02 marzo, 2013

Jesus de Nazaré - Trad.




JESUS

DE NAZARÉ



A presente tradução, feita sobre a segunda edição espanhola de Jesús de Nazareth, publicada em 1999 por Noticias Cristianas, de Barcelona, esteve a cargo de Claudio Dionizio Rocha Santos. A versão espanhola da vida e doutrina de Jesus se realizou, en sua maior parte, transcrevendo literalmente textos de F. Miguel William  e de M. Trens.


ÍNDICE GERAL

I               Deus se fez homem .......................................................................................
II             Nascimento de Jesus ......................................................................................
III           Perseguido ....................................................................................................
IV           Pelos caminhos da Palestina ..........................................................................
V             O primeiro milagre ........................................................................................
VI           Ira santa ........................................................................................................
VII          Diálogo no silêncio da noite ..........................................................................
VIII        O preço da água ............................................................................................
IX           O Senhor dos milagres ...................................................................................
X             Deformações da lei .......................................................................................
XI           Os escolhidos ................................................................................................
XII          Para ser feliz ................................................................................................
XIII        Como devem ser os seguidores de Cristo .......................................................
XIV        Confiar em Deus .........................................................................................
XV          Os mortos ressuscitam .................................................................................
XVI        O vento e o mar lhe obedecem .....................................................................
XVII       Deus, o poder de criar do nada .....................................................................
XVIII     “Tu és o Filho de Deus vivo ..........................................................................
XIX        Quem é o meu próximo? ..............................................................................
XX          Ensinando a rezar .........................................................................................
XXI        O cego de nascimento ..................................................................................
XXII       O bom pastor ..............................................................................................
XXIII     Não temais a Deus por que Ele os ama .........................................................
XXIV     O perdão das ofensas ....................................................................................
XXV       O valor das riquezas .....................................................................................
XXVI     La ressurreição de Lázaro .............................................................................
XXVII   Entrada triunfal na cidade deicida ....................................................
XXVIII   Dai a Deus o que é de Deus .........................................................................
XXIX      Destruição de Jerusalém ..............................................................................
XXX       Profecia do fim do mundo ...........................................................................
XXXI     Juízo final ...................................................................................................
XXXII    Judas, um apóstolo lhe trai ............................................................................
XXXIII   Instituição da Eucaristia ................................................................................
XXXIV   No horto de Getsémani ................................................................................
XXXV     Juízo e condenação  ...........................................................................
XXXVI   Caminho do calvário e crucificação ..............................................................
XXXVII  Morte de Jesus .............................................................................................
XXXVIII Sepultura de Jesus ........................................................................................
XXXIX   Ressuscita por sua própria força .....................................................................
XL           Aparições de Jesus crucificado ......................................................................
XLI         Pedro vigário de Cristo, cabeça da Igreja .......................................................
XLII        A missão do apóstolo ...................................................................................
XLIII       Jesus, o Filho de Deus, ascende aos céus ........................................................


NOTA DO TRADUTOR




 Recém-chegado à Espanha, em mil novecentos e noventa e nove, travei o meu primeiro contato com o editorial Notícias Cristianas. Linguagem acessível, poucas páginas, sã doutrina, para os que querem, aprofundar o conhecimento da fé cristã, mas não conseguem dedicar muito tempo à oração ou à leitura: eis uma realidade européia, possível alvo dos livros de Notícias. Pude conhecer o editor-chefe e propor-lhe a tradução à língua falada nas Terras Brasileiras.
Dos adjetivos acima elencados, acrescentei o fato da carestia de livros, escassez de recursos do povo: ambiente favorável à difusão dos livros, uma possibilidade de aportar algo a labor dos pastores da Igreja no Brasil.
A obra que agora vos apresento não pode ser considerada de todo autêntica; já Taciano, escritor dos primórdios do cristianismo, fez do seu Diatessaron uma tentativa de fusão dos Evangelhos em uma única narração da vida de Cristo. De auntêntica tem o fato de ser uma obra sintética, sem perder a singularidade da vida de Nosso Senhor.
Aceita a proposta, veio-nos o desafio: traduzir conservando ao máximo a fidelidade ao original, dando um toque de brasilidade ao opúsculo. Levamos a cabo com ajuda de umas tantas mãos. Agradeço aos amigos de Barcelona, Santiago de Compostela e Roma que me ajudaram nessa empreitada. Minha gratidão especial aos seminaristas da Arquidiocese de Aracaju pelo apoio; a Fabiano Maurício Dantas, responsável pelo que há de bom na tradução. Quanto aos possíveis erros e imprecisões, esperamos corrigir numa posterior edição. De Fabiano, transcrevo fazendo minhas estas palavras: “Desculpe alguma imprecisão, afinal não sou nenhum gramático. Dei só uma ajudinha”.

C.D.




I
Deus se fez homem

Em um povoado da Galiléia, chamado Nazaré, vivia uma jovem que havia consagrado a Deus sua virgindade, se chamava Maria. Estava comprometida com um descendente do rei Davi, de nome José. Estando um dia em oração, recebeu a visita de um anjo de Deus que lhe disse: “Deus te salve, cheia de graça. O Senhor está contigo, bendita és entre todas as mulheres... Encontrastes graça diante de Deus; eis que conceberás e darás à luz um filho, a quem colocarás o nome de Jesus. Será grande, pois é o Filho do Altíssimo... Seu reino não terá fim”.
Maria não compreendia como poderia conceber um filho se havia prometido a Deus permanecer virgem. Mas o anjo esclareceu: “O Espírito Santo virá sobre ti e a virtude do Altíssimo te cobrirá. Por isso o santo que nascerá de ti será chamado Filho de Deus”. Maria aceitou com estas palavras: “Eis aqui a escrava do Senhor. Faça-se em mim segundo a tua palavra”. E naquele momento o Filho de Deus se encarnou nas entranhas dessa virgem.
Advertida pelo anjo que a sua prima Isabel estava esperando um filho, foi à sua casa, situada entre as montanhas da Judéia. Isabel recebeu-a com as mesmas palavras do anjo: “Bendita és tu entre as mulheres e bendito é o fruto de teu ventre. Por que sou digna de que a mãe do meu Senhor venha visitar-me? Feliz és tu por que acreditastes. Em ti se cumprirá tudo o que  foi dito da parte de Deus”.
Cheia de gozo a Virgem-Mãe exclamou: “Minha alma engrandece o Senhor. Meu espírito exulta de alegria em Deus, meu salvador. Por que contemplou a humildade de sua serva e por isso todas as gerações me chamarão bendita”.
A encarnação de Deus é a união física entre a criatura e seu Criador, entre o homem e Deus, com o vínculo mais estreito que se pode conceber, um vínculo pessoal. Pelo fato de ser onipotente pôde fazer-se homem, ou seja, pôde superar o abismo profundo, incomensurável que existe entre Ele e a criatura, entre a finitude dos homens e a infinitude de Deus.
É verdade que todo homem poderia ver na criação a mão poderosa de Deus, mas por causa do pecado se fez rebelde, orgulhoso, cego. Era necessário recompor o homem. A sabedoria e a providência divinas encontraram o modo de reconduzir o homem a Deus: o mesmo Deus se faria criatura, tomaria carne humana. É a magnitude divina que nasce de sua bondade: fazer o bem. Neste caso, o bem maior: salvar aos que lhe haviam ofendido.


II

Nascimento de Jesus 

As profecias diziam que o Messias, ou seja o Deus encarnado, esperado pelo povo judeu, haveria de nascer em Belém; e, não obstante, Maria e José moravam em Nazaré. Mas eis que por aqueles dias se promulgou um edito de César Augusto ordenando o censo de todo o império romano. Todos os judeus tiveram que ir para recensear-se na cidade de sua estirpe. José, sendo sua estirpe da casa e família de Davi, subiu à cidade desse rei, que era Belém, em companhia de sua esposa, Maria, que já estava perto do tempo de dar à luz. E aconteceu que, encontrando-se ali, Maria teve um filho. Enfaixou e colocou-o em uma manjedoura que lhe fez as vezes de berço.
Não muito longe daquele lugar havia alguns pastores que viviam no campo e passavam a noite em sentinela, cuidando do gado. Repentinamente aproximou-se a eles uma luz celestial e um anjo lhes anunciou o nascimento de Jesus, o Filho de Deus; e o lugar onde o encontrariam.
A alegria do céu se manifestou na terra: um numeroso exército de anjos louvava a Deus dizendo: “Glória a Deus nas alturas, e paz na terra aos homens de boa vontade”.
Mais que deter-nos na ternura dessa cena, convêm perguntar-nos: por que Deus quis nascer tão pobre? Jesus quis ser mestre desde seu próprio nascimento. Deveria ensinar-nos a não colocar nossa felicidades nas riquezas, honras ou prazeres deste mundo. Enquanto Jesus nasce na mais espantosa pobreza, Herodes recebe em Jerusalém, farto de adulações e prazeres, as homenagens de seus cortesãos; e em Roma, capital do mundo, César Augusto, embriagado de glória, se gaba por ter sobre o seu cetro todos os homens.
É assim como a mansidão, a humildade, a compaixão, e todas as outras virtudes cristãs nascem em Belém. A pobreza perde sua mancha e passa a ser virtude: desde Belém os pobres são imagem viva de Deus.


III

Perseguido

O rei Herodes, que governava Palestina, soube que o Messias havia nascido porquê uma comitiva de magos vindos do Oriente apresentou-se a ele perguntando onde poderiam encontrá-lo. Vinham com a idéia de que o encontrariam em um palácio, rodeado de comodidades. Herodes, alarmado, e com medo de perder o seu reino convocou, rapidamente, aos príncipes dos sacerdotes e aos escribas perguntando-os onde deveria nascer o Cristo. Eles responderam: “Em Belém de Judá, já que assim profetizou Miquéias quando disse: ‘E tu Belém, terra de Judá, não és certamente a menor entre as cidades da Judéia, por que de ti sairá o chefe que regerá a Israel, meu povo”. Herodes decidiu matar a Jesus, mas um anjo avisou a José, em sonho, que fugisse imediatamente para o Egito salvando assim o Menino. Herodes, visando conseguir o seu objetivo, mandou matar a todos os meninos de Belém e de toda a região que tivessem idade inferior a dois anos.
José e Maria permaneceram, pacientemente, no desterro do Egito até que o anjo apareceu novamente a José e mandou que regressasse à sua pátria. Herodes morreu aos setenta anos,  abominado e condenado por todos, e seu cadáver foi levado à fortaleza de Herodião, testemunho de suas orgias e monumento de suas vinganças. José, por ordem de Deus, afastou-se da Judéia e se dirigiu à Galiléia, ao povoado de Nazaré, onde viveu numa modesta casa, que assistiria aos anos de vida oculta do Verbo encarnado. Ali “cresceria Jesus em idade e graça diante de Deus e dos homens”. Nessa expressão o evangelista resume a vida daquele jovem, desde os doze aos trinta anos. Viveu ignorado num lugar da Galiléia, trabalhando numa humilde profissão, escondendo sua grandeza divina, ao invés de manifestá-la; o que é tão próprio dos homens. Viveu obediente aos seus pais. Vida humilde, dedicada ao trabalho, oculta, igual a de muitos homens, que não ultrapassa um pequeno círculo de vizinhos; mas com uma diferença: nesse silêncio de Jesus, imposto pela vontade do Pai, cada palpitar do coração era uma aceitação gozosa, um ato de agradecimento por todos e cada um dos pequenos gozos e contrariedades que seu Pai lhe apresentava.


IV

Pelos caminhos da Palestina

Aos trinta anos, Jesus abandonou a sua casa em Nazaré para ir pregar publicamente a sua doutrina. Mas antes tinha que enviar o seu precursor, para que lhe preparasse o caminho. Seu precursor era João, filho de Isabel, prima de Maria, a quem esta havia visitado durante a gravidez. João vivia, desde a sua adolescência no deserto, vestindo-se com pele de camelo, cingindo a cintura com uma correia e alimentando-se de gafanhotos e mel silvestre. Chegada a hora, Deus inspirou a João para que abandonasse o deserto e percorresse as margens do rio Jordão pregando penitência e batizando com água, como símbolo da necessidade de purificar o espírito. As pessoas lhe perguntavam: “Que devemos fazer?”. E ele respondia: “Aquele que tem duas túnicas que dê uma para o que não tem. E aquele que tem comida, faça a mesma coisa”. Aos arrecadadores de impostos lhes pedia para que não exigissem mais do que o devido e, aos soldados, que se contentassem com o seu salário, sem espancar ou caluniar a ninguém. Advertia-lhes: “Eu só batizo com água para que façam penitência. Mas virá outro mais poderoso que eu, do qual não sou digno nem sequer de desatar a correia das  sandálias. Ele os batizará com o Espírito Santo”.
Quando Jesus se aproximou de João para ser batizado, este o reconheceu e resistia dizendo: “Sou eu que devo ser batizado por Ti, e Tu vens a mim?” Jesus lhe fez ver que a vontade de Deus era que Ele, o Filho de Deus, se humilhasse e recebesse, como pecador, sem que o fosse, o batismo de penitência. João aceitou e logo depois que Jesus foi batizado os céus se abriram e desceu sobre Ele o Espírito Santo. Ouviu-se a voz de Deus Pai que dizia: “Este é o meu Filho querido, que muito Me agrada”.
Depois de batizado, Jesus foi guiado pelo Espírito Santo ao deserto, onde esteve durante quarenta dias e quarenta noites sem nada comer. Para muitos dos que vivem nessas regiões, “ir ao deserto” significa “ir morrer”. Pensam assim não só pelos efeitos do jejum, senão também pelo que são as noites no deserto: longas e frias. Na escuridão, ecoam os lamentos dos chacais errantes. Às vezes, do vale do Jordão às montanhas de Moab, sobem os bramidos dos animais. Algumas vezes, na escuridão, o ligeiro ranger da areia denuncia que rondam animais pelas proximidades.
Como pôde agüentar tanto tempo? Parece indubitável que os pecados do mundo, que Jesus havia assumido, lhe pesavam agora mais sensivelmente que antes; mas, ao mesmo tempo, se apoderou Dele um desejo ardente de empreender a luta contra o reino do pecado e reparar a honra de seu Pai Celestial. Em razão deste crescente fervor ficou como que  subtraído às leis ordinárias da vida do corpo e à espantosa solidão. Mas, passados os quarenta dias e desaparecido o fervor, deve ter sentido um esgotamento e uma fome que chegaram ao extremo. Esta necessidade foi a origem das tentações. O demônio lhe sussurrou que se alimentasse, convertendo as pedras em pão. Jesus descartou: embora tivesse poder para isso, embora tivesse poder para criar do nada, não contrariaria a vontade de seu Pai só para fazer a vida mais suportável. É a lição que queria transmitir à sua Igreja: o milagre deve ser sempre em beneficio dos irmãos, para o bem alheio, não para a nossa comodidade. Assim, seguindo o modelo de Jesus, o homem de fé diz: “Eu confio em Deus. Ele é quem determina o tempo e a forma de vir em minha ajuda”.


V

O primeiro milagre

Jesus foi convidado para uma festa de casamento que se celebraria em Caná. Jesus foi com os seus primeiros discípulos e com a sua mãe. Estando alí, começou a faltar vinho. Maria se aproximou de Jesus e lhe disse: eles não têm vinho. Jesus lhe responde que ainda não havia chegado a hora de manifestar-se ao mundo com milagres. Mas disse sua Mãe aos que serviam: “Fazei o que Ele vos disser”. Atendendo aos desejos de Maria, Jesus ordenou que enchessem de água os três recipientes de pedra que serviam para as purificações dos judeus. Encheram-as ao máximo. Jesus mandou, em seguida, que servissem como vinho. E assim se fez. A água mudou de substância e foi transformada em vinho de tal qualidade que mesmo o mestre-sala, criado que servia a mesa do senhor e provava do que se servia para evitar um envenenamento, se queixou ao esposo de haver rompido a tradição de servir o bom vinho no início. “Todo homem serve primeiro o bom vinho, e depois de haver bebido bem, então dá o que não está tão bom; mas tu guardastes o bom vinho até agora”.
A leitura dessa passagem talvez produza certa estranheza nos nossos tempos, e alguém se pergunte: era tão importante ter vinho? Jesus numa festa de casamento? O primeiro milagre não deveria ter mais vigor?
Deus se encarnou para revelar-se a quem quisesse aceitá-lo, e é evidente que as pessoas simples fossem os seus primeiros seguidores. Para estas pessoas, uma festa de casamento em sua vizinhança é quase a única festa que interrompe a vida de trabalho. A festa de casamento é uma grande preocupação para esse tipo de gente. Quanto mais pobre, mais se preocupam para que não falte nada. Os pratos preferidos nessas festas são: carne de carneiro fervida ao leite, todo tipo de legumes frescos e frutas secas, como figos e passas e especialmente o vinho. Isto não quer dizer que essas pessoas vivessem bem; pelo contrário, passavam semanas só a pão e água. Mas numa festa de casamento não pode faltar o vinho, que na Palestina não é uma bebida de prazer, mas tomado como alimento. Bebe-se misturado com água. Freqüentemente se conserva em potes de barro, sobretudo se são famílias pobres, que o guardam como “vinho para o casamento”. Assim, passam diante dos  potes e dizem: “este é o vinho para a festa de casamento. Até este dia ninguém poderá tocá-lo”.
Já podemos nos ir dando conta do problema que representa faltar vinho em uma festa de casamento judeu. É como ter que interromper os sete dias que costuma durar a festa. Seria a primeira amargura para os recém-casados. Jesus, pois, dela participou porque estava entre sua gente, os pequenos, os humildes.
Ter vinho em um casamento era tão necessário como ter alimento parra dar aos convidados.
Não é de uma beleza incomparável o gesto de Jesus, movido precisamente pelo pedido de uma mulher, sua Mãe?!


VI

Ira santa

Este mesmo Jesus, todo ternura e compreensão em relação às pessoas humildes, se torna um homem firme, cuidadoso, serenamente irritado ante a maldade. Aproximando-se a Páscoa judaica dirigiu-se a Jerusalém e encontrou o Templo de Deus cheio de mercadores que vendiam bois, ovelhas e pombos para os sacrifícios, e cambistas, hoje diríamos banqueiros que, sentados, trocavam moedas gregas e romanas por moedas judaicas, as únicas aceitas para dar esmola ou donativo ao Templo. Ante tamanha profanação, Jesus se inflamou de zêlo por causa da ofensa que se fazia à casa de seu Pai. Mas, com um santo domínio sobre si, começou improvisando um chicote com algumas cordas e, uma vez terminado, aplicou-o contra os vendedores, as ovelhas e os bois, lançando ao solo o dinheiro dos cambistas, revirando suas mesas e bancos. Aos que vendiam pombos disse: “Tirai isto daqui e não transformeis a casa de meu Pai numa casa de comércio. Convertestes-a em cova de ladrões”.
 Os discípulos, ante aquele gesto irado de seu Mestre, lembraram-se da profecia que colocava na boca de Jesus estas palavras: “O zelo por tua casa me consome”.
Os discípulos estavam tão seguramente surpreendidos quanto os comerciantes e demais espectadores. Jesus, o galileu de Nazaré, se atrevia a lançar-se contra os abusos tolerados pelos sacerdotes! Mas ante um homem assim, cheio de ira divina mas com completo domínio próprio, toda oposição cai por terra.


VII

Diálogo no silêncio da noite

Jesus empregou os oito dias da festa de Páscoa para pregar e fazer milagres. Muitos creram nele; outros se perguntavam quem era aquele homem que fazia coisas tão extraordinárias. Um destes, Nicodemos, um fariseu culto e bom conhecedor da Lei, durante a noite se aproxima de Jesus. Quer conhecer a fundo o Mestre e precisa solidão e tempo. Para um diálogo como este, a melhor hora, no Oriente, é a última da tarde. É a mais própria num país onde faz muito calor. Nicodemos diz simplesmente: “Sabemos que és enviado de Deus, pois ninguém pode fazer milagres como tu fazes, si Deus não está com ele”.
Jesus conhece a nobreza científica de Nicodemo. Um homem sem duas caras. “Aquele que não nasce de novo não pode ver o reino de Deus”, responde Jesus. Nicodemo não entende a profundidade da doutrina messiânica e humanamente pergunta: “Como pode um homem já adulto nascer de novo?” Jesus esclarece em que consiste esse segundo nascimento: “Podes estar seguro que ninguém pode entrar no reino de Deus se não renasce da água e do Espírito Santo”.
“O que nasce da carne, é carne; e o que nasce do espírito, é espírito.” O nascimento da carne, que dá vida corporal, não pode ser repetido, como perguntou Nicodemos, mas o nascimento do Espírito Santo em uma alma, pelo batismo de água ou de desejo, pode criar no homem uma nova vida espiritual. Esta é a conversão, mudança de vida, que pregava Jesus.
E esta conversão se dá no homem que olha para a cruz, para a dor. Jesus acrescentou: “Assim como Moisés levantou a serpente no deserto, assim é necessário que o Filho do Homem seja levantado para que aquele que creia não morra, mas tenha vida eterna”.
Os israelitas, mordidos por serpentes venenosas no deserto do Sinai, ficavam curados e não morriam se olhassem para uma serpente de bronze que Moisés havia mandado colocar em um ponto bem visível. Toda mudança de vida, toda conversão,inclui indefectivelmente, um olhar a Jesus, o Filho do homem, crucificado. Para sofrer a Paixão e morte encarnou-se o Filho de Deus. Fez-se Filho do homem. Os homens, pois, não se salvam por si mesmos. É Deus quem os salva.
Seguramente Nicodemos, aquele sábio judeu, ia compreendendo que a salvação não depende do conhecimento; mas, ao contrário, a ciência pode ser impedimento de salvação por parte do homem, porque o conhecimento ensoberbece e muitas vezes não se compreende a razão da dor. Olhar a cruz é mais próprio dos simples e humildes, das pessoas de “boa vontade”, que dos sábios. Nicodemos partiu pensativo. Havia comprovado que Jesus era muito mais que um enviado de Deus. Era tamanha a profundidade e clareza de sua doutrina que não poderia ser senão o mesmo Deus.


VIII

O preço da água

Depois da conversa noturna, Jesus deveria atravessar a região de Samaria. E chegou a uma cidade samaritana, Sicar, que estava perto do poço que Jacó havia dado ao seu filho José. Ali mesmo se encontrava a fonte de Jacó. Jesus se sentou, fatigado da caminhada, com toda naturalidade, na beira do poço; era quase meio-dia, fazia muito calor. Com isso chega uma mulher samaritana para buscar água. Jesus lhe diz: “Dá-me de beber”. Os judeus menosprezavam os samaritanos; por isso a mulher responde: “Como tu, sendo judeu, pedes de beber a mim, que sou samaritana?” Não sabes que somos inimigos? Pedes como se fôssemos amigos.
A samaritana olha o fundo do poço. O poço tinha uns trinta metros. Não vê a água, mas traz uma grande corda. Jesus lhe propõe uma mudança: tu tens a corda  e o poço. Dai-me água material. Eu tenho uma água que mata a sede para sempre.Ofereço desta a ti. A samaritana compreende a seriedade daquele judeu. Mas não transcende o sentido espiritual. Veio muitas vezes, em pleno verão, em busca de água, e regressou tão cansada à sua casa que por um momento espera o milagre de que elimine a sua sede material. Olha para Jesus e diz: “Dá-me desta água para que não tenha mais sede e assim não terei que vir aqui a buscá-la”.
Chegou o momento em que Jesus faz ver o valor superior, incalculável, da água espiritual que lhe oferece. “Vai a tua casa e regresses com o teu marido”. A samaritana responde: “Não tenho marido”. “Sim, eu sei... Tivestes cinco maridos e o que agora tens não é teu marido”.
A samaritana não se ofende. É uma mulher pecadora, mas humilde. Vai compreendendo que se encontra ante um ser excepcional, para quem todos os homens são iguais. Por isso falou com ela, samaritana e pecadora. Diz a mulher: “Sei que não tardará a chegar o Messias, chamado Cristo. Quando vier nos ensinará a verdade”.
Jesus lhe responde: “Este sou eu, que fala contigo”.
A samaritana compreendeu que a água espiritual que Jesus oferecia é o amor que supera fronteiras e ódios, que faz amar ao inimigo. Naquele momento entendeu a atitude de Jesus, que sendo judeu, havia pedido água a uma samaritana.
Chegam os discípulos. A mulher deixa o cântaro e apressada regressa à cidade. É conhecida de todos; aos gritos lhes diz: “Vinde ver o Homem que me disse tudo o que tenho feito. Vejamos se não é o Messias!”
Os samaritanos convidam Jesus a permaneçer em sua cidade. Jesus aceita e permanece entre eles por dois dias. Ao deixarem Jesus, dizem à mulher pecadora: “Já não temos necessidade de crer em ti. Nós mesmos vimos e ouvimos e afirmamos que Este é verdadeiramente o Salvador do mundo”.


IX

O Senhor dos milagres

Jesus começou a residir em Cafarnaum, cidade da Galiléia. Havia na sinagoga dessa cidade um homem possuído por um demônio impuro, o qual gritou  em alta voz: “Que tens tu conosco? Vieste para arruinar-nos? Bem sabemos quem és: és o Santo de Deus”.
Estas palavras possivelmente produziram um horror repentino. Só que Jesus permaneceu impávido. Avançou ao encontro do endemoninhado e disse com firmeza: “Cala-te e sai desse homem”. O demônio, sacudindo-o com violentas convulsões, lançou-o ao solo e saiu dele, sem fazer-lhe nenhum mal. Ficaram todos tão chocados que se perguntavam uns aos outros: “Que nova doutrina é esta? Fala com tal autoridade que até os espíritos imundos  lhe obedecem”.
Toda a cidade de Cafarnaum se transformou em um formigueiro: assim, depois do crepúsculo, terminado o descanso sabático, as pessoas se espremiam na entrada da casa de Pedro, onde residia Jesus. Traziam doentes de diferentes enfermidades e Jesus os curava tão somente impondo as mãos sobre eles. Também expulsou muitos demônios que saiam gritando: “Tu és o Filho de Deus”. Mas Jesus lhes proibia falar por que desprezava o testemunho dos malvados demônios.
Ao dia seguinte, bem cedinho, foi a um lugar solitário para rezar. Depois se dirigiu a outras cidades para seguir anunciando a chegada do reino de Deus. Numa delas encontrou um homem cheio de lepra, que ao ver Jesus, prostrou-se por terra e lhe rogou: “Senhor, se queres, podes limpar-me”. Jesus estendeu a mão, tocou-o e disse: “Quero, fica limpo”. E no mesmo instante desapareceu a lepra. Jesus, além de ordenar que não contasse a ninguém, disse: “Vai, apresenta-te ao sacerdote e oferece por tua cura o que mandou Moisés a fim de que lhes sirva de testemunho”. Apesar de tais proibições, a sua fama aumentou mais e mais, de modo que chegavam grandes multidões para ouvir Jesus e serem curados de suas enfermidades.
Jesus é Senhor dos milagres porque é Senhor da vida; curava todos os males da mesma maneira, sem diagnóstico, sem palavras já determinadas, sem fórmulas preparatórias. Colocava em liberdade os endemoninhados e não consentia que se falasse de si. Porque o fim de toda cura era mais que a saúde: era devolver aos homens a fé em Deus Pai. Toda obra de misericórdia deve ter o mesmo fim: devolver a confiança em Deus, que é Pai do pobre, do doente, do abatido.


X

Deformações da lei

Tanto transportar aos doentes como oferecer-lhes um tratamento medicinal era terminantemente proibido em dia de sábado. Não pela lei de Moisés, mas pela mesquinhez das interpretações dos sábios doutores. Por este motivo os fariseus ficaram nervosos ao ver que Jesus curava em dia de sábado, o dia do repouso absoluto, e que as pessoas se dirigiam a ele com seus doentes.
Também os fariseus tinham um desprezo especial pelos publicanos, que se dedicavam a cobrar impostos. Jesus havia escolhido para seu discípulo precisamente um desses publicanos, Levi, a quem chamou de Mateus. As coisa aconteceram assim: Levi se encontrava sentado no banco dos impostos e Jesus lhe disse: “Segue-me”. O publicano deixou tudo e o seguiu na mesma hora. Seus companheiros quiseram dar-lhe um grande banquete de despedida e Jesus foi comer com eles. Os fariseus se escandalizavam por Jesus comer com aqueles pecadores. Jesus lhes explicou: “Tenham em consideração que não necessitam de médicos os que estão com saúde, mas os doentes. Eu vim para que os pecadores se convertam e façam penitência”.
Não sabiam o que responder, mas o ódio os invadia.
Aconteceu que, num dia de sábado, Jesus entrou em uma sinagoga para ensinar e encontrou ali um homem que tinha a mão direita seca. Os fariseus estavam atentos para ver se Ele ousaria curar em dia de sábado. Jesus, que conhecia os seus pensamentos, disse ao doente: “Levanta-te e vem para o meio!”.
Os fariseus estavam calados. Jesus prosseguiu: “Há alguém entre vós que tendo um jumento se este cai em um buraco, mesmo en dia de sábado, não o retira do buraco? Pois, quem vale mais, um homem ou um jumento? Logo, é permitido fazer o bem em dia de sábado”.
Os fariseus seguiam obsecados, ansiosos de acusa-lo por curar em dia de sábado. Jesus fixou os olhos neles cheio de indignação e disse ao homem: “Estende a tua mão”. Estendeu-a, ficando normal como a outra.
Cafarnaum é a cidade dos milagres de Jesus e também da incredulidade. Contam os evangelistas que um dia houve um fluxo tão grande de pessoas em frente à casa onde vivia Jesus, que não cabiam e se aglomeravam diante da porta. E assim lhes ensinava. Nisso, chegaram alguns com um paralítico levado por quatro homens. Mas não podiam entrar. Decidiram, então, fazer uma abertura no teto da casa: tiraram as palhas, que faziam as vezes de telhado, e desceram a maca com o doente, colocando-a aos pés de Jesus.
Todos os olhares estão fixos no Mestre. Todos se fazem a mesma pergunta: curará ou não o doente?  Mas os que estão mais tensos são os fariseus. O doente pede com o olhar: “Dá-me a saúde do corpo”.
Jesus é desconcertante. Não o cura na mesma hora. Só diz: “Teus pecados te são perdoados”. Te dás conta, filho, de que te estou curando? Dei vida à tua alma com o perdão que acabas de receber... embora teu corpo siga imóvel.
Todos ouviram muito bem: Jesus havia perdoado os pecados do paralítico, por seu próprio poder divino. E por que conhecia perfeitamente os pensamentos mais secretos de seus inimigos, lhes diz: “O que é mais fácil: dizer ‘teus pecados estão perdoados’ ou mandar a este paralítico que se levante, pegue sua maca e comece a andar?
Os fariseus não respondem. Sabem que tanto uma coisa como a outra requerem poder divino. Mas assim como é fácil dizer “teus pecados estão perdoados” e ninguém pode comprová-lo por que pertence à jurisdição interna, em troca, mandar a um paralítico andar é um milagre fácil de captar. Calam porque sabem que se Jesus demonstra seu poder divino para curar os corpos, também o terá para curar as almas, perdoando ao pecador.
Jesus, com um sereno olhar, conclui: “Pois, para que vejais que o Filho do Homem tem poder de perdoar os pecados na terra, te digo: levanta, toma a tua maca e regresses à tua casa”.
Ao ouvir esta voz, o paralítico se levanta, pega a sua maca e desaparece à vista de todos.


XI

Os escolhidos

Jesus resolveu escolher doze apóstolos entre os seus seguidores; mas, antes de proceder à eleição retirou-se num monte e passou toda a noite em oração. Ao amanhecer, escolheu Simão, a quem deu o nome de Pedro; André, seu irmão; os filhos de Zebedeu, Tiago e João; Felipe e Bartolomeu, Mateus e Tomé; Tiago , filho de Alfeu e seu irmão Judas Tadeu; Simão, o Zelote e Judas Iscariotes, que foi o traidor. A missão deles seria a de acompanhar Jesus e aprender sua doutrina para pregar e expulsar os demônios. Com eles percorreu cidades e aldeias, ensinando nas sinagogas e curando doenças. Eram seguidos por multidões que não lhes davam tempo nem para comer. Se, em alguma ocasião, embarcavam para  evitar as grandes aglomerações, ao regressarem se encontravam com a mesma multidão. Jesus sentia compaixão e dizia: “Estão como ovelhas sem pastor”.
Repetia aos seus apóstolos que a messe é grande e poucos são os operários. “Pedí ao Senhor da messe para que envie mais operários para  messe”. Depois deu-lhes poder sobre todos os demônios e virtude para curar as doenças. Quando os enviou a pregar os instruiu: “Ide pelos caminhos dizendo: ‘já esta próximo o reino dos Céus’. Curai doentes, ressuscitai mortos, limpai leprosos e expulsai demônios. Dai gratuitamente o que gratuitamente haveis recebido... Eu vos envio como a ovelhas em meio de lobos. Sede prudentes como serpentes e mansos como pombinhos... Os homens vos denunciarão aos tribunais, vos açoitarão e vos conduzirão ante governadores para dardes testemunho de mim a eles e aos pagãos. Mas não vos angustieis pensando no que falareis; pois não sereis vós que falareis senão o espírito de vosso Pai que falará em vós... Não temais os que matam o corpo mas não podem matar a alma; temei, sim, àquele que pode perder no inferno a alma e o corpo... Todo aquele que der testemunho de mim diante dos homens, lhe confessarei também diante de meu Pai que está nos céus; mas aquele que me negar diante dos homens, eu também o negarei diante de meu Pai que está nos céus.”
Foi assim que os doze percorreram os povoados pregando penitência. Expulsavam os demônios e, ungindo com azeite os enfermos, os curavam.
Tinham a prudência dos homens humildes e, embora vestissem camisas desbotadas pelo sol e pela água do lago, suas mãos fossem inchadas e grossas ou seus rostos sujos pelo suor, o certo é que eram homens santos. Só um seria infiel por causa do egoísmo.


XII

Para ser feliz

Cada dia que passava, aumentava a multidão atraída pelos milagres. Jesus lhes ensinava dizendo:
Felizes os pobres de espírito, por que herdarão o reino dos Céus.
Felizes os mansos, por que possuirão a terra.
Benditos os que hoje choram, por que serão consolados.
Bem-aventurados os que têm fome e sede de agradar a Deus, de fazer a vontade divina, por que serão saciados.
Felizes os que se compadecem e cuidam de seus irmãos mais pobres, por que eles também alcançarão misericórdia.
 Benditos os que têm o coração limpo, os que sempre atuam com reta intenção, por amor a Deus, por que eles verão a Deus.
Bem-aventurados os que semeiam paz entre os irmãos, eles serão chamados filhos de Deus.
Felizes e benditos os que são perseguidos por darem testemunho de sua fé, por que deles é o reino dos Céus.
 Benditos sereis quando por minha causa vos caluniarem e perseguirem e vos difamarem.
Alegrai-vos por que é muito grande a recompensa que vos aguarda no céu.


XIII

Como devem ser os seguidores de Cristo

“Foi dito”, disse Jesus, “aos vossos antepassados: não matarás. Eu vos digo mais: quem tomar aversão ao seu irmão será digno de ser condenado; aquele que menospreza a um irmão será julgado em assembléia; quem o chama insensato, será réu do fogo do inferno”.
A caridade, o amor aos irmãos, está acima das ofertas materiais ao mesmo Deus. Por que a principal oferta é o amor. Por isso Jesus insistia: “Se quando fores apresentar tua oferenda no altar te recordares que teu irmão tem alguma queixa contra ti, deixa ali a tua oferenda e vai primeiro reconciliar-te com ele. Depois poderás apresentar a tua oferenda”.
“Vos foi dito ‘olho por olho e dente por dente’. Eu vos digo: se alguém dá um tapa no lado do teu rosto, ofereçe-lhe também o outro. Ouvistes dizer: ‘Amarás a teu próximo e odiarás a teu inimigo’. Eu vos digo mais: Amai aos vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem, para que sejais filhos de vosso Pai celestial que faz nascer o sol sobre bons e maus e chover sobre justos e pecadores. Porque, se só amais aos que vos amam, que prêmio havereis de ter? Não fazem o mesmo os publicanos? Sede perfeitos como vosso Pai celestial é perfeito”.
“Não façam boas obras diante dos homens para que vos vejam... Quando derem esmola não queiram publicar ao som de trombeta como fazem os hipócritas a fim de serem honrados pelos homens. Vos garanto que eles já foram recompensados. Tu, quando deres esmola, fazes com que a tua mão direita não veja o que faz a esquerda para que a tua esmola fique oculta. E teu Pai, que vê o oculto, te recompensará.
Quando jejuardes, não fiqueis tristes, como os hipócritas que desfiguram os seus rostos para mostrar aos homens que estão jejuando. Em verdade, já receberam a sua recompensa. Ao contrario, quando jejuares, perfuma a tua cabeça e lava o teu rosto para que só o teu Pai que está nos céus conheça o segredo”.
Para que evitemos julgar ao nosso próximo, Jesus assinala: “Não julguem e não sereis julgados. Não condenem e não sereis condenados. Perdoai e sereis perdoados. Dai e vos será dado... Como podes olhar o cisco que está no olho do teu irmão se não vês a trave que está no teu? Corriges primeiro a ti mesmo, examina-te a fundo, tira a trave do teu olho, e então verás como poderás tirar o cisco do olho do teu irmão. Por que se és cego, como poderás guiar a outro cego?”


XIV

Confiar em Deus

Jesus insistia na necessidade de por nossa confiança na providência Divina. É inútil acumular tesouros na terra. De um modo ou de outro ficaremos sem coisa alguma. Só permanecerá o bem que fizermos. Por isto, se engana quem serve a Deus tendo o seu coração posto nas riquezas deste mundo. E se não existe a segurança da riqueza, em que o homem deve confiar? Jesus diz: “Não vos angustieis com a necessidade de encontrar o que comer para sustentar vossa vida ou onde conseguir roupas para vestir os vossos corpos. Olhai as aves do céu, não semeiam, nem cultivam, nem têm depósitos de grãos, e vosso Pai celestial alimenta-as. Pois, não valeis muito mais que essas aves? Por que vos preocupais com as roupas? Olhai os lírios do campo como crescem: eles não lavram nem tão pouco tecem; e ainda assim, eu vos digo: nem Salomão em meio a toda sua glória se vestiu como um destes lírios. Pois, se a erva do campo, que hoje existe e amanhã é lançada ao fogo, Deus a veste assim, quanto mais a vós, homens de pouca fé? Não vos preocupeis. Vosso Pai conhece as necessidades que tendes de roupa e de comida. Buscai primeiro o reino de Deus e sua justiça e todas as outras coisas vos serão acrescentada”. Se é assim, por que existe tanta gente que leva uma vida miserável, sem casa, sem comida, cheios de doenças, aniquilados e sem esperanças...? Porque nós, seus irmãos, não buscamos em primeiro lugar a justiça – a vontade de Deus – e nos apropriamos dos bens que corresponderiam a outros. Não confiamos na palavra de Deus. Nós cristãos, corremos atrás do “ter mais” e ao fim, ficamos, muitas vezes, sem o “ter mais” e sem o reino de Deus. Por isto, temos que ter presentes a advertência de Jesus quando disse: “Entrai pela porta estreita; por que a porta larga e o caminho espaçoso são os que conduzem à perdição e são muitos os que vão por ele. Estreita é a porta e estreito o caminho que conduz à vida e poucos são os que se atrevem a seguí-lo”.


XV

Os mortos ressuscitam

Depois que proferiu o sermão da montanha, Jesus entrou outra vez em Cafarnaum. Havia nesta cidade um centurião que tinha um criado, a quem queria muito e que estava doente, à beira da morte. Este enviou alguns anciãos dos judeus para que dissessem a Jesus que viesse curar ao seu criado. Os anciãos disseram ao Mestre: “Ele é digno de que lhe faças este favor, por que quer muito à nossa nação e nos edificou uma sinagoga”. Jesus aceitou e se foi com eles, mas estando já perto da casa do centurião, este saiu ao seu encontro e lhe disse: “Não sou digno de que entres em minha casa; basta que digas uma palavra e será suficiente para que meu criado fique curado... É suficiente com que dês uma ordem”. Ao ouvir isto Jesus se admirou e voltando-se à multidão que o seguia, disse: “Em verdade os digo que não encontrei tanta fé em Israel”. E disse ao centurião: “Ide e seja como credes”. E naquela mesma hora o criado ficou curado.
Pouco depois, Jesus foi, com seus discípulos e com muita gente, à cidade de Naim. Quando chegou à porta da cidade, eis que levavam um defunto para enterrar; era filho único e sua mãe era viúva. Grande multidão da cidade ia com ela. Compadecido, Jesus disse à mãe: “Não chores”. Depois, se aproximou do caixão. Os que o transportavam pararam. Jesus disse: “Jovem, eu te ordeno: levanta-te”. O morto se reanimou e começou a falar. E Jesus entregou-o à sua mãe.
Com isto se encheram de grande temor e glorificavam a Deus dizendo: “Um grande profeta apareceu entre nós”, e “Deus visitou o seu povo”. O eco destas exclamações se estenderam por toda Judéia e por todas as regiões vizinhas.
Pouco tempo depois, Jesus se encontraria com Jairo, um chefe da sinagoga, que se prostrou aos seus pés dizendo: “Minha filha esta morrendo; venha e coloque a tua mão para que fique curada e sobreviva”.
Enquanto se dirigiam a sua casa, lhe avisaram que não era necessário que Jesus fosse pois sua filha já estava morta. “Não canses o Mestre”, insinuam-lhe. Jesus olha para ele e diz: “Não tenhas receio. Só é necessário que tenhas fé”. E prosseguiram o caminho acompanhados por Pedro, Tiago e João. Chegam à casa e contemplam uma grande confusão com gente chorando e dando grandes gritos. Ao entrar na casa, Jesus lhes disse: “por que chorais? A menina não está morta senão dormindo”. Eles não acreditavam. Jesus os coloca para fora. Fica só com o pai, a mãe e os três discípulos. Se aproxima de onde repousa a jovem. Tomando-a pela mão lhe diz: “thalita kumi” que significa: Menina -eu te digo- levanta-te. No mesmo momento a menina levantou e começou a andar, pois já tinha doze anos. Todos ficaram cheios de assombro. Jesus manda que não contem a ninguém o que acabavam de presenciar e que dêem de comer à menina. Más a notícia do milagre se estendeu por toda a região.


XVI

O vento e o mar lhe obedecem

As tempestades no lago de Genesaré não deveriam surpreender a uns pescadores tão experientes como eram a maioria dos apóstolos. Mas nas duas travessias do lago aconteceram algo assombroso: Jesus mandou que navegassem num dia em que eles, pescadores experientes, haviam ficado em casa.
Na primeira vez foi assim: Jesus estava cansado. Esteve falando ao povo durante muito tempo e com toda sua alma. Pediu aos discípulos para que cruzassem o lago, que fossem à outra margem. E eles obedeceram. A atmosfera do lago fatiga e adormece, por si mesma, a quem não esteja acostumado a ela desde jovem. O movimento compassado dos remos faz com que o Senhor adormeça. Na popa, junto ao timão, tinha uma espécie de almofada. Ali, entre a quilha e o banco de remos, há um espaço livre para que um homem possa deitar-se. Mas, como temiam os pescadores, entre um abrir e fechar de olhos, o tempo muda por completo. O barco encontra-se no meio de uma zona agitada, e as ondas sobem. Quando suas cristas passam raspando junto à embarcação atirando-lhe água, a nau perde sua mobilidade e toda a arte de remar e manobrar fracassam. Em determinados trechos surgem os redemoinhos. Os pescadores perdem a esperança em suas habilidades. Não lhes resta mais que confiar no poder de seu Mestre. Mas este dorme... A fé dos discípulos não é tão firme para esperar e permanecerem tranqüilos. Decidem despertar-lo. “Mestre, dizem impacientes, não vês que perecemos?” Jesus se levanta. Se dirige ao vento dizendo: “Cala-te!” Depois diz às ondas: “Tranqüilizai-vos”. O vento obedece e para instantaneamente: o lago fica tranqüilo. Os apóstolos, gente do mar, sabem que depois que o vento para, as ondas seguem ainda muito tempo depois agitadas e ameaçadoras. Agora não ocorreu assim. Não só as águas apaziguaram, senão que o lago ficou imóvel como um espelho.
Quando Jesus cura a um paralítico, eles se admiram; mas agora, ante este milagre, eles, autênticos profissionais do mar, se impressionam. Olham a Jesus e estão seguros de sua divindade. O Mestre sorri: “Porque desconfiastes? Ainda não tendes fé?” É como se quisesse dizer: “Não necessito está acordado para poder interceder por vós”.
Os discípulos recordam passagens da Escritura, em especial a do domínio do Mar Vermelho, como obra própria de Deus, de sua potência e sabedoria. Por isto exclamam: “Quem é Este que até o vento e as ondas obedecem”.
Pouco depois comprovaram de novo o poder de Jesus sobre as forças da natureza. Foi numa noite em que o divino Mestre subiu a um monte, do qual se domina o lago de Tiberíades, para orar. Assim que, em plena noite, Ele estava só na montanha. Os apóstolos estavam no meio do mar, a quatro ou cinco quilômetros da costa e não podiam avançar. Se perguntavam em seu interior porquê Jesus lhes havia mandado subir ao barco, e porquê Ele não os acompanhou. O barco estava agitado, como um brinquedo, pelas ondas. Porque era noite de lua cheia e estava tudo claro, Jesus presenciava, da montanha, que os discípulos não controlavam o vento. La pelas três da madrugada aproximou-se deles caminhando sobre as ondas, como se estas fossem firmes. Esta visão espantou os pescadores: não lhes passou pela cabeça que pudesse ser Jesus em pessoa. Emitiram bruscamente uma exclamação de horror: “É um fantasma!” Mas, Jesus se dirigiu a eles com estas palavras: “Não tenham medo, sou eu”. O medo desapareceu. Pedro gritou: “Senhor, se és Tu, manda-me ir ao teu encontro”. Jesus aceitou, complacente, aquele sinal de amor e de fé de Pedro. “Vinde”, respondeu.
Pedro saltou e não se afundou. Avançava em direção a Cristo, seguro, como se fosse por terra firme. Mas, pouco a pouco, começaram a vir à sua cabeça todo tipo de imaginações. Sua experiência de pescador ia impondo-se. “Como era possível tal coisa?” Era impossível que alguém andasse sobre as águas sem afundar... Um golpe de vento terminou por desconcertar-lhe. Perdeu o equilíbrio e começou a afundar. Uma exclamação saiu de seu peito: “Senhor, salva-me” Jesus estendeu o braço e sustentou-lhe, repreendendo-o: “Homem de pouca fé, porque duvidastes?” Logo depois que Jesus subiu ao barco o vento acalmou-se. Os apóstolos se lançaram aos pés de Jesus e disseram: “Verdadeiramente és Filho de Deus”.


XVII

Deus, o poder de criar do nada

Do nada, nada sai, disse o filósofo racionalista. Mas quando se é Deus, se pode afirmar que não repugna à natureza o milagre de criar do nada. Precisamente aqui está a força do mistério divino. Que do nada deu origem à criação. Chamamos de multiplicação dos pães e peixes às duas ocasiões em que Jesus deu de comer a multidões, só com cinco pães e dois peixes que traziam um garoto... Em realidade é a criação da matéria operada pela força de Jesus. Não se trata de que Jesus necessitasse dos pães e peixes daquele garoto, senão como exemplo da colaboração do homem no plano divino. Mas, o poder divino se manifesta através da criação, partindo do nada da matéria, neste caso, o alimento necessário para que muitas pessoas recuperassem as suas forças.
Aconteceu que grandes multidões seguiam a Jesus. Em uma ocasião, estando em uma zona desabitada, seus discípulos lhe sugeriram que despedisse a multidão antes que anoitecesse. Jesus respondeu a eles: “Dai-lhes, vós mesmos, de comer”. Comprovaram assustados que somente um garoto tinha umas poucas provisões: cinco pães e dois peixes. Mas Jesus insistiu: “Fazei esta gente se sentar”. Para um homem que vive exclusivamente entregue aos demais não há felicidade maior que ver como os outros se sacrificam por sua causa. Isto o anima mais em sua entrega: o amor transborda. É como se desparecessem os indivíduos em particular, ao mesmo tempo que se ama mais a cada um em concreto. Algo assim aconteceu no coração de Jesus enquanto os cinco mil homens iam sentando sobre a relva. Jesus tomou então os cinco pães e dois peixes, abençoou-os, partiu e distribuiu aos seus discípulos para que os servissem à multidão. O mesmo fez com os dois peixes. Todos comeram até saciarem-se. Logo, disse Jesus: “Recolhei os pedaços que sobraram”. Vendo, aquela gente, o milagre, diziam: “Este é em verdade o Profeta que haveria de vir ao mundo”.


XVIII

“Tu és o Filho de Deus vivo”

A multiplicação dos pães e peixes foi o ponto determinante, para que muitos de seus seguidores se convencessem de que Jesus  era o Messias esperado por eles: um Cristo vitorioso, forte, capaz de libertar da opressão romana, ou seja, o Messias, tal como esperavam. Um vencedor terreno, um conquistador superior aos legendários Alessandro Magno, Dario... Mas este não era o plano de Deus. Viria uma luz espiritual, um reino de amor, incompatível com batalhas de armas e ódios. A multiplicação dos pães é para Jesus um símbolo; enquanto que para a maioria de seus seguidores é uma realidade que querem ver repetida. Jesus os pede encarecidamente: “Vos digo com toda verdade: o pão desta terra não é o verdadeiro pão do céu. O pão de Deus é aquele que desce do céu e dá vida ao mundo... Eu, Cristo Jesus, sou o pão da vida. Vossos pais morreram. Não quero que morrais; senão que tenhais vida eterna. Por isso, vos ofereço o pão que desceu do céu, para que aquele que coma do meu Corpo não morra. O pão que eu vos darei é minha carne, que eu entrego pela vida do mundo”.
Estas palavras produziram uma forte reação de incredulidade. Muitos diziam: “Como nos pode dar a comer sua própria carne?”
Jesus não volta atrás; não formula explicações. Ao contrário, insiste com toda claridade: “Em verdade, em verdade vos digo: se não comeis a carne do Filho do Homem e não bebeis seu Sangue não tereis vida em vós. Ao invés todo aquele que come a minha carne e bebe o meu sangue, mora em mim e eu nele”. Muitos de seus seguidores se afastam. Não compreendem as palavras de Jesus. Jesus não os disse como sua carne e seu sangue seriam alimento das almas. A única coisa que pede é que creiam em sua promessa. Não foi capaz de criar alimento em abundância para saciar multidões? Pois, por que não quereis acreditar em mim? Que faríeis se vos mostrasse o lugar que, antes de encarnar-me, ocupava na Divindade?
Jesus olha para Pedro e para os seus escolhidos. Com um tom paternal lhes diz: “Quereis também ir embora?”
Pedro, em nome de todos, responde: “Senhor, para onde iremos? Só Tu tens palavras de vida eterna. Nós acreditamos e sabemos que és o Santo de Deus”.
Assim que os seus seguidores ficam reduzidos a um pequeno grupo. Estava na região de Cesaréia de Filipe, a mais distante do país de Israel, quando Jesus, subitamente, pergunta aos seus apóstolos: “Que dizem os homens que sou, o Filho do Homem?
Os apóstolos respondem o que sabem: “Uns dizem que és João, o Batista; outros que és Elias; outros, que é Jeremias ou um dos Profetas”. “E vós, que dizeis que sou?” Pedro pensa: Jesus não é um legado como os Profetas; é Filho de Deus, é ‘o Filho de Deus!” Pedro não fraqueja nem retrocede deslumbrado ante esta idéia. Cheio de gozo e entusiasmo confessa a Cristo, com a convicção de um homem simples, que sabe com certeza íntima algo que transtorna todo o seu ser. “Tu és o Cristo, o Filho de Deus vivo”. Jesus anuncia solenemente a Pedro a sua futura vocação. “Tu és, Simão, filho de Jonas! Não foi a carne nem o sangue te revelaram isso, senão o meu Pai, que está nos céus. E eu te digo: Tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei minha Igreja e as portas do inferno não prevalecerão contra ela. Te darei as chaves do reino dos céus; e tudo o que ligares na terra será ligado no céu; e tudo o que desligares na terra será também desligado no céu”.
Pedro diz: “Tu chamas a ti mesmo de “Filho do Homem”, mas és o Messias, o Filho de Deus feito carne”.
Jesus responde: “Tu te chamas Simão, mas és Pedra, a pedra sobre a qual edifico minha Igreja. Acreditastes como rocha, precisamente por haver confessado com tão firme inteireza minha filiação divina. Frente à cidade do mal, a sociedade de Satanás, se constrói a Igreja. Por muito que tente, o Inferno não conseguirá aniquilar-la. Com as palavras “ligar” e “desligar”, Pedro recebe de Jesus o poder de representar a Deus na terra, na Igreja militante, e transmitir-lo aos seus sucessores.
Depois dessa cena, Jesus lhes falou de sua futura Paixão e morte. Devia ir a Jerusalém onde padeceria muito por causa dos anciãos, fariseus e doutores da lei. Mas que depois de morto, ressuscitaria. Para que compreedessem que o caminho de seus seguidores seria árduo e penoso, acrescentou: “Se alguém deseja vir depois de mim, negue-se a si mesmo e siga-me. Pois quem quiser salvar sua vida a perderá; más quem perder a sua vida por amor a mim, a encontrará”.
“Digam: para que serve a um homem ganhar todo o mundo, se perde a sua alma?”


XIX

Qual é meu próximo?

No caminho de Jerusalém, apresentou-se a Jesus um doutor da Lei e lhe perguntou: “Que devo fazer para conseguir a vida eterna?
Jesus, a sua vez, o interrogou: “O que é que está escrito na Lei? Respondeu o doutor: “Amarás ao Senhor teu Deus de todo coração, com toda tua alma, e com toda as tuas forças e com tua mente; e ao próximo como a ti mesmo”.
“Respondestes bem, disse Jesus. Faças isto e viverás”. Mas ele, querendo dar a entender que era justo, perguntou a Jesus: “Quem é meu próximo?” Jesus lhe explicou a parábola do bom samaritano. Um homem vinha de Jerusalém a Jericó e caiu nas mãos de ladrões, que lhe levaram tudo o que tinha, lhe cobriu de feridas e partiram deixando-o quase morto.
Descia, casualmente, pelo mesmo caminho um sacerdote; e embora o viu, deu uma volta e seguiu adiante. Igualmente um levita, apesar de passar por perto, o viu e seguiu adiante. Mas um certo samaritano, que ia pelo caminho, se aproximou dele, e ao vê-lo se moveu de compaixão, fez curativo nas feridas jogando sobre elas azeite e vinho. Colocou-o no animal que o transportava, conduzindo-o a uma hospedaria e cuidou dele. No dia seguinte tirou dois denários e os deu ao hospedeiro dizendo: “Cuida para mim deste homem; e tudo o que gastares com ele, eu te pagarei quando regressar”.
“Diz-me: quem dos três, te parece, foi o próximo do que caiu nas mãos dos ladrões?” “Aquele que usou de misericórdia com ele”. “Pois vai, terminou Jesus, e fazes o mesmo”.
O ferido era um judeu. O sacerdote e o levita eram judeus. Seguramente não pararam para atender àquele desgraçado, porque lhes custaria ter que chegar atrasado à seu ofício. Ao melhor, pensaram que sua ocupação ou ofício tinha prioridade. Jesus não vê assim.
Pelo contrário, recolhe-o um samaritano, um inimigo dos judeus. Jesus deu um exemplo claro de que para o amor não há inimigos. O samaritano cuida do judeu melhor que seus próprios irmãos, que passaram dando uma volta pelo outro lado “para não complicar-lhes a vida”.


XX

Ensinando a rezar

Jesus aproveita esta última viagem para inculcar na cabeça de seus discípulos prediletos o valor da oração. Eles lhe viram recolher-se, muitas noites, à montanha para rezar. Querem fazer como ele, mas não sabem. Suplicam-lhe: “Senhor, ensina-nos a rezar”.
Jesus respondendo diz: “Quando orardes, dizeis: Pai nosso que estás nos céus; santificado seja o teu nome; venha a nós o teu reino; seja feita a tua vontade, assim na terra como no céu. Dai-nos hoje o nosso pão de cada dia; perdoa as nossas ofensas, assim como nós perdoamos aos que nos ofendem; não nos deixes cair em tentação e livrai-nos do mal”.
É uma oração simples. Não tem palavras supérfluas nem usa expressões exageradas nas súplicas. Pede-se a Deus uns dons que até então eram desconhecidos dos homens ou muito pouco queridos. Jesus inculca um novo espírito de oração. A confiança em Deus Pai, mediante a insistência, a constância, que fazem parte da oração mais que as palavras. Por isso, Jesus lhes conta as parábolas do amigo inoportuno, do juiz sem consciência, do fariseu e do publicano, para que seus seguidores encham-se de confiança e de perseverança.
“Eu vos digo –acrescentou Jesus-, pedi e vos será dado; buscai e encontrareis; batei e vos abrirão. Porque todo aquele que pede, recebe, quem busca, encontra e ao que bate se abre. Existe entre vós algum pai que dê uma pedra ao filho quando este lhe pede pão? Ou ao que lhe pede um peixe, dá uma cobra em lugar do peixe? Ou ao que lhe pede um ovo, lhe dê um escorpião? Pois se vós, sendo maus, sabeis dar coisas boas aos vossos filhos, quanto mais vosso Pai que está nos céus dará o espírito bom aos que o peçam! E vos digo mais: se dois de vós se unirem entre si sobre a terra para pedir algo, se lhe será concedido por meu Pai que está nos céus. Porque onde dois ou três se encontram reunidos em meu nome, ali me encontro no meio deles”.


XXI

O cego de nascimento

Em tempos de Jesus, Israel não tinha instituições de beneficência. Por isso, no Oriente, mendigar era um direito dos pobres. E era normal que uns pobres passassem ao lado de outros e trocassem esmolas entre si. Muitos eram pobres por causa de algumas doenças ou de deformações. Este é o caso de um homem cego que pedia esmolas perto do Templo de Jerusalém. Era preciso que Jesus lhe curasse para que a glória de Deus se manifestasse com toda a sua força. Jesus cuspiu sobre a terra; formou barro com a saliva e aplicou-o sobre os olhos do cego. Logo lhe disse: “Vai e lava-te na piscina de Siloé”. O servo obedeceu à palavra de Cristo, e foi, possivelmente, sozinho. Lá embaixo, na piscina que recolhia as águas do interior da montanha do Templo, lavou o barro dos olhos. Na mesma hora, recebeu o dom de uma vista normal. Embora fosse sábado, contou imediatamente sua cura por todas as partes. As ruas estavam cheias: assim, foi sendo cercado por uma multidão de curiosos. Alguns lhe haviam visto mendigar naquela mesma manhã no lugar de costume. Seu rosto antes era inexpressivo, retomou agora uma alegria que transfigurava-o. Todos perguntam: “Como abristes os olhos?” “Aquele homem que se chama Jesus fez barro, ungiu-me os olhos e disse: vai e lava-te na piscina de Siloé. Fui, lavei-me e vejo”. Intervém os inimigos de Jesus, os fariseus. Querem saber como foi o processo de cura. O homem repete tudo o que havia contado antes. Eles exclamam com aparente indignação: “Este homem, ao curar-te, violou o sábado!” Mas outros, mais precavidos se perguntam: “Como um pecador poderia operar tais milagres?”
Os fariseus tentam em vão, primeiro afavelmente, logo com ameaças, que o curado não reconheça a bondade de seu benfeitor. Eles, os discípulos de Moisés, os interpretes da Lei, afirmam que Jesus é um pecador, mas o curado tem a dureza daquele que sofreu muito e lhes fala claramente: “Eu não sei se é pecador. Uma coisa eu sei, eu era cego, agora vejo... Ele abriu-me os olhos. Sabemos que Deus não ouve aos pecadores. Quando um teme a Deus e observa sua palavra, Deus lhe ouve!  Desde que o mundo é mundo, nunca se ouviu falar que uma pessoas por si mesma haja aberto os olhos de um cego de nascença. Se este não fosse de Deus, não poderia fazer-lo”. A reação dos fariseus foi violenta. Expulsaram-no da sinagoga e lhe disseram: “ Tu nascestes todo em pecado e queres ensinar-nos? Jesus ficou sabendo de tudo o que aconteceu. Foi em busca do curado, aquele homem simples que tão corajosa e decididamente havia saído em sua defesa. Ao encontrá-lo lhe pergunta: “Tu crês no Filho de Deus?” “Senhor, responde o curado, diga-me quem é para que eu creia nele”. Jesus contesta: “Já o vistes, é este mesmo que fala contigo”. “Creio, Senhor”. E lhe adorou.
Os doutores estão dia e noite preocupados com o estudo da Lei, e não reconheceram o Messias; este cego, que durante toda a sua vida não fez outra coisa que proferir sempre as mesmas frases para mendigar, se entrega agora a Cristo com fé absoluta. Jesus diz: “Eu vim ao mundo para um juízo, para que os cegos vejam, e os que enxergam sejam feitos cegos”. Em Jerusalém, Jesus se encontrava sempre vigiado. Uns fariseus, que estavam próximo ouviram estas palavras. E não ignoraram que a eles se referia. Estão obstinados em sua cegueira. Vêem os milagres e são incapazes de reconhecer-los. Jesus não pode curar-los por que eles mesmos não se sentem como cegos. Entre a dor e a amargura pelas ovelhas que se perderão, Jesus exclama: “Se pelo menos fosseis cegos não teríeis pecado. Mas vós mesmos dizeis que enxergais. Por conseqüência, vosso pecado permanece”.


XXII

O bom pastor

Jesus tinha consciência que seus inimigos faziam planos para matá-lo, e quis dar a entender que, com toda a ternura de seu coração, se preparava para a morte, a fim de salvar às almas desgarradas. Disse aos que lhe escutavam: “Eu sou o bom pastor. O bom pastor dá a sua vida por suas ovelhas. Mas aquele que é mercenário, não é bom pastor, por não ser dono das ovelhas, quando vê o lobo aproximar-se, abandona as ovelhas e foge, e o lobo as arrebata e dispersa-as, porque é um assalariado e não tem interesse algum pelas ovelhas. Eu sou o bom pastor, conheço minhas ovelhas e minhas ovelhas me conhecem como me conhece o Pai e eu o conheço. Assim, eu dou a minha vida pelas minhas ovelhas. Tenho outras ovelhas, que não são desse rebanho. Também devo recolher-las. Elas ouvirão a minha voz e formarão um só rebanho e um só pastor”.
O bom pastor mostra solicitude extrema pelas ovelhas perdidas, pelos pecadores. Tanto é assim que os fariseus murmuravam contra Jesus acusando-lhe por causa do tratamento que dava aos publicanos e pecadores. Onde resplandece com maior nitidez a misericórdia divina é nesta parábola explicada por Jesus; quem de vós, lhes diz, tendo cem ovelhas e havendo perdido uma, não deixa as noventa e nove no cercado e sai em busca da que se perdeu até que a encontre? E quando a encontra, coloca-a sobre os ombros contentíssimo, e chegando em casa diz aos amigos: “Alegrai-vos comigo, por que encontrei a ovelha que havia perdido”. Assim eu vos digo que haverá maior festa no céu por um pecador que se arrependa, que por noventa e nove justos que não têm necessidade de arrepender-se”.
Pouco tempo depois Jesus teria a ocasião de pegar uma dessas ovelhas desgarradas. Era o chefe dos publicanos, um homem rico chamado Zaqueu que vivia em Jericó, uma das principais estações de aduanas do país. Zaqueu era o arrendatário geral. Como proprietário desta administração aduaneira na maior cidade comercial de Israel, naturalmente tinha que ser muito rico.
Jesus passou pela cidade com uma grande comitiva, entre aclamações. Zaqueu quis ver ao homem que tantos milagres fazia. Por onde quer que tentasse atravessar entre a multidão para poder ver a Jesus, se sentia impedido pela barreira humana, pois era pequeno, de estatura. Finalmente conseguiu abrir caminho, chegando perto de umas figueiras silvestres que, por ter um tronco rugoso, não representam muito obstáculo para os que desejassem subí-las. Seus ramos começam muito baixo; assim que deixando à margem as conveniências sociais Zaqueu subiu em uma destas árvores. Mas quando Jesus passou ocorreu algo inesperado. Jesus se deteve, olhou para Zaqueu e disse: “Zaqueu, desças por que é necessário que eu mim hospede hoje em tua casa”.
Zaqueu, impressionado, correu para preparar a recepção, enquanto os fariseus da comitiva murmuravam: “Como é isto? Deter-se para comer na casa do chefe dos publicanos, quer dizer, de um conhecido pecador!” Zaqueu não voltou atrás. E resolveu, como autêntico homem de negócios, o que tinha de fazer de mais valor. Ao entrar o Mestre em sua casa, disse: “Senhor, a metade de tudo o que tenho dou aos pobres, e se enganei a alguém, lhe devolverei o quádruplo”. Zaqueu, arrependido impôs a si mesmo o acerto de contas.
Assim o publicano, antes que Jesus entrasse em sua casa, declara-se pecador arrependido. Jesus recuperou outra ovelha perdida. Seu coração se enche de gozo, como ele mesmo havia anunciado. A festa do céu é grande. “Hoje, diz contente, a salvação entrou nesta casa; por que ele é também filho de Abraão. Pois o Filho do Homem veio buscar e salvar o que havia perdido”.


XXIII

Não temais a Deus porquê Ele vos ama

Nada alegra tanto o Coração de Deus como o homem que chora arrependido de seus pecados. O primeiro pecado, o pecado original, cravou no íntimo do homem um estranho temor de Deus, um medo servil, irracional, que deveria ser mais próprio do demônio. É a falta de confiança em Deus, como se Deus, ao invés de querer a nossa salvação, estivesse ao encalço de nossos pecados, para chamar-nos e mandar-nos a uma eterna condenação. Nada tão diabólico e contrário ao amor divino. Jesus vai atacar a fundo esse temor. A parábola do filho pródigo é um chamado a confiar em Deus apesar de todos os nossos pecados.
“Era um homem que tinha dois filhos. O menor deles disse ao seu Pai: pai, dá-me a parte da herança que mim pertence. E o pai satisfez o seu desejo. Dias depois o jovem reuniu todas as coisas que tinha e foi a um país distante e ali desperdiçou toda a herança, com farras e bebedeiras. Depois de haver gastado tudo, houve uma grande fome naquele país, e começou a sofrer grandes privações. Teve que trabalhar para um morador daquela terra, o qual lhe enviou para cuidar de porcos. Ali teve desejo de encher o seu estômago com as algarrobas que comiam os porcos; mas ninguém as dava. Chegou um momento em que se pôs a pensar: quantos empregados de meu pai têm comida em abundância, e eu estou aqui morrendo de fome! Levantar-me-ei, irei ao encontro de meu pai e direi: Pai, pequei contra o céu e contra ti, já não sou digno de ser chamado de teu filho; trata-me como a um dos teus empregados. E levantando-se, deu inicio a viagem de regresso à casa de seu pai. Estando ainda longe, seu pai o avistou, e cheio de amor, saiu correndo ao seu encontro, lhe abraçou e beijou. O filho queria pedir-lhe perdão. Começou dizendo: Pai, pequei contra o céu e contra ti, já não sou digno de ser chamado de teu filho. Mas, o Pai, interrompendo-o, disse aos seus criados: Trazei a melhor roupa e vestí-o; colocai um anel em seu dedo e as sandálias. Preparai um banquete com um novilho. Comamos e celebremos, porque meu filho estava morto e ressuscitou, estava perdido e foi encontrado...”
Jesus nos explica que Deus é o Pai cujo a dor por um só homem que se perde nunca é superada. Por isso, naquele mendigo que, vestido em trapos, se aproximava, descobriu instantâneamente ao seu filho perdido. Tão grande é o ardor com que Deus espera o arrependimento de seus filhos. E quando o pecador inicia a sua confissão, o Pai embriagado de gozo, já não segue escutando-o. Manda que recupere imediatamente sua condição de filho. Assim, um homem em estado de graça, nunca é um servo, mas um filho.
Quiçá haja, por parte de algum irmão, certas incompreensões; afinal estamos no mundo e somos todos fracos. Mas os receios dos que sempre cumpriram a verdade de Deus, não pode diminuir a alegria que o nosso Deus e Pai sente ao abraçar-nos novamente, quando choramos arrependidos de nossos erros.

XXIV

O perdão das ofensas

Seguramente que Pedro, comovido por esta parábola, quis à sua vez mostrar-se generoso e decidido a ser indulgente. Assim que perguntou a Jesus: “Senhor, quantas vezes tenho que perdoar a meu irmão quando este pecar contra mim? Até sete vezes?”
Pedro, tinha certeza de que havia posto muito alto a sua lista. Mas Jesus lhe respondeu: “Não basta sete vezes, senão setenta vezes sete”, ou seja, quantas vezes teu irmão necessite ser perdoado. Mas, quiçá Pedro pensaria: podem insultar-me uma vez depois da outra? Devo deixar que me difamem e desprezem... e seguir perdoando todas as vezes? Finalmente, onde ficaria a minha honra? Jesus, para ilustrar o pensamento petrino, conta a parábola do rei que um dia resolveu ajustar as contas com seus administradores ou arrecadadores de impostos. Já no primeiro, encontrou um desfalque de dez mil talentos, uma quantia altíssima. Conheçendo a suntuosa vida oriental se compreende que um alto funcionário pudesse gastar tão grande soma. Era impossível devolver aquele dinheiro; foi assim que o rei da parábola, para poder cobrar ao menos uma parte, mandou que fossem vendidos o funcionário, sua mulher, seus filhos e tudo o que tivessem. O funcionário, que até então, havia vivido como um grande senhor, se jogou de joelhos aos pés do rei suplicando: “Senhor, tenha misericórdia de mim, que eu pagarei tudo”. Tratando-se de uma dívida tão grande aquela promessa não poderia ser cumprida, mas o rei, ao ver a culpa reconhecida, perdoou a dívida.
Aquele funcionário saiu com a sua dignidade restabelecida, embora humilhado, tinha desejo de vingar-se. Precisamente ao sair encontrou um subalterno que lhe devia muito pouco, uns cem denários. Quis satisfazer-se e com isso, agarrou o pescoço do pequeno devedor para que lhe pagasse. Este se lançou aos seus pés e disse: “Tenha compaixão de mim, e pagar-te-ei tudo”. Mas a súplica foi em vão. O credor fez com que o metessem na cadeia. Alguns empregados haviam presenciado a cena, cheios de desgosto, levaram ao conhecimento do rei que mandou chamar o servo que foi perdoado e lhe disse: “Criado perverso, eu perdoei toda a tua dívida. Não seria justo que te compadecesses também de teu companheiro, como eu tive compaixão de ti?” Irritado, entregou-o aos algozes.
Perdoar sempre. A medida com a qual perdoamos as ofensas que nos façam será a mesma medida que Deus usará para perdoar-nos. Em definitivo, é o que pedimos no “Pai nosso”, que o mesmo Jesus nos ensinou.  



XXV

O valor das riquezas

Os fariseus, que eram avaros, zombavam das coisas que Jesus ensinava. Eles tinhas um conceito de riqueza que era muito diferente daquele de Jesus. Como se dissessem: “Olha, nossa santidade é tão grande quanto nossas riquezas”. Jesus não se cansava de advertí-los: “Embora demonstrai-vos justos diante dos homens, Deus, que conhece os vossos corações, sabe que sois uma abominação(...)”. E propôs esta parábola para fazê-los entender a desgraça eterna que sofreriam os homens que, embebidos em seus prazeres e riquezas, ignoram a dor de seus irmãos.
Havia um homem rico que se vestia de púrpura e linho finíssimo e todos os dias promovia banquetes esplêndidos. Ao mesmo tempo existia um mendigo que se chamava Lázaro, o qual, coberto de feridas, sentava à porta daquele rico, desejando saciar-se do que caía da mesa do rico; mas ninguém dava. E os cachorros vinham e lambiam as suas feridas. Aconteceu que o mendigo morreu e foi levado pelos anjos ao céu, perto de Abraão. O rico também morreu e foi enterrado. Quando estava sofrendo tormentos, levantou os olhos e viu, de longe, a Abraão, e Lázaro em seu seio. E clamou dizendo: Pai Abraão, tenha piedade de mim e envia Lázaro para que, molhando a ponta de seu dedo na água, refresque a minha língua, pois estou ardendo nessas chamas. Abraão respondeu-lhe: Filho, estás lembrado que recebestes bens durante tua vida e que Lázaro, ao contrário, recebeu males. Agora ele é consolado e tu, atormentado. Além do mais, existe entre vós e nós um grande abismo, de modo que ninguém pode passar de um lado a outro. Então o rico insistiu: rogo a ti que me envies à casa de meu pai, onde tenho cinco irmãos, a fim de que os alerte sobre isto e não lhes aconteça que venham também a este lugar de tormento... Mas Abraão respondeu: eles têm a Moisés e aos profetas, que os escutem. Mais uma vez insistiu o rico: não, pai Abraão, se algum morto se dirigir a eles, farão penitência. A resposta de Abraão foi cortante: se não escutam a Moisés e aos Profetas, tão pouco vão crer, ainda que ressuscitasse um dos mortos”.
O perigo das riquezas ficou claro aos olhos dos apóstolos quando Jesus ia caminhando, e se aproximou um jovem homem, e ajoelhando-se diante d´Ele perguntou-lhe: “Mestre bondoso, que tenho que fazer para conseguir a vida eterna?”
Jesus respondeu: “Se queres entrar na vida eterna, guarda os mandamentos. Não matarás, não cometerás adultério, não roubarás, não levantarás falso testemunho, honra a teu pai e tua mãe, e amarás ao teu próximo como a ti mesmo”.
O jovem rico respondeu: tenho observado todos estes mandamentos desde minha juventude. Que me falta?” Jesus sabia que era verdade. Aquele jovem cumpria as leis e os mandamentos de Deus. Olhou-o carinhosamente e disse: “Se queres ser perfeito, vai, vende todas as tuas propriedades, dê o dinheiro aos pobres, e terás um tesouro no céu. Depois, vem e segue-me”.
Ao ouvir estas palavras o jovem partiu entristecido por que era muito rico. Tinha muitos bens. Jesus, olhando-o, disse aos seus discípulos: “Em verdade vos digo, que dificilmente um rico entrará no reino dos Céus. É mais fácil um camelo passar  pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no reino dos céus”. Os discípulos estavam maravilhados e diziam entre si: “Pois, quem poderá salvar-se?”Jesus, olhando-os com ternura, diz: “Para os homens a salvação é impossível, mas não para Deus. Para Deus todas as coisas são possíveis”. Pedro lembrou-se de seu barco, a esposa que havia deixado em sua casa, suas pequenas comodiades e se atreveu a perguntar-lhe: “Nós abandonamos todas as coisas e Ti seguimos, qual será a nossa recompensa?”
Jesus não se enraiveceu com aquele desejo. Por que não só de espírito puro vive o homem senão também do desejo do prêmio eterno. Por isso respondeu: “Em verdade vos digo, a vós que mim haveis seguido, no dia em que o Filho do  Homem sentar-se em seu trono de glória, também vós sentareis em doze tronos e julgareis às doze tribos de Israel. E todo aquele que deixou casa, irmão ou irmã, pai ou mãe, filhos ou herança por causa de meu nome, receberá cem vezes mais, e possuirá a vida eterna”.


XXVI

A ressurreição de Lázaro

Jesus andava pelo vale do Jordão, perto de Jericó, quando um dia chega um mensageiro de Betânia e traz o recado de que Lázaro, o irmão de Marta e Maria, o mais jovem dos três, estava gravemente enfermo. As irmãs angustiadas não lhe pedem que venha pois conhecem bem que sua presença em Betânia , perto de Jerusalém, pode significar perigo para a sua vida, pois os fariseus, seus inimigos, haviam decidido já a sua morte. Por isso, lhe indicam com toda delicadeza: “Senhor, aquele que amas está doente”. Jesus não se põe a caminho. Seus discípulos respiram aliviados. Jesus diz ao mensageiro: “Essa doença não é mortal, mas para a glória de Deus, para que, por ela, seja glorificado o Filho de Deus”. E Jesus permaneceu ali cerca de dois dias. Logo disse a seus apóstolos: “Vamos outra vez até a Judéia”. Só a palavra Judéia fez tremer a seus seguidores que conheciam o ódio dos dirigentes contra Jesus. “Rabí, lhe dizem alarmados, há pouco tempo os judeus procuravam apedrejar-te e vais outra vez para lá?
Jesus lhes agradece aquela prudência tão humana mas deve seguir instruindo-os na prudência divina de fazer a vontade do Pai. Jesus diz aos discípulos: “Até que não chegue a hora que determinou o Pai para a minha morte não pode acontecer nada comigo na Judéia. Eu vou ali por vontade do Pai. Nosso amigo Lázaro dorme, mas vou despertá-lo”. Jesus se referia a morte. “Lázaro morreu”. Me alegro por vós, por não estardes ali. Para que - vendo como o ressuscito - creiais. Vamos a sua casa”.
Chegam a Betânia, distante seis horas de caminho. Fazia quatro dias que Lázaro tinha sido sepultado. A casa está cheia de judeus que foram para consolar as irmãs. Quando Marta soube que Jesus estava chegando, saiu para  receber-lhe e disse: “Senhor, se estivesses aqui, meu irmão não estaria morto. Mas eu sei que Deus te concederá tudo o que pedires”. Marta tinha uma grande confiança no Mestre mas estava desconcertada. Recordava muito bem as palavras de Jesus -“esta doença não é para a morte”-, transmitida pelo mensageiro; só que, Lázaro já estava morto quando o mensageiro se dirigiu a elas. Mas queria crer, não obstante a sua incompreensão. Olhou para Jesus e disse: “Sei que tudo o que pedires a Deus, ele te concederá”.
Jesus quer seguir robustecendo aquela fé e lhe diz palavras de consolo: “Teu irmão ressuscitará”. “Sei, disse Marta, que ele ressuscitará na ressurreição, no último dia!”
É necessário falar com toda paciência. Quando uma alma está abatida pela dor, as palavras de consolo podem entristecer. Jesus lhe diz solenemente: “Eu sou a ressurreição e a vida. Aquele que crer em mim, viverá embora esteja morto, e todo vivente que crer em mim, não morrerá jamais. Tu acreditas?
Marta, mulher inteligente e pouco emotiva, compreende a profundidade da mensagem divina, e faz a mais solene profissão de fé que temos na história de Jesus. Diz: “Sim, Senhor, eu creio que Tu és o Cristo, o Filho de Deus que vem ao mundo”.
Marta é trabalhadora, terminou os seus afazeres. A fé que Jesus normalmente exige para fazer os milagres e não pode obter do morto, mas sim de Marta. Ela afasta-se e chama sua irmã Maria dizendo baixinho: “O Senhor está aqui e te chama”. Jesus não havia entrado na casa. Maria corre ao seu encontro. “Senhor, se estivesses aqui...”, repete a mesma queixa de Marta. E se pôs a chorar.
Também Jesus se comoveu e chorou. Por que, se estava a ponto de ressuscitar a Lázaro, um cadáver corrompido, com um milagre tão esplêndido? Jesus não se comoveu pela cena de Maria e das outras mulheres que choravam, senão pelo pressentimento de sua própria morte. Teve uma antecipação da angústia do Getsémani? Provavelmente foi a visão antecipada da dureza de coração dos que veriam a ressurreição de Lázaro –e a própria de Jesus– e ainda assim, resistiriam à conversão...
Jesus se adiantou e perguntou: “Onde o colocastes?” Responderam:  “Senhor, vem e vê!”.
 Desceram por uma escada que levava ao sepulcro, cuja entrada estava fechada com uma pedra. Jesus mandou: “Retirai a pedra”.
Marta havia presenciado, há quatro dias, o enterro e sabia que já havia começado a putrefação do cadáver. Assim, adverte o Mestre para que não o surpreenda uma onda de mal cheiro insuportável. “Senhor disse-lhe: já cheira mal: é o quarto dia!”.
Jesus tem que recordar-la a onipotência divina. “Não te disse que, se creres, verás a gloria de Deus?”
Tiram a pedra. Um movimento instintivo leva os presentes a retrocederem ante o odor horrível que se espalha. Jesus se mantêm sereno. Levanta os olhos ao céu e se dirige ao seu Pai: “Pai, dou-te graças porque me ouviste. Eu sabia que sempre me ouves, mas digo isto por causa da multidão que me rodeiam, para que creiam que me enviaste”. Depois se põe diante do sepulcro e ordena em alta voz: “Lázaro vem para fora!”
E apareceu um vulto branco na escuridão do corredor do sepulcro; marcando o contorno de uma cabeça coberta com um sudário, atado com os pés e mãos com faixas. O morto saiu , mudo como um espírito; despertou com a voz de Jesus, sem ver ainda, obedecendo somente àquela voz. Jesus permanecia sereno. Mandou aos presentes: “Desatem-no e o deixem-o ir embora”.
Diz o historiador que presenciou e narrou o fato que “muitos dos judeus que tinham vindo visitar Marta e Maria, tendo visto o que ele fizera, creram nele. Mas alguns dirigiram-se aos fariseus e lhes disseram o que Jesus fzera. Então, os chefes dos sacerdotes e os fariseus se reuniram o Conselho e disseram: “Que faremos? Esse faz muitos milagres. Se o deixamos assim, todos crerão nele e os romanos virão, destruindo o nosso lugar santo e a nossa nação”.
Seguindo o parecer do sumo sacerdote Caifás resolveram matá-lo. Por isso Jesus se retirou à cidade de Efraim, perto do deserto, onde morava com seus discípulos.


XXVII

Entrada triunfal na cidade deicida

Jesus sabia que se aproximava a hora de sua Paixão e morte. Saiu de seu retiro e passou alguns dias em Betânia, junto a Lázaro, ressuscitado, e suas irmãs. Logo iniciou o caminho a Jerusalém. Os apóstolos, depois do milagre da ressurreição, haviam tomado tal confiança que venceram o medo dos fariseus e as preocupações. Assim que se mostravam contentes de que Jesus houvesse deixado seu retraimento e silêncio. Faziam o caminho quando chegaram à ladeira lateral sul do monte das Oliveiras. Tinham ante si uma pequena depressão onde se encontrava uma pequena aldeia. Jesus encarrega a dois de seus discípulos: “Ide a esta aldeia. Ao chegar encontráreis um jumentinho amarrado que ninguém ainda montou: soltai-o e trazei-o. E se alguém perguntar ´Por que o soltais?`, respondeis: ´O Senhor precisa dele”. Assim aconteceu e levaram o jumentinho a Jesus. Os outros discípuulos se alegram. Até agora haviam ido a pé com o Messias por todo o País. Hoje ele irá montar num animal.Em pouco tempo a peregrinação de galileus se converte em uma manifestação solene, na entrada triunfal do Messias: muitos tiram os mantos dos ombros e estende-os pelo solo como tapete, outros cortam ramos de árvores e estende-os também; os que vão na frente aclamam: “Hosana ao Flho de Davi”, que é o grito festivo religioso dos judeus. Os fariseus estavam ali presentes como testemunhas do entusiasmo do povo. Eles estranham por que Jesus havia evitado sempre estas manifestações. Estão se sentindo molestados, têm inveja. Querem que Jesus imponha ordem, que reprima aquela gente que segue gritando: “Bendito aquele que vem em nome do Senhor! Ajudai-nos, Tu que vives no mais alto dos céus”... Jesus despreza os fariseus. Desde toda a eternidade aquele entusiasmo é a porta popular que dará entrada ao sacrifício de sua vida, à redenção do homem.
Responde-lhes: “Eu vos digo, se eles se calarem, as pedras gritarão”.
O cortejo chega à pequena inclinação que dá acesso à garganta profunda do vale de Cedron, de onde se pode avistar a cidade e o Teemplo que brilha como se fosse feito de luz. Parece de verdade, por suas dimensões e magnitude, uma obra própria de Deus. As aclamações dos peregrinos param bruscamente. Seus olhares se dividem entre o Templo e Jesus. Estão atentos; o Mestre vai falar. Jeponde: “Senhor, para onde iremos? Só Tu tens palavras de vida eterna. Nós acreditamos e sabemos que és o Santo de Deus”.Assim que os seus seguidores ficam reduzidos a um pequeno grupo. Estava na região de Cesaréia de Filipe, a mais distante do país de Israel, quando Jesus, subitamente, pergunta aos seus apóstolos: “Que dizem os homens que sou, o Filho do Homem?Os apóstolos respondem o que sabem: “Uns dizem que és João, o Batista; outros que és Elias; outros, que é Jeremias ou um dos Profetas”. “E vós, que dizeis que sou?” Pedro pensa: Jesus não é um legado como os Profetas; é Filho de Deus, é ‘o Filho de Deus!” Pedro não fraqueja nem retrocede deslumbrado ante esta idéia. Cheio de gozo e entusiasmo confessa a Cristo, com a convicção de um homem simples, que sabe com certeza íntima algo que transtorna todo o seu ser. “Tu és o Cristo, o Filho de Deus vivo”. Jesus anuncia solenemente a Pedro a sua futura vocação. “Tu és, Simão, filho de Jonas! Não foi a carne nem o sangue te revelaram isso, senão o meu Pai, que está nos céus. E eu te digo: Tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei minha Igreja e as portas do inferno não prevalecerão contra ela. Te darei as chaves do reino dos céus; e tudo o que ligares na terra será ligado no céu; e tudo o que desligares na terra será também desligado no céu”.Pedro diz: “Tu chamas a ti mesmo de “Filho do Homem”, mas és o Messias, o Filho de Deus feito carne”.Jesus responde: “Tu te chamas Simão, mas és Pedra, a pedra sobre a qual edifico minha Igreja. Acreditastes como rocha, precisamente por haver confessado com tão firme inteireza minha filiação divina. Frente à cidade do mal, a sociedade de Satanás, se constrói a Igreja. Por muito que tente, o Inferno não conseguirá aniquilar-la. Com as palavras “ligar” e “desligar”, Pedro recebe de Jesus o poder de representar a Deus na terra, na Igreja militante, e transmitir-lo aos seus sucessores.Depois dessa cena, Jesus lhes falou de sua futura Paixão e morte. Devia ir a Jerusalém onde padeceria muito por causa dos anciãos, fariseus e doutores da lei. Mas que depois de morto, ressuscitaria. Para que compreedessem que o caminho de seus seguidores seria árduo e penoso, acrescentou: “Se alguém deseja vir depois de mim, negue-se a si mesmo e siga-me. Pois quem quiser salvar sua vida a perderá; más quem perder a sua vida por amor a mim, a encontrará”.“Digam: para que serve a um homem ganhar todo o mundo, se perde a sua alma?” XIXQual é meu próximo?No caminho de Jerusalém, apresentou-se a Jesus um doutor da Lei e lhe perguntou: “Que devo fazer para conseguir a vida eterna?Jesus, a sua vez, o interrogou: “O que é que está escrito na Lei? Respondeu o doutor: “Amarás ao Senhor teu Deus de todo coração, com toda tua alma, e com toda as tuas forças e com tua mente; e ao próximo como a ti mesmo”.“Respondestes bem, disse Jesus. Faças isto e viverás”. Mas ele, querendo dar a entender que era justo, perguntou a Jesus: “Quem é meu próximo?” Jesus lhe explicou a parábola do bom samaritano. Um homem vinha de Jerusalém a Jericó e caiu nas mãos de ladrões, que lhe levaram tudo o que tinha, lhe cobriu de feridas e partiram deixando-o quase morto.Descia, casualmente, pelo mesmo caminho um sacerdote; e embora o viu, deu uma volta e seguiu adiante. Igualmente um levita, apesar de passar por perto, o viu e seguiu adiante. Mas um certo samaritano, que ia pelo caminho, se aproximou dele, e ao vê-lo se moveu de compaixão, fez curativo nas feridas jogando sobre elas azeite e vinho. Colocou-o no animal que o transportava, conduzindo-o a uma hospedaria e cuidou dele. No dia seguinte tirou dois denários e os deu ao hospedeiro dizendo: “Cuida para mim deste homem; e tudo o que gastares com ele, eu te pagarei quando regressar”.“Diz-me: quem dos três, te parece, foi o próximo do que caiu nas mãos dos ladrões?” “Aquele que usou de misericórdia com ele”. “Pois vai, terminou Jesus, e fazes o mesmo”.O ferido era um judeu. O sacerdote e o levita eram judeus. Seguramente não pararam para atender àquele desgraçado, porque lhes custaria ter que chegar atrasado à seu ofício. Ao melhor, pensaram que sua ocupação ou ofício tinha prioridade. Jesus não vê assim.Pelo contrário, recolhe-o um samaritano, um inimigo dos judeus. Jesus deu um exemplo claro de que para o amor não há inimigos. O samaritano cuida do judeu melhor que seus próprios irmãos, que passaram dando uma volta pelo outro lado “para não complicar-lhes a vida”.XXEnsinando a rezarJesus aproveita esta última viagem para inculcar na cabeça de seus discípulos prediletos o valor da oração. Eles lhe viram recolher-se, muitas noites, à montanha para rezar. Querem fazer como ele, mas não sabem. Suplicam-lhe: “Senhor, ensina-nos a rezar”.Jesus respondendo diz: “Quando orardes, dizeis: Pai nosso que estás nos céus; santificado seja o teu nome; venha a nós o teu reino; seja feita a tua vontade, assim na terra como no céu. Dai-nos hoje o nosso pão de cada dia; perdoa as nossas ofensas, assim como nós perdoamos aos que nos ofendem; não nos deixes cair em tentação e livrai-nos do mal”.É uma oração simples. Não tem palavras supérfluas nem usa expressões exageradas nas súplicas. Pede-se a Deus uns dons que até então eram desconhecidos dos homens ou muito pouco queridos. Jesus inculca um novo espírito de oração. A confiança em Deus Pai, mediante a insistência, a constância, que fazem parte da oração mais que as palavras. Por isso, Jesus lhes conta as parábolas do amigo inoportuno, do juiz sem consciência, do fariseu e do publicano, para que seus seguidores encham-se de confiança e de perseverança.“Eu vos digo –acrescentou Jesus-, pedi e vos será dado; buscai e encontrareis; batei e vos abrirão. Porque todo aquele que pede, recebe, quem busca, encontra e ao que bate se abre. Existe entre vós algum pai que dê uma pedra ao filho quando este lhe pede pão? Ou ao que lhe pede um peixe, dá uma cobra em lugar do peixe? Ou ao que lhe pede um ovo, lhe dê um escorpião? Pois se vós, sendo maus, sabeis dar coisas boas aos vossos filhos, quanto mais vosso Pai que está nos céus dará o espírito bom aos que o peçam! E vos digo mais: se dois de vós se unirem entre si sobre a terra para pedir algo, se lhe será concedido por meu Pai que está nos céus. Porque onde dois ou três se encontram reunidos em meu nome, ali me encontro no meio deles”.XXIO cego de nascimentoEm tempos de Jesus, Israel não tinha instituições de beneficência. Por isso, no Oriente, mendigar era um direito dos pobres. E era normal que uns pobres passassem ao lado de outros e trocassem esmolas entre si. Muitos eram pobres por causa de algumas doenças ou de deformações. Este é o caso de um homem cego que pedia esmolas perto do Templo de Jerusalém. Era preciso que Jesus lhe curasse para que a glória de Deus se manifestasse com toda a sua força. Jesus cuspiu sobre a terra; formou barro com a saliva e aplicou-o sobre os olhos do cego. Logo lhe disse: “Vai e lava-te na piscina de Siloé”. O servo obedeceu à palavra de Cristo, e foi, possivelmente, sozinho. Lá embaixo, na piscina que recolhia as águas do interior da montanha do Templo, lavou o barro dos olhos. Na mesma hora, recebeu o dom de uma vista normal. Embora fosse sábado, contou imediatamente sua cura por todas as partes. As ruas estavam cheias: assim, foi sendo cercado por uma multidão de curiosos. Alguns lhe haviam visto mendigar naquela mesma manhã no lugar de costume. Seu rosto antes era inexpressivo, retomou agora uma alegria que transfigurava-o. Todos perguntam: “Como abristes os olhos?” “Aquele homem que se chama Jesus fez barro, ungiu-me os olhos e disse: vai e lava-te na piscina de Siloé. Fui, lavei-me e vejo”. Intervém os inimigos de Jesus, os fariseus. Querem saber como foi o processo de cura. O homem repete tudo o que havia contado antes. Eles exclamam com aparente indignação: “Este homem, ao curar-te, violou o sábado!” Mas outros, mais precavidos se perguntam: “Como um pecador poderia operar tais milagres?”Os fariseus tentam em vão, primeiro afavelmente, logo com ameaças, que o curado não reconheça a bondade de seu benfeitor. Eles, os discípulos de Moisés, os interpretes da Lei, afirmam que Jesus é um pecador, mas o curado tem a dureza daquele que sofreu muito e lhes fala claramente: “Eu não sei se é pecador. Uma coisa eu sei, eu era cego, agora vejo... Ele abriu-me os olhos. Sabemos que Deus não ouve aos pecadores. Quando um teme a Deus e observa sua palavra, Deus lhe ouve!  Desde que o mundo é mundo, nunca se ouviu falar que uma pessoas por si mesma haja aberto os olhos de um cego de nascença. Se este não fosse de Deus, não poderia fazer-lo”. A reação dos fariseus foi violenta. Expulsaram-no da sinagoga e lhe disseram: “ Tu nascestes todo em pecado e queres ensinar-nos? Jesus ficou sabendo de tudo o que aconteceu. Foi em busca do curado, aquele homem simples que tão corajosa e decididamente havia saído em sua defesa. Ao encontrá-lo lhe pergunta: “Tu crês no Filho de Deus?” “Senhor, responde o curado, diga-me quem é para que eu creia nele”. Jesus contesta: “Já o vistes, é este mesmo que fala contigo”. “Creio, Senhor”. E lhe adorou.Os doutores estão dia e noite preocupados com o estudo da Lei, e não reconheceram o Messias; este cego, que durante toda a sua vida não fez outra coisa que proferir sempre as mesmas frases para mendigar, se entrega agora a Cristo com fé absoluta. Jesus diz: “Eu vim ao mundo para um juízo, para que os cegos vejam, e os que enxergam sejam feitos cegos”. Em Jerusalém, Jesus se encontrava sempre vigiado. Uns fariseus, que estavam próximo ouviram estas palavras. E não ignoraram que a eles se referia. Estão obstinados em sua cegueira. Vêem os milagres e são incapazes de reconhecer-los. Jesus não pode curar-los por que eles mesmos não se sentem como cegos. Entre a dor e a amargura pelas ovelhas que se perderão, Jesus exclama: “Se pelo menos fosseis cegos não teríeis pecado. Mas vós mesmos dizeis que enxergais. Por conseqüência, vosso pecado permanece”.XXIIO bom pastorJesus tinha consciência que seus inimigos faziam planos para matá-lo, e quis dar a entender que, com toda a ternura de seu coração, se preparava para a morte, a fim de salvar às almas desgarradas. Disse aos que lhe escutavam: “Eu sou o bom pastor. O bom pastor dá a sua vida por suas ovelhas. Mas aquele que é mercenário, não é bom pastor, por não ser dono das ovelhas, quando vê o lobo aproximar-se, abandona as ovelhas e foge, e o lobo as arrebata e dispersa-as, porque é um assalariado e não tem interesse algum pelas ovelhas. Eu sou o bom pastor, conheço minhas ovelhas e minhas ovelhas me conhecem como me conhece o Pai e eu o conheço. Assim, eu dou a minha vida pelas minhas ovelhas. Tenho outras ovelhas, que não são desse rebanho. Também devo recolher-las. Elas ouvirão a minha voz e formarão um só rebanho e um só pastor”.
O bom pastor mostra solicitude extrema pelas ovelhas perdidas, pelos pecadores. Tanto é assim que os fariseus murmuravam contra Jesus acusando-lhe por causa do tratamento que dava aos publicanos e pecadores. Onde resplandece com maior nitidez a misericórdia divina é nesta parábola explicada por Jesus; quem de vós, lhes diz, tendo cem ovelhas e havendo perdido uma, não deixa as noventa e nove no cercado e sai em busca da que se perdeu até que a encontre? E quando a encontra, coloca-a sobre os ombros contentíssimo, e chegando em casa diz aos amigos: “Alegrai-vos comigo, por que encontrei a ovelha que havia perdido”. Assim eu vos digo que haverá maior festa no céu por um pecador que se arrependa, que por noventa e nove justos que não têm necessidade de arrepender-se”.Pouco tempo depois Jesus teria a ocasião de pegar uma dessas ovelhas desgarradas. Era o chefe dos publicanos, um homem rico chamado Zaqueu que vivia em Jericó, uma das principais estações de aduanas do país. Zaqueu era o arrendatário geral. Como proprietário desta administração aduaneira na maior cidade comercial de Israel, naturalmente tinha que ser muito rico.Jesus passou pela cidade com uma grande comitiva, entre aclamações. Zaqueu quis ver ao homem que tantos milagres fazia. Por onde quer que tentasse atravessar entre a multidão para poder ver a Jesus, se sentia impedido pela barreira humana, pois era pequeno, de estatura. Finalmente conseguiu abrir caminho, chegando perto de umas figueiras silvestres que, por ter um tronco rugoso, não representam muito obstáculo para os que desejassem subí-las. Seus ramos começam muito baixo; assim que deixando à margem as conveniências sociais Zaqueu subiu em uma destas árvores. Mas quando Jesus passou ocorreu algo inesperado. Jesus se deteve, olhou para Zaqueu e disse: “Zaqueu, desças por que é necessário que eu mim hospede hoje em tua casa”.Zaqueu, impressionado, correu para preparar a recepção, enquanto os fariseus da comitiva murmuravam: “Como é isto? Deter-se para comer na casa do chefe dos publicanos, quer dizer, de um conhecido pecador!” Zaqueu não voltou atrás. E resolveu, como autêntico homem de negócios, o que tinha de fazer de mais valor. Ao entrar o Mestre em sua casa, disse: “Senhor, a metade de tudo o que tenho dou aos pobres, e se enganei a alguém, lhe devolverei o quádruplo”. Zaqueu, arrependido impôs a si mesmo o acerto de contas.Assim o publicano, antes que Jesus entrasse em sua casa, declara-se pecador arrependido. Jesus recuperou outra ovelha perdida. Seu coração se enche de gozo, como ele mesmo havia anunciado. A festa do céu é grande. “Hoje, diz contente, a salvação entrou nesta casa; por que ele é também filho de Abraão. Pois o Filho do Homem veio buscar e salvar o que havia perdido”.XXIIINão temais a Deus porquê Ele vos amaNada alegra tanto o Coração de Deus como o homem que chora arrependido de seus pecados. O primeiro pecado, o pecado original, cravou no íntimo do homem um estranho temor de Deus, um medo servil, irracional, que deveria ser mais próprio do demônio. É a falta de confiança em Deus, como se Deus, ao invés de querer a nossa salvação, estivesse ao encalço de nossos pecados, para chamar-nos e mandar-nos a uma eterna condenação. Nada tão diabólico e contrário ao amor divino. Jesus vai atacar a fundo esse temor. A parábola do filho pródigo é um chamado a confiar em Deus apesar de todos os nossos pecados.“Era um homem que tinha dois filhos. O menor deles disse ao seu Pai: pai, dá-me a parte da herança que mim pertence. E o pai satisfez o seu desejo. Dias depois o jovem reuniu todas as coisas que tinha e foi a um país distante e ali desperdiçou toda a herança, com farras e bebedeiras. Depois de haver gastado tudo, houve uma grande fome naquele país, e começou a sofrer grandes privações. Teve que trabalhar para um morador daquela terra, o qual lhe enviou para cuidar de porcos. Ali teve desejo de encher o seu estômago com as algarrobas que comiam os porcos; mas ninguém as dava. Chegou um momento em que se pôs a pensar: quantos empregados de meu pai têm comida em abundância, e eu estou aqui morrendo de fome! Levantar-me-ei, irei ao encontro de meu pai e direi: Pai, pequei contra o céu e contra ti, já não sou digno de ser chamado de teu filho; trata-me como a um dos teus empregados. E levantando-se, deu inicio a viagem de regresso à casa de seu pai. Estando ainda longe, seu pai o avistou, e cheio de amor, saiu correndo ao seu encontro, lhe abraçou e beijou. O filho queria pedir-lhe perdão. Começou dizeeira Eucaristia que se celebrava no mundo. É possível que fosse as duas coisas: que a instituição da Eucaristia se celebrasse entre os conselhos e emanações daquela despedida. Assim, em algum momento daquela tarde, Jesus tomou o pão e abençoando-o e dando graças, o partiu e deu a seus discípulos, dizendo: “Tomai e comei: este é meu corpo”. E logo depois, tomando o cálice, deu graças e o passou dizendo: “Bebei todos dele, por que este é o meu sangue do Novo Testamento, que por vós e por muitos é derramado para o perdão dos pecados. Fazei isto em minha memória”.
Na véspera de sua morte, Jesus cumpriu a promessa que havia feito, dando aos seus discípulos sua própria carne e seu próprio sangue para alimento de suas almas e como garantia de vida eterna. Agora os apóstolos já poderiam compreender a forma, o modo como operaria a assunção alimentária do Corpo e do Sangue de Jesus. Muitos, antes, se havia separado dele porque sem fé se ativeram somente ao sentido literal das palavras.


XXXIV

No horto de Getsémani

Depois que rezaram o salmo, Jesus saiu de Jerusalém com os seus discípulos e se dirigiram à outra parte do torrente Cedrón, onde havia um horto que chamavam de Getsémani. Depois de entrar disse aos seus discípulos. “Sentai-vos aqui, enquanto rezo”. Tomou consigo a Pedro, Tiago e João e entrou com eles no horto. Então Ele sofreu uma brusca transformação: começou a se atemorizar e angustiar-se. Dizia: “Minha alma está triste até a morte”.
Por que esta desolação se era Deus?
Porque, precisamente, era Deus e homem.
Como homem via os seus irmãos como seres desvalidos, ignorantes, necessitados de toda ajuda... mais livres acima de tudo. Com uma liberdade irrenunciável por parte do homem e por parte de Deus.
Como Deus via que por trás da debilidade havia uma maldade interior, e por ela, desciam por escuros sendeiros até as trevas do inferno. Era uma desolação ante a condenação de tantos homens, seus irmãos. Nesta angústia se lançou ao solo e rezou. Já não tinha aquela superioridade com a qual  havia invocado seu Pai no cenáculo. Agora, prostrado em terra, repetia ansiosamente: “Pai, tudo é possível para ti, afasta de mim este sofrimento; mas que não seja feito o que eu quero, senão o que tu queres”.
Levantando-se, vai ao encontro de seus prediletos, mas Pedro, Tiago e João estavam dormindo. Disse: “Não haveis podido velar nem uma hora comigo? Vigiai e orai, para não cairdes em tentação; em verdade, o espírito esta preparado, mas a carne é fraca”.
Jesus voltou à sua oração: uma repetição de frases simples que brotam de uma alma angustiada. A luta foi tanta que, entre o abatimento do espírito e o desejo de cumprir a vontade de Deus, se produziu um suor que chegou a converter-se em gotas de sangue coalhado que correram por terra.
De novo buscou os seus amigos: seguiam dormindo. Não puderam ser nenhum alívio para seu Mestre e Senhor.
Jesus regressou à oração e começou a abrir-se, lentamente, um novo horizonte: seu sacrifício não estava condicionado à correspondência de seu amor, nem a sua gratidão humana, nem à fidelidade entregada de seus discípulos; estava vinculado ao amor de Filho ao Pai e à obediência de Deus a Deus mesmo. Não havia mais que uma coisa pela qual aceitava a morte e o sofrimento: a vontade de Deus, seu Pai. Ante esta evidência, Jesus já não necessitava do amor humano de seus apóstolos: segue amando-os, mas tudo está dissolvido na vontade divina. Por isso pode ir ao encontro deles e dizer-lhes: “dormí já e repousai, porém sabei que a hora chegou, aquela em que o Filho do Homem vai ser entregue nas mãos de pecadores. Aquele que me entregará está próximo.
Efetivamente, uma legião dos homens que guardavam o Templo e da própria criadagem dos sacerdotes havia entrado no horto do Getsémani, guiados pelo apóstolo traidor. Os discípulos despertaram e tentaram defender Jesus. Pedro chegou a ferir um servo do sumo-sacerdote. Entretanto, Jesus o advertiu: “Guarda a tua espada na bainha, que quem a ferro fere, a ferro será ferido”.
Jesus ensina que poderia rogar a seu Pai do Céu para que enviasse uma legião de anjos, mas não era conveniente, porque a vontade divina havia indicado um caminho: o da morte - crucificado - depois de grandes sofrimentos. Jesus fez mais: curou o servo que Pedro havia ferido. Logo deixou-se ser amarrado. Os apóstolos viram-no. Não tiveram medo de enfrentar os que queriam levar-lhe preso, porem não compreendem porquê Jesus se deixa amarrar tão livre e mansamente. E fogem.


XXXV

Juízo e condenação

Pedro recordaria durante toda sua vida aquela noite da quinta para a sexta-feira. Havia entrado no palácio de Caifás e estava aquecendo-se em uma fogueira. Poucas horas antes, no Cenáculo, havia feito a promessa de dar a sua vida por seu Mestre. Jesus, conhecedor da fraqueza humana, havia profetizado: “Pedro, o galo não cantará duas vezes esta mesma noite sem que não me haja negado três vezes”.
Pedro permanecia perto do fogo, distraído, quando repentinamente uma serva se aproxima dele, olha-o atentamente e diz: “Tu estavas também com Jesus de Nazaré”. Pedro nega: “Nem sei, nem entendo o que estás falando”. Dirigindo-se ao portal, escutou o canto de um galo. A criada seguiu observando-o, e comentou com os que estavam ali: “Este é um dos deles”. Pedro negou outra vez. Os que estavam alí disseram ao apóstolo: “Certamente és um dos deles, pois és galileu”. Pedro começou a lançar maldições e a jurar: “Eu não conheço a este homem a quem vos referis”.
Enquanto Pedro negava a Jesus, no interior do palácio os príncipes dos sacerdotes e todo o Conselho buscavam algum testemunho contra Jesus para poder condenar-lo e não encontravam. Os falsos testemunhos não concordavam entre si. Ao final Caifás, sumo-sacerdote, posicionou-se solenemente diante do preso e intimando-o: “Te ordeno, em nome do Deus vivo, que diga-nos se és o Messias, o Filho de Deus”.
Jesus mantendo-se imperturbável, afirma: “Assim é, como tu falastes. Além do mais vos digo que dentro de pouco vereis ao Filho do Homem sentado à direita do poder de Deus e vir nas nuvens do céu”.
Vários deles gritaram como que a uma só voz: “Logo tu és o Filho de Deus?” Como antes, firme e sereno, Jesus respondeu: “Sim, eu sou!”
O sumo-sacerdote rasgou as suas vestes, como sinal de que havia escutado uma blasfêmia. Todos os presentes declararam que Jesus era réu de morte. Imediatamente alguns começaram a cuspir sobre ele e, cobrindo-lhe a cabeça, o golpeavam e diziam: “Advinha quem te bateu”. Os servos também lhe davam bofetadas. Estes maus tratos eram uma declaração de que com este sentenciado tudo estava permitido. Jesus conservava inalterada a sua serena majestade.
O pátio era um lugar de concentração de empregados; naquela noite estava agitadíssimo. Subitamente houve um grande silêncio. Jesus era conduzido a outra dependência através daquele pátio onde Pedro acabava de negar-lo. Jesus lhe olhou. Para Pedro, era como se estivesse despertando de um sonho. Um repentino arrependimento invadiu o seu coração. Saiu apressadamente daquele ambiente e chorou amargamente. Era entre uma e duas da madrugada, hora em que normalmente cantam os galos naquela zona. Pedro pode escutar como o galo cantava por segunda vez.
Pouco antes, Judas, o apostolo traidor havia se enforcado . A ansiedade e o remorso não puderam deixá-lo em paz. Arrependido e desesperado devolveu o dinheiro aos sacerdotes e disse: “Pequei entregando a um homem inocente”.
A frieza dos dirigentes foi diabólica: “A nós, que nos importa? Faça o que queiras”.
Judas lançou as moedas no chão, saiu dali e enforcou-se.
Os dirigentes judeus haviam condenado Jesus à morte mas para executá-lo faltava obter ainda de Pilatos, o governador romano, uma sentença idêntica. Assim que, bem cedinho, levaram Jesus da casa de Caifás ao pretório romano. Pilatos perguntou: “Que acusação tens contra este homem?” Eles responderam: “Se este não fosse malfeitor não o traríamos aqui”.
Pilatos suspeita que se trata de uma questão religiosa, e procura abster-se. “Julgai-o segundo as vossa leis”, responde. “Não nos está permitido dar morte a ninguém”, respondem os dirigentes judeus. E para fazer-lhe ver que não se trata de um tema religioso, começam acusar  a Jesus de delitos contra o imperador romano, a fim de obter de Pilatos a desejada sentença de morte. “Encontramos este amotinando a nossa gente, proibindo pagar tributo ao César e dizendo ser o Messias-rei”.
Pilatos interroga Jesus. Pergunta-o se é o rei dos judeus, um rei temporal que pudesse fazer concorrência à dominação romana. Jesus o tranqüiliza: “Eu sou rei, mas o meu reino não é deste mundo. Se o meu reino fosse deste mundo, os meus ministros lutariam para que eu não fosse entregue aos judeus. Eu nasci e vim a este mundo para dar testemunho da verdade. Todo aquele que ama a verdade me escuta”. Pilatos não se interessa pelas coisas do “além”. Está assentado na terra de Palestina para defender os interesses romanos. Os valores do espírito não têm cabimento. Com um ar de profundo asceticismo diz: “Que coisa é a verdade?”
Não espera resposta. Levanta-se, aproxima ao balção e comunica: “Eu não encontro nele causa alguma”.
Ouve-se as acusações e gritos dos judeus contra a resistência do governador em condenar a um inocente. Pilatos advinha que aqueles judeus que perseguem com um ódio mortal e estranho a Jesus se lançarão contra ele se não o condena. Quer livrar-se do assunto. Lembra de haverem dito que Jesus era um galileu. Herodes, que tinha jurisdição sobre Galiléia, está por aqueles dias em Jerusalém. Pilatos opta por deixar que Herodes resolva. Imediatamente envia-lhe o prisioneiro. Herodes demostra estar contente e surpreendido com a gentileza do governador romano. Convoca toda sua corte para escutar o interrogatório. Mas Jesus não pronuncia nem uma só sílaba. Enquanto os sacerdotes judeus redobravam as suas acusações, Jesus permanecia calado. Furioso e com desejo de vingança por conta do desprezo, Herodes manda que vistam Jesus, por insulto, com uma roupa branca, de louco e despede-o.
Jesus regressa de Herodes a Pilatos. Então este chama os sacerdotes e magistrados e o povo e diz-lhes: “Me haveis apresentado este homem como revolucionário, e vedes que eu, depois de havê-lo interrogado ante vós, não encontrei nele culpa alguma daquelas que o acusastes. Tampouco Herodes, porque vos enviei a ele, e não foi provado nada do qual fosse digno de morte. E assim vou libertar-lo depois de castigar”. Novos gritos e ameaças por parte dos judeus. Alguém insinua que por ser a véspera da Páscoa, era costume dar o indulto a um criminoso. Pilatos, decidido a salvar Jesus, aceita a idéia, seguro de que ante um terrível assassino como era Barrabás, o povo optaria por Jesus. “A quem quereis que coloque em liberdade: Barrabás ou Jesus, que é chamado Cristo?”
Pilatos senta no tribunal, seguro de haver triunfado, mas os inimigos de Jesus trabalham entre a multidão e quando Pilatos repete a pergunta, a resposta é vibrante:
“Queremos que soltes Barrabás”.
“Pois então, que farei com Jesus, chamado Cristo?”
Todos gritaram a uma só voz: “Crucifica-o”.
“Mas que mal cometeu?” Pilatos protesta porquê não pode sentenciar à morte de cruz um inocente. A multidão dos judeus é implacável: “Que seja crucificado”, voltam a responder.
O povo está frenético e Pilatos é tomado pelo medo. É a festa da Páscoa e são muitos os judeus que se agruparam. Existe a possibilidade de uma rebelião.
Tentará uma última saída: manda açoitar Jesus. Os soldados do governador pegam Jesus e reúnem ao seu redor toda a corte. E desnudando-o lhe flagelam com correias de couro e pedaços de finas correntes de ferro, em cujos extremos se sujeitam pequenas bolas e ganchos metálico. Aos primeiros golpes o sangue de Jesus se aglomera em pequenos círculos debaixo da pele, logo arrebentam-se e os verdugos seguem descarregando os açoites sobre a carne viva. Terminada a flagelação vestem nele um manto vermelho e tecendo uma coroa de espinhos, colocam-na em sua mão direita e logo, fazendo-lhe reverência em tôm de zombaria dizem: “Deus te salve, Rei dos judeus”. Cospem, tomam-lhe a vara e dão golpes na sua cabeça.
Conduzem Jesus à presença de Pilatos, tal como se encontrava, ou seja, como um rei caricaturesco. Pilatos seguramente se comoveria e pensaria que o mesmo ocorresse com os judeus. Faz com que Jesus avançe e exclama: “Eis aqui o Homem”. Como que querendo dizer: “Que mais quereis que faça a um homem inocente?” Mas todos estalam um grito unânime: “Crucifica-o, crucifica-o”. Pilatos está rendido, acovardado. Se atreve ainda a dizer: “Tomai e crucificai-o vós, pois não encontro nele nenhuma culpa”.
“Nós, dizem os judeus, temos uma lei e segundo esta lei ele deve morrer, porquê quer ser o Filho de Deus”.
Mas conhecem que este fato não motivara o presidente romano. Por isso acrescentam arteiramente: “Se o soltas não serás amigo do César, pois todo aquele que se faz rei declara contra o César”.
Pilatos vê que contra este argumento não há defesa. Se acreditasse em um reino celestial, fora deste mundo, ainda poderia justificar a Jesus. Mas Pilatos não crê mais do que naquilo que vê e palpa. É pagão, materialista. Logo opta por sentar-se na tribuna. É a hora sexta, ou seja, antes do meio-dia. As vozes ecoam cada vez mais desaforadamente. A um sinal, fazem silêncio e Pilatos pergunta: “Haverei de crucificar a vosso rei?” Pilatos manda vir a um escravo. Há um novo silêncio. Os judeus conhecem bem esta cerimônia: sabem que triunfaram. Enquanto o servo lava as mãos de Pilatos se ouve estas palavras: “Sou inocente do sangue desse justo”.
Centenas de gargantas exclamam a um grito penetrante: “Que caia o seu sangue sobre nós e sobre os nossos filhos”.


XXXVI

Caminho do Calvário e crucificação

A sentença de morte contra Jesus deveria ser executada fora da cidade. Trouxeram uma cruz e Jesus teve que carregar-la, já que todo condenado deveria levar sozinho o instrumento de seu suplício. Carregou-a com tanta dignidade que os soldados sentiram que aquele Jesus de Nazaré permanecia ainda inflexível em virtude de uma força misteriosa. Determinaram que fosse justiçado junto com dois malfeitores. Na metade do trajeto os soldados advertiram que Jesus estava desfalecido em função da grande quantidade de sangue que havia perdido durante a flagelação; forçaram a um homem que passava por ali, Simão Cireneu, para que levasse a cruz. Jesus era seguido por uma grande multidão e por mulheres que se compadeciam e lamentavam. Mas Jesus dirigindo-se a elas, disse: “Filhas de Jerusalém, não choreis por mim, senão mais bem por vós mesmas e por vossos filhos, porquê se fazem isto com o lenho verde, que será do seco?”
Chegaram a um lugar chamado Gólgota, que significa “lugar da caveira”. Como era de costume, ofereçeram-lhe vinho, aromatizado com mirra, a fim de suavizar a dor. Jesus, depois de provar-lo, não quis beber.
Desnudaram-no, e o pregaram na cruz. Era meio-dia. Crucificaram também a dois ladrões, um à direita de Jesus e outro à sua esquerda.
Era de costume colocar sobre a cruz uma inscrição com o nome do sentenciado e a causa de sua condenação. Pilatos, para vingar-se e zombar dos judeus, fez com que escrevessem em hebraico, em grego e em latim esta inscrição: “JESUS NAZARENO, REI DOS JUDEUS”. Estes captaram a sua intenção e não gostaram. Foram reclamar a Pilatos: “Não escrevas ‘O Rei dos judeus’. Pilatos respondeu secamente: “O escrito, escrito está”.
Depois de crucificar Jesus os soldados pegaram as suas roupas e repartiram em quatro partes, uma para cada um. Já que a túnica era feita de uma só costura, disseram entre si: “Não repartiremos! Tiremos a sorte para ver com quem fica”.
Desse modo se cumpria a profecia que dizia: “Repartiram entre si as minhas vestes, e sobre a minha túnica lançaram sorte”.


XXXVII

Morte de Jesus

Estavam junto à cruz, a mãe de Jesus e a irmã de sua mãe, Maria de Cléofas. Também Maria Madalena. Um só apóstolo, João, o mais jovem. A primeira palavra que pronunciou estando já pregado na cruz foi uma exclamação de perdão: “Pai, perdoai-os por que não sabem o que fazem”.
Não sabemos se estas palavras foram escutadas pelos dirigentes judeus que permaneceram perto da cruz seguros de seu triunfo. Eles não se importavam de zombar abertamente: “Se é o rei de Israel, que desça agora da cruz e acreditaremos nele. Confiou em Deus, pois que liberte-o agora se o ama, já que disse que era Filho de Deus”.
Outros faziam desafios ironizando: “Como que tu és aquele que destruiria o Templo em três dias e em três reconstruirias? Desce da cruz e salva a ti mesmo!”
Também um dos ladrões que havia sido crucificado o insultava: em meio às suas dores, aquele malfeitor sentia satisfação em proferir palavras ofensivas. Por outro lado o outro ladrão ficou fortemente comovido quando ouviu Jesus implorar perdão ao Pai do Céu. Um homem crucificado, sofrendo terrivelmente, não só perdoa senão que pede perdão a Deus pelos que martirizam-lhe e insultam. O bom ladrão crê que Deus é verdadeiramente seu Pai. E se põe decididamente de parte de Jesus: “Nem agora temes a Deus, diz a seu companheiro, estando prestes a morrer. Nós sofremos por culpa nossa, recebemos o que merecemos, mas este não fez nenhum mal”. E dirigindo seu olhar a Jesus pede: “Senhor, recorda-te de mim quando estiveres em teu reino”.
O bom ladrão crê na onipotência daquele que é visto absolutamente impotente. Não pede que o livre do castigo merecido nem sequer que alivie suas dores, senão uma lembrança para quando já esteja morto. Jesus, cheio de majestade, promete: “Em verdade te digo: hoje estarás comigo no Paraíso”.
Jesus esteve pendurado na cruz por três horas inteiras. Entretanto aconteçeu uma grande transformação: desde a hora sexta toda a terra se cobriu de trevas até a hora nona. Jesus compreendeu que havia chegado a hora de despedir-se de Maria, sua mãe, que não o havia abandonado naquele momento de tribulação. Disse-lhe: “Mulher, eis aí teu filho”. O olhar de Jesus passou de Maria a João. Depois dirigiu-se a este: “Eis aí a tua mãe”. Com esta doação, Jesus ficava absolutamente despojado de tudo.
Os minutos passavam lentos, densos. As trevas se faziam cada vez mais espessas. Depois de um longo silêncio Jesus exclamou com voz forte: “Eli, Eli, lama sabachtaní?”, que significa “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonastes?” Alguns dentre os que ali estavam, ouvindo o que ele havia dito, afirmavam: “Está chamando Elias”.
Depois Jesus disse: “Tenho sede”. Um dos soldados pegou uma esponja, embebeu-a em vinagre, colocou na ponta de uma varra fazendo com que chegasse à boca de Jesus para que podesse beber.
Pouco depois Jesus exclamou: “Tudo está consumado”. E cheio de confiança levantou o olhar ao céu e exclamou: “Pai, em tuas mãos entrego meu espírito”. Dito isto, inclinou a cabeça e expirou. Era quase três da tarde.
Depois da morte de Jesus, o véu do Templo rasgou-se pela metade, de cima a baixo, a terra estremeçeu e os sepulcros abriram-se ressuscitando muitos corpos dos santos que neles descansavam, os quais saindo de seus sepulcros entraram em Jerusalém e apareceram a muitos. O centurião e os que velavam Jesus vendo o terremoto e as coisas que aconteciam, ficaram aterrorizados e diziam: “Verdadeiramente era Filho de Deus”. As pessoas que presenciavam este espetáculo golpeavam o peito.
Os dirigentes judeus pediram que Pilatos ordenasse a consumação da morte dos condenados, quebrando-lhes as pernas para poder tirar-los da cruz pois não queriam que a presença dos cadáveres no Calvário manchasse a festa de Páscoa que se celebraria naquela mesma noite. Pilatos permitiu. Os soldados vieram e quebraram as pernas dos dois ladrões, mas ao aproximarem-se de Jesus e comprovar que já estava morto, não quebraram-lhe as pernas senão que um soldado, com uma lança, atravessou as suas costelas. No mesmo instante saiu sangue e água. E João, o apóstolo e evangelista, que nos fez chegar a narração desses fatos, dá testemunho porque estava presente ao pé da cruz. Diz: “Aconteceram estas coisas para que se cumprisse a Escritura: ‘não quebrareis nem um osso’. E em outro lugar diz: ‘Colocarão os olhos naquele a quem transpassaram”.


XXXVIII

Sepultura de Jesus

Os amigos de Jesu empenharam-se em evitar que o corpo de seu Mestre fosse lançado em uma fossa comum junto com os corpos de outros ladrões. Era necessário atuar com diligência, pois segundo o costume dos judeus, os justiçados tinham que ser enterrados imediatamente. Além do mais naquela mesma tarde, quando se pusesse o sol, começaria a festa da Páscoa, a grande festa judia. Então apareceu um nome novo: José de Arimatéia, que era um homem rico, membro do Sinédrio e que não havia participado da condenação de Jesus. Se apresentou ante Pilatos e pediu o corpo do Crucificado para enterrar-lo. Adquiriu em seguida um lençol e com a ajuda do apóstolo João e de Nicodemo, aquele que à primeira vez havia ido de noite encontrar-se com Jesus, e juntos retiraram o corpo da cruz.
Havendo amarrado-o com tiras e ungido, segundo o costume dos judeus, envolveram no lençol e enterraram em um sepulcro novo, em um horto que era propriedade de José de Arimatéia. Logo rolaram uma grande pedra até a entrada. As mulheres, estiveram olhando onde e como ficava o corpo para que uma vez fechada a sepultura, pudessem regressar no domingo, ou seja, depois das festas de Páscoa, com mais aromas e perfumes.
Os fariseus, lembrando que Jesus havia previsto sua própria ressurreição, se apresentaram a Pilatos e disseram: “lembramos que estando vivo havia dito que depois de três dias ressuscitaria. Manda vigiarem bem o sepulcro para que os seus discípulos não cheguem, roubem, e digam que ressuscitou”. Pilatos confiou à guarda romana para que garantissem a vigilância do sepulcro. Assim que os próprios inimigos de Jesus, que havia conseguido a sua morte, chegaram ao sepulcro, selaram a pedra, e montaram guarda.


XXXIX

Ressuscita por sua própria força

Acabada a sexta-feira, o dia da crucificação; passou todo o sábado, festa da Páscoa, e ao amanhecer do terceiro dia, domingo, Jesus ressuscitou glorioso, deixando intacto o sepulcro. Foi assim: houve um grande terremoto, desceu do céu um anjo de Deus, removeu a pedra da entrada e sentou-se sobre ela. Seu aspecto era todo luz, como de um relâmpago retido no ímpeto da queda. Os guardas ficaram imóveis, atemorizados. O evangelista que narra os fatos acrescenta outras informações. De todos os modos, depois que o anjo desapareceu, os soldados fizeram como costumam fazer os homens em tais ocasiões: primeiro quiseram pensar que fosse uma alucinação, mas rapidamente comprovaram que a pedra estava removida e que o cadáver não estava na sepultura. Não era uma alucinação: estavam diante de uns fatos reais e concretos.
Àquela mesma manhã, Maria Madalena, Maria - a mãe de Tiago - e Salomé, foram ao sepulcro para ungir o corpo de Jesus; perguntavam entre si por quem ajudaria-as a remover a pedra da entrada do sepulcro. A surpresa foi a de não encontrar os guardas e a de que a pedra houvesse sido removida. O anjo, que havia tomado forma humana disse-lhes: “não vos assusteis. Viestes ver a Jesus de Nazaré que foi crucificado. Já ressuscitou! Não está aqui! Vedes o lugar onde o colocaram. Ide e dizei aos discípulos, a Pedro especialmente, que Ele vai na vossa frente à Galiléia. Lá o vereis, como Ele vos prometeu”. Avisados, os apóstolos Pedro e João saíram correndo . Este chegou primeiro ao sepulcro; se inclinou, viu os tecidos no solo mas não entrou. O próprio historiador que nos relata o fato: “Depois dele chegou Pedro. Quando entrou no sepulcro, viu as vendas no solo e advertiu que o sudário com o qual havia sido envolto a cabeça de Jesus não estava com os outros tecidos, senão que estava separado e dobrado em outro lugar”. Era como se o cadáver de Jesus tivesse evaporado: assim o corpo ao ser infundido de novo pela alma havia tomado a vida de um estado glorioso, não sujeito às leis do espaço.
Então se operou na alma daqueles discípulos uma abertura a uma nova vida. A fé que estava como que adormecida se vivificou, e ante aqueles sinais patentes, conheceram e sentiram que Jesus havia ressuscitado. Compreenderam seus milagres, recordaram a profecia da ressurreição, tomaram consciência das palavras de Jesus sobre a paixão, morte e ressurreição. Foi a antecipação daquela que seria a plenitude de sabedoria e força que o Espírito Santo infundiria neles, em Pentecostes.


XL

Aparições de Jesus crucificado

Maria Madalena estava chorando junto ao sepulcro. Amava tanto a Jesus que encontrava-se em um estado tal que tudo o que vem do exterior perde seu valor e importância se não está em relação com a sua dor. Tinha o olhar fixo no interior do sepulcro, chorando a perda. Assim permanecia imóvel no lugar de sua desgraça. Ao fundo do sepulcro distingue dois anjos: um está na cabeceira do banco sepulcral, o outro aos pés. Os anjos perguntam-lhe: “Mulher, por que choras?” “Por que, responde, levaram o meu Senhor e não sei onde o colocaram”. Maria madalena não percebeu a condição angélica daqueles seres. Se afasta do sepulcro por que necessita está só. Caminha pelo horto cabisbaixa. Nisso, uma voz dirige-se a ela: “Mulher, porque choras? A quem buscas?” Maria pensa que seja o encarregado de cuidar do horto e interroga com uma certa pressa: “Senhor, se tu fostes aquele que o levastes, dí-me onde colocastes e eu o levarei comigo”.
Jesus se revelará para que também Maria Madalena, a pecadora, se convença da ressurreição. Disse-lhe: “Maria!” Foi como se houvesse dito: olha-me bem pois tuas lágrimas, tão humanas, privam-te de ver...” Ela reconhece-o. “Rabboni”, exclama. Rabboni quer dizer “Mestre”. Jesus fá-la notar que já não tem o estado humano que tinha antes da paixão. Explica-lhe que tocar a Deus, a união com a divindade de forma perfeita, desejada pelas almas ardentes, como Madalena, só será possível uma vez vivendo no céu.
Maria Madalena, feliz, correu aos discípulos para relatar-lhes a aparição.
Aquele mesmo dia, domingo depois da Páscoa judia, dois discípulos de Jesus, iam de Jerusalém a uma aldeia chamada Emaús. Conversavam sobre todas as coisas que haviam acontecido. Jesus aproximou-se deles, caminhando em sua companhia, mas aqueles olhos estavam como que vendados para que não reconhecessem o mestre.
Aquele desconhecido começou perguntando: “De que estáveis falando?” Respondeu um deles, de nome Cléofas: “Tu és o único forasteiro de Jerusalém que não sabe o que aconteceu por estes dias?! Comentávamos sobre as coisas que aconteceram com Jesus de Nazaré, um profeta poderoso em obras e palavras aos olhos de Deus e de todo o povo. Os príncipes dos sacerdotes e nossos chefes entregaram-no para que fosse condenado à morte, e crucificaram-no. Nós esperávamos que ele fosse aquele que redimisse Israel. Mas hoje é o terceiro dia desde que aconteceram estas coisas...”
Jesus poderia haver interrompido. Porque ao invés de desanimarem-se não se preocuparam com a ressurreição que foi profetizada? Deixou que Cléofas continuasse.
“Embora seja verdade que algumas mulheres nos surpreenderam, pois ao amanhecer foram ao sepulcro, e não havendo encontrado seu corpo, voltaram dizendo que tiveram uma visão de anjos naquele local e que estes asseguraram que ele vive. E alguns dos nossos foram ao sepulcro, e encontraram-no assim como as mulheres haviam referido, mas não viram Ele.”
O forasteiro começa a falar. Mostra-se bastante versado nas Escrituras. Começando por Moisés e com a autoridade dos profetas, indica-lhes aquelas passagens que anunciaram o Messias como varão de dores, como homem sofredor. Seus ouvintes começam a recuperar a esperança. Dão-se conta de que se equivocaram na interpretação dos fatos.
Já estavam chegando a Emaús e o caminho seguia. Jesus faz sinal de que vai seguir adiante. Os discípulos convidam-no. “Fica conosco, porque já é tarde, e o dia está terminando”. Jesus aceita. Entra com eles, sentam-se juntos à mesa. Jesus pega o pão e abençoa-o. Parte-o e distribui. Nesse momento reconhecem o Messias. Mas a vida de Jesus já opera segundo outra leis, e instantaneamente desaparece de suas vistas. Então dizem: “Não é verdade que sentíamos o coração abrasar enquanto nos falava pelo caminho e nos explicava as Escrituras?”
Regressam a Jerusalém e enquanto os discípulos de Emaús estavam ainda contando o que aconteceu no caminho e como o reconheceram ao partir do pão, apareceu Jesus no meio de todos eles e disse: “A paz esteja convosco”. Havia entrado estando as portas fechadas. Ficaram todos espantados. Jesus procurou tranqüiliza-los e fazê-los perceber que estava agora entre eles com o mesmo corpo que estava no sepulcro. Disse-lhes: “por que estais perturbados?” “Olhai as minhas mãos e os meus pés, sou eu mesmo”. Olhai as feridas das mãos e dos pés. Tocai-me. Não sou um espírito. Um espírito não pode ser tocado”. Pouco a pouco vai desaparecendo o medo. Jesus quer dar a máxima confiança e pede algo de comer.  Dão um peixe assado.
Jesus retoma a transmissão dos poderes iniciada antes de sua Paixão. Vai dar aos apóstolos a faculdade para que transmitam a paz. Diz-lhes: “Como o Pai me enviou assim também vos envio. Recebei o Espírito Santo. Aos que perdoardes os pecados, estarão perdoados; e aos que este reterdes, lhes serão retidos”. Se toda falta de paz provém do pecado, ao perdoar os pecados, se livra o réu da carga da angústia e este regressa à paz.


XLI

Pedro, vigário de Cristo, cabeça da Igreja

Os dias foram passando e uma tarde Pedro disse aos apóstolos que moravam em sua casa: “Vou pescar”. Responderam os outros: “Iremos contigo”. Entraram no lago de Tiberíades, em dois barcos com redes penduradas. Cruzaram o lago nos diversos sentidos, pelos lugares onde antes haviam encontrado pesca abundante. Pareceu-lhes como se já tivessem perdido o ofício. Ao despertar a aurora, dirigiram-se à margem, cansados e com os barcos vazios. Lá lhes esperava Jesus, que não reconheceram. Aquele aparente forasteiro lhes dá um conselho bastante concreto: “Lançai a rede à direita do barco e encontrareis”. Não era um grande esforço o que lhes pedia. Fizeram e no mesmo instante as redes se agitaram. Quando quiseram retirar as redes, não puderam levantá-las. João descobriu imediatamente que aquele forasteiro era Jesus. “É o Senhor”, disse a Pedro. Jesus tinha preparado um fogo. “Trazei alguns dos peixes que haveis recolhido”, lhes disse. Assim fizeram e Jesus lhes repartiu os peixes assados e o pão. Depois de comer, Jesus pergunta a Pedro: “Simão, Filho de João, me amas mais que estes?”
Pedro foi surpreendido com aquela pergunta. Deveria recordar as negações no pátio de Caifás, também junto ao fogo. Com espírito totalmente prostrado disse: “Sim, Senhor, Tu sabes que te amo”.
Jesus lhe diz: “Apascenta os meus cordeiros”.
Mais uma vez Jesus faz a Pedro a mesma pergunta. Certamente convinha confirmar o amor do discípulo tantas vezes quantas lhe havia negado. A resposta foi a mesma: “Sim, Senhor, Tu sabes que te amo”.
Jesus perguntou pela terceira vez: “Simão, filho de João, me amas?”
Pedro faz um ato de total desprendimento e ao mesmo tempo de plena confiança em Jesus. Responde: “Senhor, Tu sabes todas as coisas; Tu sabes que te amo”. Jesus o nomeia seu Vigário, cabeça da Igreja. Logo desaparecerá o Bom Pastor, Jesus. Será necessário que outro Bom Pastor atue em seu nome, para que as ovelhas se sintam seguras e protegidas. Jesus lhe encarrega:
“Apascenta minhas ovelhas”.


XLII

A missão do apóstolo

Jesus indicou a seus onze discípulos um monte da Galiléia onde deveriam esperá-lo. Foram lá e logo Jesus apareceu, com tanta majestade que revelava que o Filho do Homem era Senhor do mundo. Era a hora de investir em seus discípulos para que, como apóstolos, dessem testemunho de Jesus por toda a terra. Irão ser mensageiros a todas as gentes e em todos os tempos. “Foi-me dado todo poder no céu e na terra. Ide, ensinai a todas as gentes, batizando-as no nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo; ensinando-as a observar todas as coisas que vos mandei”.
Já não havia um povo escolhido. Toda a Humanidade era escolhida, por que toda a Humanidade havia sido redimida. Por isso a obrigação de ensinar a todos os homens.
Que deveriam ensinar? A doutrina de Jesus: refletida em sua vida, em suas palavras, em seus milagres...
Aqueles insignificantes galileus deveriam se apresentarem diante do mundo e anunciar que o Filho de Deus havia realmente se encarnado, havia vivido entre nós, os homens, havia sido cravado numa cruz por amor. Missão tão transcendental poderia pasmar a qualquer homem. Jesus observa os olhares interrogativos, suplicantes, quiçá angustiados, de seus apóstolos ante tamanha visão e lhes diz solenemente: “Eu estarei convosco todos os dias até a consumação dos séculos”.


XLIII

Jesus, o Filho de Deus, ascende aos céus

Jesus apareceu aos seus apóstolos pela última vez na mesma sala em que havia instituído a Eucaristia. Afirmou que todas as profecias sobre sua vida estavam cumpridas. Mas faltava a transformação do mundo. Era conveniente pregar o exemplo de sua morte. Diz: “Em meu nome, começando por Jerusalém, se deverá pregar a penitência e a remissão dos pecados a todas as nações”.
Depois de prometer que enviaria a força, a energia do Espírito Santo, caminharam do Cenáculo ao monte das Oliveiras, o mesmo intinerário percorrido na véspera da Paixão. Descendo as ladeiras, chegaram às gargantas do vale Cedrão. Seguindo pelo horto das Oliveiras chegaram ao cume. Jesus abençoou os fieis; depois estes viram, como aos seus olhos, se elevava pelo ar por sua própria virtude. Jesus homem, contemplava os lugares que sua existência terrena havia santificado: o deserto de Judá, o côncavo do rio Jordão, os muros de Jerusalém, o monte Calvário; mais além a paisagem de Belém, as inumeráveis cordilheiras da Judéia, o lago de Genesaré, sua aldeia de Nazaré sobre as planícies de Jezrael. Contemplava a terra do Redentor.
Jesus, Filho de Deus e homem verdadeiro, entrava no céu.
No monte das Oliveiras os discípulos mantinham o olhar cravado nos céus, retidos. Foi preciso que dois mensageiros vindos do céu devolvesse-lhes à realidade.
“Homens da Galiléia, por que estais olhando para o céu? Este Jesus que  vossa vista viu subir ao céu, voltará assim como o haveis visto subir”.
Por isso os cristãos, desde os primeiros séculos, repetem com todo ardor-amor do coração: “Maranatha”, “Vem Senhor, Jesus!”.





Que toda a terra seja,
com a Virgem Maria,
Gloria de Deus.





[1] O cerco de Jerusalém começou no mês de abril. Assim, o tempo da fuga caiu nas semanas das chuvas tardias; época em que é impossível passar as noites ao ar livre; muitos caminhos se convertem em torrentes, outros  em sujos lamaçais.
A guerra começou no ano 66 e terminou depois de quatro anos de sangrentas lutas e horríveis devastações, com a destruição de Jerusalém e a dispersão do povo judeu, cumprindo-se ao pé da letra o que foi profetizado por Jesus. O sacerdote judeu Flávio José, general em chefe das tropas judias em Galiléia, e mais tarde, testemunha ocular de todo o desenvolver da guerra na companhia de Vespasiano e de Tito, descreveu os pormenores em sete livros; assim, sem saber deixou a prova escrita do cumprimento exato das palavras de Jesus. Ao começo da guerra abandonaram a cidade os cristãos com seu bispo Simeão à frente e foram se estabelecer em Pella, ao outro lado do Jordão, cerca 100 quilometros de Jerusalém.
A cidade havia se convertido em um caldeirão de partidos que lutavam com ódio entre si, com horríveis matanças. Os zelotas chamaram os idumeus em seu auxílio e cobriram ruas e átrios do Templo, de cadáveres. A cidade ia reduzindo-se a escombros.
Os judeus combatiam entre si, de forma que não foi difícil a Tito aproximar-se a Jerusalém naquela primavera do ano 70. Estabeleceu o seu acampamento a uns 200 metros do Gólgota e outro no monte Olivete. O assédio começou quando se havia congregado na cidade uma imensa multidão de peregrinos para celebrar a Páscoa. Parecia que todo o povo judeu tivesse sido trancado em uma cadeia. Isto contribuiu a que fosse aumentando a fome em Jerusalém. Correndo risco de vida, alguns judeus saiam da cidade durante a noite para recolher ervas comestíveis. Muitos deles caiam em poder dos romanos, os quais, para amedrontar aos que estavam sitiados e obrigar-lhes a renderem-se, açoitavam e crucificavam os infelizes prisioneiros diante dos muros de Jerusalém. Não poucas vezes crucificaram até mais de 500, em um só dia. À vista dos desgraçados se erguia o Gólgota. Tito bloqueou a cidade por meio de uma estreitíssima e ininterrupta linha de bloqueio, para que os judeus abandonassem toda esperança de fugir, e com mais certeza a fome lhes obrigasse a renderem-se, . O recinto da cidade media pouco mais de 6 km, uma milha geográfica.
Em pouco tempo se instalou a fome entre a multidão com um crescente furor, e a miséria se viu aumentada por uma epidemia mortífera. O que normalmente produzia repugnância, era agora devorado com ferocidade: couro velho, capim podre, esterco, etc. Os homens roubavam a comida de suas mulheres, as mulheres, a dos homens; os meninos, a de seus pais e as mães a dos seus bebês; e ainda houve mãe que matou ao filho de suas entranhas para devorar sua carne. “É impossível, observa Flávio José, descrever detalhadamente todas as atrocidades dos habitantes; jamais cidade alguma sofreu tanto e nunca desde o princípio do mundo houve geração tão desenfreada em seus crimes”. Famílias inteiras, linhagens inteiras foram morrendo pela fome. Os terraços estavam cheios de mulheres e meninos subnutridos; as ruas, de anciãos pálidos. Homens e adolescentes andavam como sombras e caíam semimortos; e haviam aqueles que, ao ver que se aproximava a sua hora, se trancavam em uma tumba para não ficarem sem ser sepultados. Não se ouvia nenhum lamento, nenhuma queixa rasgava o ar, os que lentamente iam morrendo, contemplavam com olhos rígidos aos já mortos e lhes invejavam sua sorte.
Por todas as partes, sobre mortos e agonizantes, reinavam o silêncio da noite, rompido algumas vezes pelo ruído dos zelotas que assaltavam as casas para roubar até as roupas dos cadáveres.
Depois de muitos ataques infrutíferos, foi por fim conquistada a Torre Antônia, e Tito pensou em atacar o monte do Templo e seu muro exterior. Já anteriormente havia convidado repetidas vezes aos judeus a renderem-se; agora renovou sua oferta. “Ponho por testemunha aos deuses de minha pátria, mandou dizer, e se houve algum deus que alguma vez teve providência dessa cidade – pois não creio que agora tenha – coloco-lhe assim mesmo por testemunha, e também ao meu exército e aos judeus que estão comigo, de que não os obrigarei a manchar o Templo. Se vos submeteis, nenhum romano se aproximará do santuário. Eu o conservarei, embora não queirais”. Mas os zelotas não viram na magnanimidade do romano senão covardia, e desprezaram seus avisos.
Então se reiniciou a luta mais terrível que nunca. Os muros norte e oeste do Templo se desfaziam ao golpe de picaretas; mas resultavam em vão todos os ataques dirigidos contra o muro oriental do átrio. O general romano tenta um assalto e é repudiado com grandes perdas. Então Tito manda incendiar as portas; o fogo funde a prata com a qual estavam cobertas, queima a madeira e penetra nos pórticos. O incêndio dura um dia e uma noite inteiros, e no outro dia, pela manhã, dá ordem para que apaguem o fogo. Enquanto os soldados se ocupam de cumprí-la, os judeus atacam de novo; mas são afugentados e perseguidos até o Templo.
Entre o tumulto geral, um soldado romano, sendo elevado até uma das janelas douradas que pelo lado do norte davam a uma das estâncias imediatas ao santuário, joga, por ela, um tição ardendo. Põe fogo nos ricos artesanatos e o fogo se propaga às salas conjugadas ao santuário. Ao ficar sabendo, Tito vai apressadamente com seus oficiais, e com o gesto e a voz quer conter os soldados e obrigar-lhes a combater as chamas. Mas em vão. As legiões se precipitam depois dele; a indignação, o ódio e o desejo de apoderar-se das riquezas os fazem surdos às ordens; ao ver ao seu redor brilhar o ouro, crêem que no Templo se guarda imensas riquezas; já não dá tempo para domar sua selvageria.
Os judeus, que com furor desesperado vão ao seu encontro, caem por terra esfaqueados; em torno do altar dos holocaustos jazem amontoados os cadáveres, e o sangue corre das grades do Templo. Tito penetra no edifício incendiado, chega ao sancta sanctorum e os seus olhos contemplam com assombro aquele formoso Templo cuja magnitude e esplendor interior não desmentem o que de fora promete. Todavia espera poder combater o fogo no interior, se esforça em dar vozes para combater o fogo, e instantâneamente tudo desmorona.
 Os romanos plantam as águias imperiais no lugar santo e oferecem sacrifícios aos deuses. Era o mesmo dia do mês em que, em outro tempo ardeu o Templo de Salomão, um 9 de AB, 15 de agosto do ano 70 dc. Meio ano antes, o 19 de dezembro de 69, em Roma ardia o Capitólio ou templo de Júpiter, o primeiro dos deuses romanos, incendiado pelos soldados de Vitélio que lutavam contra os partidários de Vespasiano. Os templos do judaísmo e do paganismo caiam, quando o reino de Cristo estava disposto a conquistar o mundo.
Entretanto, os romanos plantaram as águias nas torres de Sion e se esparramaram pelas ruas derrubando tudo quanto as suas mãos alcançavam, queimando as casas com os que nelas se  refugiavam. A cidade esteve ardendo dois dias e duas noites; ao terceiro dia era um monte de escombros, debaixo dos quais havia uma infinidade de cadáveres sepultados. Era dois de setembro do ano 70. Quando Tito entrou na cidade se admirou da fortaleza de suas muralhas, em especial das três soberbas torres de Hípico, Fasael e Mariamma; e dele se  conserva este comentário: “Evidentemente não valeu a vitória em favor dos deuses, pois só um deus poderia expulsar os judeus dessas cidadelas. Contra elas nada poderia a mão dos homens ou a força de seus engenhos”. Segundo Flávio José, mais de um milhão de homens pereceram durante o assédio. O número de prisioneiros, segundo o mesmo, se elevou a 97.000. Parte foi enviada às minas egípcias, parte distribuída  pelas províncias para lutar nos anfiteatros, uns com os outros ou com as feras. Em um só dia pereceram 2.500 judeus nos jogos circenses, que em honra de Tito organizou a cidade de Cesaréia de Filipe; e nos de Beirute sucumbiu uma “imensa multidão”. Os outros foram vendidos por todo o mundo como escravos. Tito permitiu, finalmente, que fosse arrasado quanto do Templo e da cidade restassem, e que o arado passasse sobre os escombros. Unicamente exceptuou as três torres e uma parte da muralha ocidental com os edifícios conjugados, para que servissem de alojamento às tropas que ali deveriam permanecer, e pudesse dar testemunho da firmeza da cidade e do valor dos romanos.

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