I parte: Do escopo do tratado
"Expositio et quaestiones" in Aristoteles De Anima by Johannes Buridanus, 1362?. |
«[cujas]
funções são o gerar e o servir-se de alimento. Pois, para os que vivem [...], o
mais natural dos atos é produzir outro ser igual a si mesmo; o animal, um animal,
a planta, urna planta, a fim de que participem do eterno e do divino como podem»[4].
O
escopo do tratado é examinar e encaminhar a solução de três ordens de
problemas: o do gênero e o da unidade da alma, como o de sua definição[5]. O
primeiro gira em torno de questões como: que gênero de coisa é este princípio
de vida que designamos alma? Seria urna substância, no sentido de algo de
natureza material, extensa, ocupando lugar no espaço, como pretendiam alguns pré-socráticos?
Ou, como sustentavam outros, seria a alma algo abstrato, relacionado às
quantidades envolvidas em seus componentes materiais? Ou, quem sabe, urna
espécie de alteração sofrida no todo natural, tal como urna mudança de
qualidade, decorrente da forma como as partes materiais são combinadas? Ou, como
parece querer mostrar Aristóteles, nenhuma das alternativas anteriores?
Urna segunda
ordem de problemas concerne à unidade da alma: «é preciso
examinar também se ela é divisível! em partes ou não, e se toda e qualquer alma
é de mesma forma»[6]. Aristóteles sugere que o
problema não é simples e, de fato, não é fácil dar-se conta do que exatamente
está em jogo. A
alma, por um lado, garante a coesão das partes materiais que compõem o ser vivo
e determina suas proporções[7],
do contrário seus elementos físicos não se manteriam agregados e sob certos
limites.
«Alguns dizem ainda que a alma é
partível, e que uma parte é o pensar, outra o ter apetite. Pois bem, o que mantém
afinal a alma junta, se ela é por natureza partível? Certamente não é o corpo.
Ao contrário, parece mais que é a alma que mantém junto o corpo, pois, quando ela
o abandona, ele se dissipa e corrompe»[8].
E a alma exibe
também um tipo de homogeneidade, no sentido de estar toda ela em cada parte do
corpo, sendo possível em certa medida secionar partes do ser vivo sem
diminuir-lhes a vitalidade como um todo[9].
Contudo, o viver se diz de fato em vários sentidos, pois dizemos que um ser
vive caso tenha ao menos um dos seguintes atributos: nutrição, percepção,
locomoção e intelecção[10],
o que sugere que a alma talvez seja algo complexo. É possível que a alma tenha
partes logicamente distinguíveis, sem que tenha o tipo de divisibilidade dos
objetos extensos, não sendo talvez apropriado falar de partes da alma sediadas
em partes específicas do corpo, como o fez Platão.
Aristóteles
parece preferir falar em potências
antes que em partes da alma[11].
Os atributos da alma são capacidades e
diversas modalidades: umas intermitentes e intencionais, e outras simplesmente
contínuas. De maneira que a psicologia tem de encontrar uma definição de alma
que escape ainda de certos dilemas (lógicos e epistemológicos), legados por
filósofos anteriores a Aristóteles sobre o status
da potencialidade.
Que gênero de
coisa pode dar conta de garantir a unidade do ser e, ao mesmo tempo, comandar a
variedade de tais atributos ? Eis a terceira ordem de problemas: os da
definição. Há um único enunciado definidor de alma? Ou diversos, e um para cada
espécie? A propósito, toda e qualquer alma é do mesmo gênero? A boa definição,
de qualquer modo, é aquela que deixa claro o porquê das propriedades do que
define[12].
E o desafio da psicologia, em uma palavra, é enunciar o que é a alma e mostrar,
a partir disso, como todas estas dificuldades encontram solução.
II parte: Do argumento principal
Aristóteles,
em todo o primeiro livro, levanta pacientemente objeções cabíveis a cada urna
das teses antigas que lhe parecem não dar conta da tarefa. Refuta severamente
os que, com base na convicção de que só o que se move pode fazer algo se mover,
de uma maneira ou de outra, definem a alma simplesmente como algo em movimento. Por mais que
se esmerem em concebê-la de forma sutil e incorpórea, todas as tentativas
anteriores estavam comprometidas com o materialismo. Por isso diz:
«Na
opinião de alguns, é simplesmente a natureza do fogo que causa a nutrição e o
crescimento, pois só o fogo, dentre os corpos, ou [os elementos] revela-se
nutrido e crescente. E por isso alguém poderia supor que é também o fogo que
opera nas plantas e nos animais. De certa maneira, ele é um causador
coadjuvante, mas não o causador simplesmente, o qual é antes a alma. Pois o
crescimento do fogo é em direção ao ilimitado e até o ponto em que existir o
combustível, mas em tudo o que é constituído por natureza há um limite e uma
proporção para o tamanho e para o crescimento, e essas são coisas da alma e não
do fogo, e da determinação mais do que da matéria»[13].
Há, por outro
lado, aqueles que abstraem demais a ponto de tratarem a alma matematicamente,
independente de seu poder de movimento. Para Aristóteles, contudo, os seres
naturais são «menos separáveis» que entidades matemáticas. Causar movimento não
é atributo da harmonia e é isso o que principalmente se atribui a alma[14].
Se a alma fosse simplesmente uma característica emergente do corpo, então ela
seria algo derivado, posterior e ontologicamente subordinado a ele. Mas,
segundo Aristóteles, a alma é principio e comanda a ordenação progressiva de
suas partes, ela é substância, não qualidade.
«A
alma é causa e principio do corpo que vive. Mas estas coisas se dizem de muitos
modos, e alma é similarmente causa conforme três dos modos definidos, pois a
alma é de onde e em vista de que parte este movimento, sendo ainda causa como
substância dos corpos animados. Ora, que é causa como substância, é claro.
Pois, para todas as coisas, a causa de ser é a substância, e o ser para os que
vivem é o viver, e disto a alma é causa e principio»[15].
O avanço de
Aristóteles em De Anima consiste em
mostrar que a alma é principio de movimento , mas que não pode ser algo em movimento. Sua
inovação foi admitir que a alma é um principio parado embora atuante nos
processos de mudança denotando vida. Sua solução, de fato, é a não
imediatamente clara tese da alma como «a
primeira atualidade do corpo natural orgânico»[16].
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