos
que precisamente quando seus pés, mãos e costelas se encontravam transpassados
pelas chagas, que tantas dores causavam, quanto mais sofria pelas doenças dos
olhos e do estômago, foi quando entoou seus cantos ao céu e à terra,
aparecendo, evidentemente, como um modelo ideal de alegria na dor.
Por que,
com efeito, desde o dia em que recebeu sobre o Alverno o misterioso abraço de
Cristo, sua vida sofreu uma profunda transformação: Francisco era outro homem,
ou melhor dizendo, já não parecia um homem da terra, senão um serafim do céu.
Devemos
reconhecer que Francisco foi um verdadeiro filósofo e que, durante sua vida,
portou-se como tal. Dado que a dor é inevitável enquanto vivemos; dado que o
sofrimento é a herança de todos os filhos de Adão, e a cruz sagrada é necessário
uniforme de todos os discípulos de Cristo; e dado que esta cruz, levada com
resignação e alegria, não só é mais suave e radiante, senão que se converte em
um manancial de méritos nessa vida e de prêmio na outra, o Pobrezinho fez bem
e, abraçando-a com paciência resignada e tranqüila e buscando-a com ardor,
carregou-a com alegre intrepidez.
“Tão
grande é o bem que espero,
que nas
penas me divirto”.
Este
refrão favorito, que dizem que costumava cantar pelos caminhos da Úmbria e do
Casentino e pelas praças dos burgos e cidades da Itália, nos indica o segredo
de sua constância na alegria em meio às sua lágrimas e dores. Fornece-nos um
dado precioso para solucionar este misterioso problema que se chama “a cruz”, e
nos dá a todos e a cada um de nós uma magnífica e prática lição.
A dor é
antiga no mundo, pois logo depois que o homem pecou, foi desterrado do paraíso
da felicidade, e um querubim com uma espada de fogo lhe proibía a entrada e o
acesso à árvore da vida. O castigo não poderia ser mais completo, pois nele
entram o trabalho forçado, o terror, as humilhações, debilidade, misérias,
concupiscência, lutas, guerras e morte. Mesmo depois dos prodígios da redenção,
as provas da vida conservam tal caráter de dureza e severidade, que podem
servir de crisol de nossa moral, fazendo que seja mais abundante a fonte de
nossos méritos. Apenas nascidos, saudamos a esta pobre existência com gemidos.
O
progresso não pode nem pôde desterrar da terra a dor, nem transformar o nosso
globo, banhado de água amarga em suas duas terças partes e coberto quase todo o
resto de espinhos e de abrolhos, em um paraíso de felicidade.
E então?
Pois bem, façamos da necessidade virtude; aceitemos de boa vontade os
sofrimentos quotidianos, como oriundos da mão de Deus, como meio de expiação de
nossos pecados, de redenção de nossos irmãos, de santificação de nossas almas.
Só assim
poderemos, também nós, sorrir em meio às lágrimas, gozar em meio às dores,
cantar serenamente, como o amável Francisco de Assis, entre o bramar da
tempestade, o doce canto da alegria cristã.
29. Íntima
alegria
Diz o
autor da Imitação de Cristo: “Tenha boa consciência e terá sempre
alegria”. E explica este pensamento com aquele outro: “Se existe alegria no
mundo, os portadores serão os puros de coração”. A Pureza de coração é uma das
bem-aventuranças do Evangelho!
Não há
felicidade maior neste mundo, segundo muitos confessam, que aquela cujo segredo
o cristão encontra numa pureza inteira e perfeita.
“As
satisfações que produz a pratica dessa virtude - observa um notável pedagogo -
são verdadeiramente inefáveis; é preciso provê-las para depois compreendê-las.
É certo que o gozo é interior, mas se manifesta também no exterior com sinais
característicos: uma alegria pura, plena, exuberante, impregnada de doçura, bondade
e caridade; com o bom humor, a caridade e o sorriso.”
É certo
que também em lábios libertinos aparece, de vez em quando, o sorriso; mas esse
sorriso é quase sempre forçado, ou melhor, é um sorriso malicioso, gozador ou
melancólico, porque procede de uma alma em guerra com Deus e consigo mesma,
desgarrada pelo aborrecimento e pelo remorso. Não pensem que nos irão enganar
com sua aparência de felicidade externa e ruidosa porque sabemos muito bem que
a ferida está alojada lá dentro, derramando sangue em seu coração. Conhecemos
perfeitamente os estragos de suas lutas, seu desespero, seu imenso vazio e
aqueles instantes de profunda tristeza em que a alma cai sobre si mesma com
todo o seu peso. Os suspiros que às vezes escapam de seu peito. são provas dessa
verdade, como também o são as lágrimas involuntárias que caem de seus olhos, e
os remorsos que despertam em certas horas de tristeza.
Nenhum
amante deste mundo pode gozar, nem um só instante, a verdadeira e íntima
alegria! Diferente é o homem casto. Com sua inteligência inundada de suave luz
espiritual, já que a fumaça do prazer não conseguiu sufocá-la; com seu coração
cheio de bons afetos, pois o germe do vício não conseguiu corrompê-lo; com sua
vontade equilibrada no exercício da virtude, pois nenhuma vileza foi capaz de
debilitá-la; com todo seu corpo são e robusto, sente em si mesmo a benção de
viver. Vive de fé, esperança e amor. Conhece através do brilho de sua pureza,
que é amigo dos santos, irmão de Cristo, filho de Deus, e assim permanece
tranqüilo e sereno nas alturas luminosas de suas virtudes, ainda que aos seus
pés, lá no fundo do vale, soem os ventos e o raio estale violento, e
desencadeando furiosa tempestade.
Assim se
explica como São Francisco, humilde e casto, pôde estar sempre alegre e contente
em meio de todas as provas da vida, e se sentia tanto mais feliz e bendito,
quanto maior era a violência que se fazia a si mesmo para permanecer em seu
ideal, até o ponto de ver-se obrigado a expressar, com o hino de louvores que
continuamente dirigia ao Senhor, a harmonia que brotava de seu coração.
O efeito
dessa serena alegria na alma do seráfico e, ao mesmo tempo, meio eficaz ao qual
costumava recorrer para conservar a pureza de coração, era o espírito de
vigilância, de oração e o exercício das práticas de piedade. Porque é do
conhecimento de todos que a oração, elevando a nossa mente e o nosso coração a
Deus, fonte de toda luz e calor, estende um céu de alegria sobre todo o nosso
ser, e mantém em nosso espírito a paz e a serenidade.
Foi o
mestre divino quem disse e impôs a todos como um mandato: “Vigiai e orai, para
não cairdes em tentação”.
E eis aqui
como Francisco, longe de confiar em suas próprias forças, evita com cuidado
toda “excessiva” familiaridade com mulheres, único perigo que ainda poderia
restar para a virtude de um homem que se auto-privara de todos os gozos da vida
e que havia reduzido seu pobre corpo ao estado de um esqueleto ambulante.
Afirmava: “Essas familiaridades são um doce veneno, veneno e mel que podem
fazer cair até os santos!” E por isso, nos assegura Tomás de Celano, que quando
falava com mulheres não fixava o olhar em seus rostos, o que nos faz crer que
contribuiu para que ele pudesse confessar ingenuamente a um de seus
companheiros que, com exceção das duas irmãs - sem dúvida, Santa Clara e Santa
Inês, ou a piedosa dama romana Jacoba de Settesoli - lhe haveria sido
impossível reconhecer a nenhuma outra mulher pelas características do semblante.
São Boaventura tem a mesma opinião. Ao falar do rigor com que Francisco
guardava os sentidos, afirma que “estando convencido de que a castidade é uma
flor delicada que um leve sopro pode danar, recomendava aos seus frades a maior
vigilância possível sobre os sentidos, a imaginação, as relações com o sexo
oposto, sendo o primeiro a dar-lhes o exemplo.”
Levava ao
heroísmo esta vigilância sobre si mesmo. Podem-os chegar a esta conclusão a
partir do que dizem os mais acreditados biógrafos, que contam suas prolongadas
vigílias, seus rigorosíssimos jejuns, suas incríveis abstinências e contínuas
mortificações. São Boaventura conta que, já nos primeiros anos de sua
conversão, Francisco jogou-se em uma fossa cheia de gelo para conter o inimigo
doméstico e conservar intacto o vestido de seu pudor do fogo do prazer; “porque
- como costumava dizer – parecia-lhe muito mais tolerável suportar um intenso
frio no corpo, que sentir o mais mínimo ardor de luxúria no espírito.”
Bebendo de
Tomás de Celano, São Boaventura continua narrando-nos como em uma noite de
inverno, encontrando-se no deserto de Sarteano, e não sabendo como livrar-se de
uma tentação contra a castidade, Francisco lançou-se desnudo na neve, rindo-se
do espírito impuro com esta curiosa tática.
31. A
oração do seráfico
Mas se
estes eram os meios extraordinários e heróicos de que se valia para sair
vencedor nas lutas generosas em prol da virtude, Francisco não esquecia que a
oração contínua, confiada e ardente, é indispensável não só para obter energia
espiritual para combater e vencer as sublimes batalhas da vida cristã, mas
também para encontrar ali o segredo da paz e da serenidade em meio a essas
batalhas. E não se enganava o grande místico de Assis: as doutrinas dos Padres
da Igreja a este propósito são unânimes. “Se algum de vós está triste, faça
oração”, dizia o apóstolo Tiago. O Crisóstomo chama a oração “refúgio de toda
ansiedade, mãe da alegria, fonte de toda benção”.
Sendo
assim, qual não seria a paz que Francisco obtinha da oração, se esta se encontrava
sempre em seus lábios e ardia no tabernáculo de seu coração, como uma chama
inextinguível? Na verdade, o Pobrezinho não cessou de orar durante toda a sua
vida como nos manda o Evangelho. Tomás de Celano chega a dizer que são
Francisco, mais que um homem de oração, era uma oração feita homem.
O seráfico
Pai, fazia oração em público, no templo e em sua cela, no alto dos montes e no
fundo das cavernas, sempre e em todas as partes.
Encontrava
na oração as forças necessárias para poder colocar em prática seus grandes
ideais de sacrifício e de apostolado; por isso, buscava com freqüência a
solidão e o silêncio. “Sabia guerrear com os homens para ganhá-los à fé; também
procurava retirar-se, para ir, qual avezinha terna, fabricar seu ninho na
montanha e, encontrando lugar onde esconder-se, fazia de seu coração seu templo
e sua cela. Fazia o possível por passar dias e noites arrebatado no fervor de
suas orações, sem permitir que nenhum de seus frades se aproximassem dele para
distraí-lo. E quando o Senhor lhe visitava com graças singulares, ajoelhado
como estava, no chão de uma gruta, no piso de uma capela, ou sobre a rocha de
um monte, costumava elevar seu olhar e, estendendo os braços em cruz,
voltava-se ao oriente exclamando:
- Ó meu
Deus! Enviaste este consolo e doçura a mim, indigno e miserável pecador; te
devolvo de novo, para que o guarde para mim.
Suas
orações não eram tristes e desconsoladas, mas alegres e confortantes; eram
fruto do amor apaixonado à humanidade de Cristo e à misericordiosa bondade de
Maria. Se nelas se dirige alguma vez a Deus, considerando-o como Senhor, juiz e
Pai, o objeto habitual das mesmas e preferentemente Jesus e Maria. O culto que
tributa ao Filho de Deus e à Virgem, sua mãe, é a mais bela manifestação de sua
piedade.
32. O poema
de Natal
O
Cavaleiro de Assis foi o primeiro a introduzir - ao menos no ocidente - o
bonito e simpático costume de representar o presépio do Nascimento.
De sua
peregrinação à Palestina, onde teve o consolo de visitar os lugares
santificados pela presença de Jesus e venerar a terra tocada por seus divinos
pés, trouxe consigo uma lembrança muito viva e uma ternura maior aos mistérios
de nossa redenção.
De volta a
Itália, quis festejar, no mês de dezembro de 1223, sobre os montes de Greccio,
no vale Reatino, a alegre solenidade da paz cristã, de uma maneira que até
então ninguém havia idealizado entre nós. Fez com que colocassem no meio da
selva, em uma gruta aberta na rocha, um presépio cheio de feno, sem que
faltasse o asno e o boi, como em Belém. Uma imensa multidão veio ver, portando
velas acesas. Celano nos conta que “Greccio foi convertida em uma nova Belém:
do bosque iluminado ecoavam vozes harmoniosas, e as rochas respondiam aos
cantos da multidão”.
A tradição
assegura que houve um momento em que João Vellita, dono do bosque, acreditava
ter visto um menino de verdade que, deitado no presépio, dormia tranqüilamente.
Frei Francisco aproximou-se, colocou-o amorosamente nos braços e o divino
Menino, despertando-se, acariciou com suas mãozinhas as barbudas bochechas e a
rude túnica do Pobrezinho. Depois, cantando o evangelho, vestido de diácono,
“suspirando profundamente, oprimido pela grandeza de sua piedade e inundado de
um gozo inefável”, Francisco aproximou-se do presépio. Dirigiu-se logo ao
público, pronunciando um discurso cheio de entusiasmo e de amor; e sempre que
nomeava ao Menino de Belém ou pronunciava o Nome de Jesus “roçava os lábios com
a língua, como que para provar toda a doçura e suavidade daquela palavra”.
Na festa
de Natal não fazia jejum nem abstinência, ainda que caísse em uma sexta-feira.
Desejou que nestas circunstâncias os pobres fossem alimentados abundantemente
pelos ricos, e que em memória da honra que tiveram o boi e o asno, aquecendo
com seu alimento os membros do recém-nascido, se desse a aqueles felizes
animais um alimento mais abundante e escolhido. Ainda mais: dizia que, se
pudesse falar com o imperador, haveria suplicado que nesse dia fizesse
distribuir aos irmãos passarinhos, e especialmente aos seus amados irmãos
pássaros, grandes quantidades de trigo, para que assim até as criaturas
inferiores se associassem ao júbilo de todos os cristãos.
Encontrando-o
em certa ocasião, na selva da Porciúncula, entre lágrimas e soluços, um camponês
perguntou pela causa de seu penar:
Choro -
respondeu - a Paixão de nosso Senhor!
E foi tão
grande e tão viva a expressão de sua dor, que o bom homem não pôde resistir ao
íntimo sentimento despertado em sua alma, começando a chorar e a soluçar com o
Santo.
Seus mais
íntimos discípulos não ignoravam sua predileção pelo símbolo mais augusto de
nossa redenção: Frei Silvestre viu uma cruz luminosa que saía da boca de São
Francisco, que ía crescendo tanto que seus bracos abarcavam toda a terra; Frei
Pacífico havia observado como duas espadas, em forma de cruz, brilhavam sobre o
rosto do Mestre. Mais tarde, Frei Monaldo o contemplará com os braços abertos
em forma de cruz, abençoando os religiosos enquanto escutavam a pregação de
Santo Antônio de Pádua.
Este amor
a Jesus crucificado foi o que levou o Pobrezinho ao Alverno. Mas se esta
gloriosa montanha foi o Calvário de sua crucificação foi também o Tabor de sua
transfiguração. A doçura, os consolos, os gozos de seus êxtases sobre aquele
“monte sagrado, aquele monte angélico”, como se refere a ele o próprio seráfico
Pai, não foram menores que seu martírio, antes ainda, aquelas rochas foram o
teatro de suas alegrias porque foram o campo mais prodigioso e fecundo de suas
dores.
34. Êxtase
eucarístico
Durante
sua juventude, impulsionado pela devoção à santa Eucaristia, começou a
restaurar as capelas em ruínas de Assis e seus arredores. Por esta devoção
visita as igrejas mais pobres e abandonadas, limpando-as com suas mãos, e
depois envia seus frades por diferentes províncias, levando aos lugares
necessitados cálices, âmbulas e máquinas para fabricar hóstias. Escolhe a
França como campo de seu apostolado, porque esta nação se distinguia pela
devoção à divina Eucaristia, e escreve uma carta a todos os sacerdotes,
recomendando-lhes o culto de Jesus nos Sacramentos. Este mesmo respeito ao
Tabernáculo, unido ao sentimento de sua profunda humildade, fez com que
Francisco não consentisse ser ordenado sacerdote, preferindo ficar como simples
diácono. Tinha tamanha estima pelos ministros do Senhor, por causa da sublime
dignidade que ostentam, que se tivesse encontrado, juntos, um santo descido do
céu e um pobre sacerdote, cumprimentaria a este antes que ao santo,
inclinando-se com profundo respeito e beijando-lhe as mãos com muita devoção.
“O amor ao
sacratíssimo Corpo do Senhor incendeia e abrasa todas as entranhas de
Francisco. Considerava uma grande falta de respeito não ouvir diariamente ao
menos uma missa. Comungava freqüentemente e com tamanha devoção, que edificava
os que o viam, arrastando-os a fazer o mesmo”. Realmente, o culto do Corpus
Christi, que teve uma parte predominante no desenvolvimento do pensamento
religioso de Francisco, “foi em certo modo a alma de sua piedade”. Nutria pelo
sacramento da Eucaristia “um culto tão impregnado de efusões indescritíveis e
de doces lágrimas, que ajudou uma das mais nobres almas da humanidade a
suportar o cansaço e o calor de cada dia”.
É
certamente nessas preces aos pés do Tabernáculo, nessa assídua e devota
assistência ao Santo Sacrifício, nessa íntima união com o corpo, sangue, alma e
divindade de seu Senhor Jesus Cristo, que encontrava não somente a força e o
valor necessários para vencer as tentações e trabalhos de uma vida de renúncia,
de abnegação e de sacrifício, senão também aquela serena alegria que embargava
e arrebatava constantemente seu ânimo. Se amar a Jesus “é doce paraíso”, que
será, para quem tem fé, possuí-lo, não só pelo amor, mas na vivente realidade
de sua pessoa divina e humana, que se dá a cada um de nós no mistério
eucarístico?
35. A mais
sublime devoção
O que
dizer do culto de São Francisco a Maria Imaculada? Não há nada mais gracioso e
amável, nada mais singelo e sublime, nada mais gratificante e arrebatador, que
aquela ternura, do mais amante entre os filhos, à mais doce e bondosa das mães.
Cantava-lhe
hinos e louvores, suplicava com singular fervor, oferecia o perfume de uma
ternura, de um calor e de uma fé admiráveis. Proclamou-a padroeira de sua Ordem
e encomendava a ela todos os seus filhos, para que debaixo de seu bendito
manto, lhes desse calor e proteção.
Se a
Virgem Santíssima é consolo dos aflitos, gozo do mundo e causa de nossa
alegria, como o Seráfico não encontraria, em sua terna devoção a ela, uma das
causas de sua íntima alegria? Por que não devemos buscar, em seu culto a este
ideal de pureza e de força, o segredo daquela jovialidade infantil, daquele
admirável candor, confiança sem limites, e abandono filial nos braços da
Providência, que caracteriza as relações de São Francisco com a Divindade? Só a
presença da mais doce das mães junto a seu filho bendito pode explicar o puro
candor do Pobrezinho ante o trono do Altíssimo!
36. A
alegria serve a tudo
A alegria
é para o homem o que o sol é para a planta. Não estamos diante de uma expressão
poética, mas de um fato real.
Além do
mais, o bom humor reanima o espírito. Somente quem nunca provou a doce
impressão da alegria intensa pode colocar este axioma em dúvida. “Enquanto
estiverdes contentes - descreve Lombez - vosso espírito será mais fecundo e
estará mais atento, vossas vidas serão mais claras, a imaginação mais viva, o
coração se encontrará mais satisfeito, o humor será mais alegre, mais agradável
vossa companhia, vossa piedade mais terna, vossa virtude mais generosa: vos
fareis amáveis a Deus e aos homens, e vos sentireis com valor para tudo”.
Por isso a
alegria vem a ser para todos um dever, e a prática constante da mesma se
converte, para o cristão, numa verdadeira virtude; mais que virtude, é uma
síntese ou ramalhete de virtudes. Por que há dias em que, para conservar o bom
humor, é necessária uma absoluta confiança em Deus, um grande amor aos homens,
e uma energia, valor e constância incomuns. “É verdade que a alegria não tem a
grandeza das virtudes cardeais, mas que seriam todas essas juntas sem o raio de
luz que ilumina sua frente?”
Como
poderia o homem ter a força suficiente para suportar com paciência as
tristezas, lutas e tribulações da vida, se um raio de consolo e de esperança
não viesse alegrá-lo e reanimar? Eis aqui porque foi dito que o bom humor é um
triunfo: triunfo do espírito sobre nossa misérias. É como o sol que brilha
repentinamente num dia tempestuoso; é um feliz mensageiro que vem animar-nos,
dizendo que nem tudo se perdeu em meio à tempestade, senão que fica sempre a
esperança ancorada no fundo do coração. “A alegria parece multiplicar a pujança
e a produtividade do homem, refrescando seu espírito, infundindo-lhe ousadia e
valor. Da alegria nascem, freqüentemente, as grandes decisões e empresas
generosas. Age como se jogasse com as dificuldades e contrariedades. Enobrece o
homem, dispondo-o ao bom, ao verdadeiro e ao belo; freia as más inclinações e
vivifica os bons sentimentos. Tornou-o bondoso, compassivo e disposto a servir
em todo momento. Aproxima-nos uns dos outros, fomenta as relações sociais e
tece laços de amizade”.
É sempre
nociva. Afirmou, já faz muitos séculos, o Eclesiástico: “A tristeza matou a
muitos e não há utilidade nela”. E no livro dos Provérbios se lê: “O
coração alegre embeleza o rosto; mas pela tristeza do coração o espírito se
abate. Todos os dias do aflito são molestos, mas o coração contente tem um
convite contínuo”. “Lançai a tristeza para longe de vós como se fosse um
veneno mortal. A quantos fez perder no tempo e na eternidade!... Ela arruína a
saúde, esqueletiza o mais robusto consumindo-o até os ossos, e diminui seus
dias, fazendo-o envelhecer antes do tempo... O homem triste sente seu espírito
fraquejar, sua imaginação vai enchendo-se de idéias sombrias, e tudo que lhe
rodeia é motivo de aflição: tudo lhe exaspera e excita, até as palavras mais
doces que a amizade lhe dirige para alegrar o espírito. Sua tristeza é como uma
chaga geral que infecciona todas as potências de sua alma e todos os membros de
seu corpo.”
“A
tristeza é uma coisa feia, seca e repugnante que, se penetra no coração, faz um
imenso dano. Devemos esforçar-nos por colocá-la fora o quanto antes, pois é
como um veneno que corre por todas as veias. Aquele que for possuído pela tristeza
não poderá desejar nada de bom e belo, ficando reduzido à mais triste
incapacidade. Trata-se de cumprir um dever? De sacrificar-se por dar gosto aos
que amamos? Impossível! Estamos tristes! E aos tristes não devemos pedir nada,
nem para si, nem para os outros, nem para Deus”.
Não
bastará isto para nos persuadir que a tristeza é tão maléfica e destruidora,
quanto útil e fecunda é a alegria? Não nos parece estar ouvindo a voz do
Apóstolo úmbrio que, como um esperto educador, “devolvendo aos homens a esperança
- como nota Sabatier – infundia-lhes valor?” Dizem que São Felipe Neri, o santo
do humanismo cristão, repetia constantemente há alguns séculos atrás: “Tristeza
e melancolia, fora da casa minha”.
Perguntou
um pedagogo contemporâneo: “Cabe, em vossas cabeças, santos e santas dominados
pelo mal humor? Ele mesmo responde: “Se dependesse de mim, estes não seriam
canonizados”.
38. Deus o
quer
A alegria
cristã não é só uma necessidade: é também um dever. A própria natureza nos diz
de maneiras diversas. O universo inteiro experimenta os mais vivos
arrebatamentos de alegria em presença do Criador. “Os céus proclamam a sua
glória e o firmamento anuncia a obra de suas mãos. As selvas e os montes, as
colinas e os arrecifes saltam de gozo ante Deus - continua o Salmista -
enquanto os rios e as torrentes precipitam-se bruscamente no oceano. Com o doce
murmurar de suas ondas e a fragorosa harmonia de suas cascatas - semelhante a
um alegre bater de palmas - aplaudem e exaltam a grandiosa potência do Senhor”.
Somente o
homem, que deveria ser o mais fiel intérprete destes nobres sentimentos da
criação, parece, não ouvir o carinhoso convite dos seres inferiores,
incitando-o, com sua inteligência e seu coração, a dirigir a Deus um hino de
júbilo e de agradecimento que eles queriam tributar-lhe de uma maneira mais
livre e consciente. Esta é, sem dúvida, a causa pela qual Deus quis manifestar
sua vontade com palavras mais claras e explícitas. Todos os livros do Antigo
Testamento - em particular, os Salmos - estão cheios de exortações, conselhos e
mandatos de nos alegrarmos e regozijarmos no Senhor.
A era da
verdadeira e sólida alegria só começou na terra com o advento do Evangelho: a
benção da vida não desceu a este mundo senão com o divino Salvador.
Este, o
Redentor descido do céu, foi quem fez com que no dia de seu nascimento em
Belém, os anjos anunciassem a paz aos homens de boa vontade. Ele é quem, não
obstante a humildade, a pobreza e a pequenez que rodeava a sua casa, na qual
vivia e trabalhava com a sua pobre família, soube inundá-la de uma alegria tão
pura e de um esplendor tão sereno, que fazia com que todo sacrifício se
tornasse doce e toda dor se transfigurasse.
Logo que
apareceu em público para cumprir a sua missão, o Filho de Deus não perdeu sua
amabilidade, doçura e gozo no seu Pai celestial.
No
celestial consolador de todas as tristezas humanas, não encontramos o menor
sintoma de pessimismo, nem sequer a mínima sombra de amargura espiritual em sua
doutrina e em suas obras. Sua vida confirmou a palavra do Profeta: “Não será
triste nem turbulento”. Ele, como diligente e confiado semeador, percorreu
alegremente os belos e férteis campos, cantando suas bem-aventuranças, que
transformam em benção pobreza, dores, e lágrimas: Bem-aventurados os que
choram, porque serão consolados!
Ainda no
Horto de sua agonia, no Pretório de sua flagelação e no Calvário de seus
tormentos, conservou aquela serena alegria da alma, que nele é derivada de sua
íntima união com a divindade.
E por
último, saindo do sepulcro como vencedor do pecado e da morte, inaugurou,
oficialmente o império da paz na terra: “Eu vos deixo a minha paz, eu vos dou a
minha paz!” Assim como o Evangelho se abre com o canto triunfal do Magnificat,
que brotou do coração da Virgem como o mais belo hino de celeste alegria, se
fecha com este augúrio de paz que inaugurou o triunfo da alegria nas almas: “Para
que a minha alegria seja em vós e a vossa alegria seja plena”.
A fé faz
compreender - como também o faz São Francisco - que os sofrimentos dessa vida
são nossa triste herança como filhos do pecado, uma necessidade inerente à
nossa pobre natureza caída e condição essencial da vida cristã. Como não
podemos ser homens sem nos afligir, tampouco podemos ser cristãos sem estar
crucificados. “Aquele que querer vir depois de mim - disse o Mártir do Gólgota
- deve pegar sua cruz, colocá-la sobre as costas e seguir-me pelo caminho
sangrento da imolação e do sacrifício”. “E aquele que não quisser me seguir
levando voluntariamente o suplício dos condenados à morte, não é digno de ser
meu discípulo.” O caminho deste mundo é largo e espaçoso, inundado de sol e
cheio de prazeres, como a via-láctea se encontra semeada de estrelas e a do
Capitólio empedrada de triunfos e de vitórias; mas o caminho do céu e estreito
e difícil, calcado de espinhos e de abrolhos, salpicado de gotas de sangue,
umedecido com o orvalho das lágrimas. Todo aquele que queira possuir a verdade
e a vida, deve passar por estes sendas de dor e morte!
O
cristianismo revela e explica a tríplice função divina que o sofrimento exerce
no mundo: a de justiça, que expia os nossos pecados; a de misericórdia, que nos
livra de cair em outras culpas e no poder de nossas paixões; a do amor, que
santifica, aperfeiçoa e enriquece nossa alma com grandes dádivas.
E dessa
doutrina do Evangelho concluímos que o melhor é agir como filósofos práticos:
fazer da necessidade virtude; aceitar agradecido, das mãos de Deus, todo tipo
de tribulações, dores e sofrimentos; permanecer tranqüilos e resignados no meio
do furor da tempestade. E devemos reconhecer que não se equivocaram os que
discorrerem assim. A melhor solução para o problema da dor é a que nos dá o
cristianismo.
Com
sublime eloqüência, a história nos ensina, como estes nossos santos, fazendo
uso de suas próprias forças e da ajuda da graça, foram em busca de trabalhos e
de sofrimentos, a fim de participar mais intimamente da paixão e martírio de
Cristo e,com Ele, subir o Calvário e ser crucificado no patíbulo. E como para
encher-se rápido de méritos, e ao mesmo tempo suavizar o peso da cruz, não há
meio mais propício que o de alegrar-se e regozijar quanto for possível, deram
ao mundo o singular espetáculo de uma contínua e serena jovialidade, que
aumentava na medida em que crescia o número, a violência e a intensidade de
suas dores.
Eis aqui
porque o Pobrezinho de Assis pôde arrancar do fundo do seu coração, nos
momentos mais tristes de sua vida, as notas mais belas e harmoniosas do Canto
do Irmão Sol. Da mesma forma souberam comportar-se todos os grandes heróis da
santidade cristã.
Os
discípulos do divino Mestre saíam radiantes de felicidade das sinagogas
judaicas e dos tribunais pagãos, onde haviam sidos cruelmente açoitados,
gozosos porque haviam sofrido afrontas e perseguições por Seu amor. E, seguindo
o exemplo e as exortações desses discípulos de Cristo, os campeões de nossa fé
conservaram sempre sua alegria ante os tiranos que os condenavam: trancafiados
nas prisões, onde eram amarrados como criminosos; de joelhos sobre a
ensangüentada arena do anfiteatro; fortes e impávidos em meio aos tormentos,
que a raiva e ferocidade dos verdugos lhes faziam sofrer.
CONCLUSÃO
Para conseguir a alegria
Foi dito
pelo divino Salvador: “Carregai meu jugo e encontrareis descanso para vossas
almas”. “Buscai primeiro o reino de Deus e sua justiça, e tudo mais vos será
acrescentado.” O que significa: sejai verdadeiros cristãos, como esses
franciscanos, e sereis sempre felizes e alegres.
Francisco
disse, há alguns séculos, depois de haver examinado todas as preocupações dos
homens e o que constitui objeto de suas investigações e cuidados; depois de
haver provado, por mim mesmo, de tudo que eles gostam - prazer, glória, riqueza
- me convenci de que não há coisa melhor neste mundo que fazer o bem com
alegria. A virtude e a alegria são, pois, dois bens unidos, e seria um absurdo
pretender separá-los. O fruto não pode existir sem a planta: o gozo exterior
seria impossível sem a paz interna do coração.
Pureza,
amor, alegria: eis aqui três palavras que se iluminam e completam mutuamente, e
que nos apresentam um singelo e admirável programa de vida cristã, cuja
realização nos permite provar por antecipação as delícias do paraíso. A pureza
conduz ao amor e o amor e a pureza produzem a alegria. A vida de São Francisco
se reduz a isto! Sejai puros e amáveis com o Senhor; amai o Senhor e
observareis a sua lei; observai sua lei e sereis embriagados de puro gozo. “O
coração dos que buscam a Deus de verdade - assegura o Espírito Santo - reboa
sempre de gozo, e a alma virtuosa terá sempre dentro de si a perfeita alegria”.
Somente a
religião é capaz de despertar em nós a confiança em Deus, tão necessária
para conservar a alegria, especialmente quando o ódio dos homens e a raiva de
Satanás lançam contra nós todas as suas fúrias, como as ondas do mar que rugem,
se incham, formam espuma, e se precipitam violentas contra os arrecifes, aos
quais queriam vencer e fazer desaparecer. Em situação semelhante, a alma de
Jesus se estremeceu e espantou, fazendo-o cair em uma angustiosa agonia, na
qual haveria desmaiado se não lhe houvesse sustentado a divindade. Canta o
salmista: Ó Senhor, eu levantei os meus olhos a ti, tive confiança em tua
bondade, e estou certo de que ninguém poderá derrubar-me”.
Naturalmente,
para que esta confiança possa fazer permanecer em nós a paz do coração, deve
ser verdadeira, profunda, iluminada; deve basear-se na idéia clara e precisa
dos atributos divinos: em seu poder sem limites, em seu amor sem medida, em sua
eternidade imutável, semelhante a estas gigantescas montanhas que contemplamos,
abismados, de admiração, e que de cujos cumes as coisas humanas parecem tão
pequenas. “Do alto de seu refugio inviolável - diz Bossuet - a alma olha
abatida todas as grandezas da terra, e todos os soberbos e orgulhosos do mundo,
humilhados; e nessa completa destruição das coisas humanas, nada nos parece
mais grande e elevado que os singelos e humildes de coração”, que colocam sua
confiança no Senhor. Sabemos: uma só palavra de Cristo acalmou a tempestade do
mar, seu olhar pode acalmar as tempestades de nossa alma. Basta que nos
dirijamos a Ele com as asas da oração.
Luis
Veillot, um dos mais nobres jornalistas do século passado, abrumado sempre por
um trabalho enorme, exclamava em certa ocasião: “Eu não poderia começar nem
terminar o dia sem colocar-me, ó Senhor, aos vossos pés; ali encontro tanto
consolo e alegria, que nenhum prazer deste mundo pode comparar-se a ele”. E um
dos mais admiráveis pensadores modernos, Maime de Birain, escrevia a sua filha
estas precisas palavras: “Muitas tempestades da alma e do coração podem
dissipar-se, colocando-nos na presença do bom Deus e esforçando-nos por
manter-nos nela, com alguma breve consideração mental: só assim, encontraremos
a paz. Que doce é para mim, ó minha filha, aspirar continuamente a este centro
de repouso, gozando-me em pensar que meus amigos poderão encontrar-me ali”.
Este dom
da “paz de espírito”, o gozo, a calma, é um presente do Senhor, fruto de sua
graça, e um bem sobrenatural: Por conseguinte, devemos pedí-lo por meio da
oração, com humildade e perseverança. Nossos santos pediam aos céus a alegria,
como prova de sua amizade com Deus, e como meio para manter-se na prática da
virtude, apesar de todas as tentações e sacrifícios. Nossa santa mãe, a Igreja,
pede-a em sua liturgia e em seus ofícios. Ela bebeu dos Livros Santos:
“Senhor e
Príncipe da casa de Israel, Tu que apareceste a Moisés, não no redemoinho que
transtorna e destrói, mas na chama que ilumina e alegra; vem nos libertar da
escravidão, da tristeza e do cansaço”.
Libertador,
saído da estirpe de Jessé, tu, a quem todas as nações invocam e em cuja
presença os reis da terra emudecem; pressa-te em arrancar-nos da servidão que
envilece nossos corações e rompe as algemas que nos oprimem.
Sol de
justiça e de luz eterna, cujo esplendor dissipa as trevas e ilumina os
espíritos, acende em nossas almas teu divino fogo, que dilatando nossos
corações nos faça viver uma vida nova e cheia de bênçãos”.
O apostolado da alegria
O
apostolado da alegria se impõe a cada um de nós. Este dever se impõe a todos,
em virtude dos princípios fundamentais da caridade cristã que ninguém deve
ignorar: “Faz aos outros o que querias que fizessem a ti”; “cada qual deve
cuidar da saúde de seu próximo”; “enxugai as lágrimas dos que choram, visitai
os escravos da tristeza, os abatidos do espírito e os tristes de coração”;
“derramai consolo sobre as almas que sofrem”.
Quantas
dessas almas há junto a nós, tristes e dolorosas, que bebem a cada dia o cálice
da amargura. Com o rosto murcho e esburacado de rugas, através do caminho da
vida, não encontraram mais que sarças e espinhos, e já perderam a esperança de
poder provar ao menos uma gota da felicidade pela qual tanto anseia seu pobre coração!
Devemos
ser artífices da alegria. O cristianismo no-lo manda, com sua doutrina sobre as
obras de misericórdia: “Um momento de felicidade subtraído das pobres almas que
sofrem é uma espécie de roubo, ou pelo menos uma crueldade inútil e daninha...
Mas isso não basta. Para cumprir o dever da fraternidade, imposto a alguns pela
fé em um Pai comum e a outros por certas doutrinas humanitárias, é necessário,
além do mais, intervir eficazmente na vida do próximo, e converter-se em
portadores de alegria para os nossos irmãos...”
Quem
poderá descrever o poder do sorriso?
Tudo bem
que choremos com os que choram - seguindo o conselho do apóstolo Paulo - e que,
por conseqüência, nossa alegria em relação aos nossos irmãos seja moderada por
nossa compaixão por suas misérias. Ofenderíamos ao que se encontra abatido se
este visse em nós não mais que alegria. Mas assim como o sol, desfazendo pouco
a pouco as nuvens que o ocultam, nos envia primeiro a sua luz e logo seu calor,
também nós temos que buscar com que o contentamento, guardado em nosso coração,
rasgando insensivelmente o véu da tristeza que o envolve, leve luz ao espírito
abatido e doce paz ao coração aflito. Porque se não demonstramos mais que
tristeza e melancolia, nunca encontraremos o caminho para fazer alegria
penetrar nas pessoas.
A
confiança e a simpatia não são coisas que se possam impor, senão que se
inspiram e se conseguem com a bondade e o amor. Se não amamos, não seremos
amados, nem sequer poderemos apreciar o amor. Se somos frios para com o próximo,
este será também conosco; e o afeto dos irmãos não alegrará nossa vida; se não
o merecemos, não poderemos gozar deste, e nosso coração ficará sempre gelado,
porque, como o gelo, pode até derreter, mas não é capaz de esquentar. E se ao
coração duro se une uma expressão facial severa e antipática, como poderemos
atrair as almas? “Pega-se mais moscas com uma colher de mel, que com cem barris
de vinagre”, costumava dizer são Francisco de Sales, que conhecia muito bem a
eficácia da bondade e da doçura.
Que confiança
podeis inspirar com vossas caras sempre sisudas? A quem pretendeis consolar com
essa cara que parece a entrada de um túnel? Como quereis aplicar remédio ao
mal, lançando baba pela boca?... Disse Wagner: “O preto é, para muitos, a
insígnia do pessimismo, o emblema do nada. Tenho repugnância por aqueles que
querem servir ao bem no inicio da noite, vestindo-a de luto. Por isso desconfio
dos moralistas tétricos e de quantos anunciam o bem com semblante sombrio, voz
áspera e gestos mal humorados. Eu os compararia com as vassouras cheias de pó,
que em vez de limpar, sujam...”
Pelo
contrário, o homem alegre nos seduz e arrasta com tal força, que é impossível
resistir. Quando, desde este ponto de vista, Faber fala sobre a benevolência,
Guilbert sobre a bondade, pode-se dizer da alegria, que é a flor mais formosa e
o fruto mais saboroso de ambas.
O simples
fato de ver uma pessõa alegre, contente e satisfeita é suficiente para nos
contaminar e nos envolver nas redes de tal felicidade. Nossa alma se abre
instintivamente à sua, como a rosa ao beijo do sol, como o botão ao sopro da
brisa primaveral.
Quando nos
sentimos oprimidos pela melancolia e a tristeza, basta normalmente, ver um
semblante inundado de alegria para renascer em nós a felicidade e o
contentamento; quando nos encontramos turbados pela inquietude, basta uma
palavra doce e carinhosa para devolver-nos a paz; quando estamos preocupados
pelo temor, basta uma ação feita com graça, para que a imprecisão de um apoio
seguro faça renascer em nós a confiança.
“Cada
sorriso que excitamos no próximo equivale ao pedaço de pão dado a um faminto, a
roupa que cobre o corpo do mendigo. E quem sabe o que pesará mais na balança
divina?” Há mais caridade em estimular as almas ao bem, que em sustentá-las com
o dinheiro; e o pão, misturado com alegria, se torna um alimento mais
nutritivo. Quando as Irmãs da Caridade colocam suas hábeis mãos sobre as chagas
dos corpos, não cumprem mais que seu dever se não curam as feridas da alma.
Por isso
todos os santos lançaram mão da alegria, essa arma celestial, como uma das
forças mais poderosas de seu apostolado.Convencidos da profunda filosofia
desta frase de Victor Hugo: “Se quereis melhorar os homens, fazei-os felizes”,
correram o mundo enxugando lágrimas, eliminando dores, socorrendo misérias,
cantando e regozijando-se no Senhor.
A alegria
e o bom humor foram um dos principais segredos do êxito do apostolado de
Francisco de Assis e de seus discípulos. “Ele encantou seus frades - observa
Gebhart - e estes a sua vez embelezaram a Itália com aquele amável e radiante
sorriso com que acolhiam as grandes misérias, os pequenos consolos e as
humildes doçuras da vida”.
Mas tanto
o seráfico como todos os demais heróis da fé e do amor que evangelizaram as
multidões indigentes de todos os séculos e de todos os países, não fizeram
outra coisa senão imitar o apóstolo por excelência: Jesus, o Salvador. “Se com
um olhar, ou uma palavra de sua boca proferida, homens rudes e incultos
abandonaram a indústria da pesca e o banco publicano, deixando suas famílias e
seus lares para seguí-lo; se as mulheres abandonaram as suas casas para
servi-lo; se o último dos profetas enche-se de gozo ao eco de sua voz; a
multidão, qual mar tempestuoso, tão obscura em seus pensamentos e indecisa em
sua vontade se comovia agitada e proclamava-o rei e até mesmo os meninos se
sentiam atraídos por ele e se apertavam ao seu redor, devemos deduzir que sua
força atrativa, como sua virtude de curar, era essencialmente força de alegria,
daquela alegria que é grato perfume e aroma do amor”.
Este é o
exemplo ideal que devemos imitar no apostolado do bem e da paz ao qual estamos
chamados a exercer entre amigos, famílias e na sociedade. “Se tendes ambições
apostólicas, lembrai que somente a bondade vos fará conquistadores, como
Cristo, que é rei porque é pacífico, e que quis revelar a nós todas as virtudes
de seu coração divino, só aceitando como seus apóstolos os que sabem ser
cordeiros em meio a lobos”.
Não digamos
palavras que não sejam suave poesia, não dirijamos nenhum olhar que não seja um
sorriso de alegria; não façamos nenhuma ação que não seja uma carícia, uma
graça para as criaturas que nos rodeiam.
A alegria
é por sua própria natureza, comunicativa, como é também o mau
humor. Na verdade, não sabemos que vivendo em um ambiente onde reina a tristeza
é sumamente difícil não ser influenciado por ele? A chatice, melancolia e mau
humor dos companheiros de trabalho, dos parentes e amigos de casa, é comunicada
a nós e aos demais.
Mas a
alegria, mais intensamente que a tristeza, é contagiosa. Como o sol,
levantando-se sobre o horizonte, ilumina e alegra toda a natureza, assim as
almas felizes e satisfeitas derramam ao seu redor a luz e o calor da alegria.
Assim é como se explica que as pessoas alegres se encontrem sempre reunidas em
grupos, como as flores e as estrelas.
Às vezes,
basta uma só destas almas para transformar todo um ambiente, para irradiar luz,
sossego e paz sobre toda uma casa, para consolar e fazer feliz a toda uma
família...
Diz-se que
Rubens, de uma só pincelada, mudou por completo a imagem de um menino,
fazendo-o risonho. Certos espíritos são também grandes artistas, mas em sentido
contrário: com um gesto, com uma palavra, com uma súplica, com um canto, com o
sorriso que brilha sempre em seus olhos e transborda continuamente de seus
lábios, consolam e distraem todos aqueles que têm o privilégio de estarem ao
seu lado.
“Estou
persuadida - afirma Dora Melegari - de que a conservação do gênero humano
deve-se precisamente a eles. Sem os sorrisos que provocam, os cantos que fazem
brotar de seus lábios, a luz que projetam sobre os rostos, já há muito tempo
que o sol haveria deixado de brilhar sobre este mundo desgraçado e triste; a
terra converter-se-ia em gelo, e o último dos homens pereceria congelado de
frio. O mundo deve a estes sua salvação. Felizmente são mais numerosos que os
dez justos de Sodoma e Gomorra que o Eterno pediu a Abraão, para não lançar
sobre estas cidades infames a chuva de fogo que lhes havia reservado”.
Nessun commento:
Posta un commento