02 marzo, 2013

Gilberto Freyre e a influência da mulher escrava no processo de formação da família patriarcal rural brasileira


Freyre
Por detrás de uma minoria numérica de negros que povoam o Brasil, esconde-se um número muito maior de afro-brasileiros, mulatos, que como outrora, vivem em condições de vida que os limitam na hora de desenvolver suas potencialidades. Por constatar este fato, optamos por aprofundar, nesta dissertação, a questão do negro e dos seus descendentes, no Brasil. Depois de uma busca bibliográfica, deparamo-nos com Gilberto Freyre[I], e com a suas obras – Casa-grande e Senzala[II] e, Sobrados e Mucambos[III] –, que compõe duas partes das três que completam a trilogia na qual ele desenvolveu a sua Introdução à historia da sociedade patriarcal no Brasil. Consultando estas duas obras, decidimos utilizá-las por duas razões: primeiro, porque muitas das fontes por nós consultadas sobre a temática remetiam-nos às obras gilbertianas – mesmo quando era para rebater as posições por ele defendidas –, e, depois, porque as pesquisas etnográficas e históricas freyrianas pareciam oferecer-nos os pressupostos para a reconstrução histórica e sociológica do processo de inserção da mulher escrava na formação da família patriarcal do Brasil.
Partindo da perspectiva gilbertiana – perspectiva do homem, senhor e colonizador –, nasceu-nos a ideia de fazer um estudo socio-histórico da formação da família patriarcal rural brasileira e do papel da mulher escrava na sua formação, buscando compreender as razões do atual, paulatino e inacabado processo de integração da mulher negra e miscigenada na sociedade brasileira. Logo, a dissertação tratará da família patriarcal brasileira, havendo como elemento basilar as mulheres, a saber: a índia, a escrava africana e a mulher de origem europeia, principalmente, lusa. A finalidade será a de abrir um novo horizonte de descrição e de interpretação dos fatos históricos conhecidos: a historia da mulher brasileira como categoria descritiva e interpretativa no desenrolar da historia do Brasil como um inteiro; da sua organização social e da sua cultura. É, em definitivo, uma aplicação, em contexto brasileiro, da abordagem de Georges Duby e Michelle Perrot, na Storia delle donne in occidente[IV][4], que contempla os fatos históricos não somente da ótica das grandes datas e dos grandes eventos, mas, também, como dilatação progressiva do campo histórico “às práticas quotidianas, aos comportamentos habituais, à mentalidade comum[V]; trazendo, assim, uma inovação histórica para a antropologia e, logo, para a sociologia, mais especificamente, a microsociologia. Enfim, a nossa hipótese será que, segundo Gilberto, não obstante a mulher de cor – negra ou ameríndia – gozasse do status de escrava, jogou um papel indispensavelmente ativo na formação da família patriarcal rural brasileira.
A dissertação foi dividida em três capítulos, que seguem, progressivamente, uma ordem histórica: a primeira, na qual analisamos o processo de inserção da mulher nativa na formação da família patriarcal e o primado que esta assumiu em tal processo, sobretudo, como matriz reprodutora; e as razões pelas quais se deu início a importação da mulher africana. Na segunda parte, a análise foi centrada sobre a mulher negra e sobre sua contribuição para a consolidação da família patriarcal, ressaltando os logros na inserção de elementos da sua cultura na geração de uma cultura brasileira. A terceira, e última parte, será dedicada ao estudo das mazelas, por meio da exploração sexual, que as negras e as suas afrodescendentes sofreram, e sofrem, enquanto vem inserindo-se na sociedade pós-escravocrata. Por fim, as partes foram precedidas de uma introdução, e enfeixadas por uma conclusão, onde foi analisada a hipótese sustentada por Gilberto Freyre, sobre o papel ativo da mulher escrava na formação da família patriarcal brasileira.
Optamos por haver como fio condutor a perspectiva gilbertiana. Todavia, conscientes das inúmeras críticas que o seu pensamento reclama, permearemos a dissertação, ancorando-nos, principalmente, nas críticas do antropólogo brasileiro, Darcy Ribeiro, autoridade reconhecida em tudo o que tange sobretudo, mas, não só, ao indigenismo brasileiro. Em relação à metodologia científica, fizemos uma opção: quando citarmos diretamente as fontes, conservarmo-las em original, seja em português mais arcaico, seja em outras língua. Enfim, limitaremos a nosso período histórico de análise aos séculos que vão do século XVI ao XVIII, quando, segundo Gilberto Freyre, tal família formou-se e consolidou-se, no Brasil.
Cena - Debret

Capítulo I

A escravidão da mulher nativa e o seu primado na formação da sociedade patriarcal rural brasileira

O português, no Brasil Colonial, foi um povo liberal, inclusive, na sua vida sexual; e o foi por necessidade. Freyre insiste, por exemplo, que a liberalidade para com o estrangeiro na América portuguesa do século dezesseis, remonta às raízes mesmas da civilização portuguesa, outrora ocupada por romanos, alanos, vândalos, suevos, visigodos e mouros[VI]. Por outra parte, vem-nos esclarecida a razão de sua liberalidade sexual: “Não se trata de nenhuma virtude descida do céu sobre os portugueses mas o resultado quase químico da formação cosmopolita e heterogênea desse povo marítimo[VII]. Segundo Gilberto Freyre, no Brasil, o português só fez dar continuidade à miscigenação presente desde o início da sua formação.
Nos primórdios da colonização do Brasil, além do indígena, o Brasil foi povoado por dois tipos de colonizadores portugueses: aqueles agrupados num núcleo familiar, e os degredados; famílias com estrutura patriarcal aglutinada na casa-grande, baseada no trabalho agrícola, com pouca presença feminina[VIII]; degredados, exilados nas novas terras por lei imperial, que vigorou durante os séculos dezesseis e dezessete, acusados de irregularidades ou excesso na vida sexual, e de heresia[IX].
Gilberto Freire afirma que o degredado pouco influenciou na plástica do brasileiro; mas conclui dando-nos a dimensão positiva do exílio dessa gente, sobretudo, àqueles com forte compulsão sexual, que, saciando suas taras, gerou a nação brasileira: “A ermos tão mal povoados, salpicados, apenas, de gente branca, convinham super-excitados sexuais que aqui exercessem uma atividade genésica acima da comum, proveitosa talvez, nos seus resultados, aos interesses políticos e econômicos de Portugal no Brasil[X].
Um dos aspectos característicos do regime patriarcal rural brasileiro – sem excluir os aspectos de ordem econômica – foi a distinção tão acentuada que o homem dá à mulher branca, tornando-a tão diferente dele, quanto possível. Nele, o homem sempre foi o sexo forte e nobre, e a mulher branca o sexo fraco e belo. Assim que, “a extrema diferenciação e especialização do sexo feminino em ‘belo sexo’ e ‘sexo frágil’, fez da mulher do senhor de engenho e da fazenda, e da iaiá de sobrado, um ser artificial, mórbido. Uma doente, deformada no corpo para ser a serva do homem[XI]. Durante todo o período patriarcal encontramos mulheres patriarcais franzinas, que se entregavam, o dia todo, na tarefa de coser, tomar o ponto dos doces, embalar-se nas redes, gritar para as molecas, brincar com os periquitos, espiar os homens pelas brochas das portas, fumar cigarro ou charuto, parir e morrer de parto.
Um fato triste é que muitas noivas de quinze anos morriam logo depois de casadas. Meninas. [...] Morriam de parto [...] Sem tempo nem de criarem o primeiro filho. Sem provarem o gosto de ninar uma criança de verdade em vez dos bebês de pano, feitos pelas negras de restos de vestidos. Ficava então o menino para as mucamas criarem[XII].
Se, aos homens lhes eram concedidos todas as liberdades, inclusive as sexuais; tudo conspirava no sentido de levar a mulher branca a ser “serva do homem e a boneca de carne do marido[XIII].
Em geral, a mulher branca, no regime patriarcal, era um elemento exclusivamente doméstico, que, quando menina, vivia em um regime de quase-confinamento. Os pais preocupavam-se em casar cedo as suas filhas; casamentos eram comuns entre as jovens de 13, 14 e 15 anos e eram eles que escolhiam o marido para elas. Estas meninas casavam-se cedo e iam viver numa nova casa-grande, com as mesmas atividades femininas: o preparo de quitutes para o marido, o cuidado com os filhos; envelheciam rapidamente. Ficavam reduzidas a simples máquinas de ter filhos, o que consumia a mocidade e a própria vida.Criaturinhas fracas do peito, meninas românticas de olhos arregalados, de 14 e 15 anos que os bacharéis de 25 e de 30 nomeavam passando de cartola e bengala pelas calçadas dos sobrados, voltados para as varandas como para nichos ou altares. O outro, as mães de 18 e 20 anos, mulheres gordas, mas de uma gordura mole e fôfa, gordura de doença, mulheres que morriam velhas aos 25 anos, no oitavo ou nono parto[XIV].
Sendo estas a caracterização geral da mulher branca brasileira na família patriarcal, como era tida a mulher escrava numa sociedade gemeischaft, caracterizada pela relação social baseada dominantemente na amizade, na parentela e nas relações de vizinhança; cuja instituição central era a lei da família e o grupo de parentela amplo; cuja forma característica de riqueza é a propriedade fundiária; sedimentada nas leis da família?[XV]
Cicero Dias - casa-grande & senzala

1.  Os colonos e a instauração da escravidão nativa

Na colonização do Brasil, o português contou com o índio, o primeiro a rasgar a mata e a terra, e com a índia, para dar início à geração do povo brasileiro. Baseando-se no primeiro documento redigido em terras brasileiras, a Carta escrita por Pero Vaz de Caminha e destinada a narrar ao soberano português as coisas vistas e apoderadas depois que as naus portuguesas ancoraram em terra firme, em 1500, em terras brasileiras, Gilberto estampa as impressões do português em relação ao nativo: e o português que primeiro os surpreendeu, ingénuos e nus, nas praias descobertas por Pedràlvares, fala com entusiasmo da robustez, da saúde e da beleza desses [...]. Robustez e saúde que não esquece de associar ao sistema de vida e de alimentação seguido pelos selvagens [...]. ‘Elles non lauram, nem criam, nem haa aquy boy, nem vaca, nem cabra, nem ovelha, nem galinha, nem outra nenhuma alimarea, que costumada seja aho viver dos homeens; nem comem senom dese inhame, que aquy haa muyto, e desa semente, e fruitos que ha terra, e has arvores de sy lançam: e com isto andam taaes, e tam rijos, e tam nedeos, que ho non somonós tanto com quanto trigo, e legumes comernos’ (P.V. de Caminha, Carta, em: M.A. de Casal, Corografia brasileira, Rio de Janeiro, 18332)”[XVI].
Darcy Ribeiro - Antropòlogo
Assunto como escravo, o índio, insatisfeito, fugiu, refugiando-se nas aldeias e missões jesuíticas; posteriormente, ou fugiu da costa em direção ao sertão, ou via-se capturado, escravizado e assassinado pela tirania do trabalho escravocrata, monótono e incessante do engenho. Sobre o papel dos Jesuítas na domesticação do indígena, Darcy Ribeiro ratifica, radicalizando, a posição de Freyre: Onde Gilberto Freyre nos dá realmente um painel expressivo, onde ele indaga com maior liberdade e isenção [e segui louvando o empreendimento] é no exame do papel desenraizador do Jesuíta. […] o jesuíta teria desenvolvido toda uma pedagogia fundada na utilização das crianças como agentes de mudança cultural. […] Não queriam a destruição do indígena [comenta Ribeiro]. Exaustos, porém, de remar contra a correnteza da história, os jesuítas teriam acabado por assumir o papel menos glorioso de amansadores de índios. Assim é que foram os próprios inacianos, afinal, os agentes mais eficazes do engajamento da indiada. Descida por eles dos ermos onde viviam livres, mas inúteis, para os trabalhos das obras oficiais, para a escravidão na mão dos colonos e, principalmente, para as próprias fazendas-missões da Companhia. Para Gilberto Freyre os padres teriam se deixado escorregar para as delícias do escravatismo ao mesmo tempo que para os prazeres do comércio. Contribuíram também concentrando os índios, para facilitar as epidemias que, somadas à escravidão, provocaram o despovoamento no Brasil de sua gente autóctone[XVII].
Para Darcy Ribeiro, os Jesuítas teriam sidos os grandes responsáveis da diminuição do contingente nativo; já, para Freyre, o grande exterminador do índio foi a cultura canavieira, que chamou para si a escravidão do nativo e da nativa, acostumados com um ritmo de vida silvícola[XVIII].
Em observação à afirmação gilbertiana do caráter silvícola do nativo brasileiro, Darcy Ribeiro esboçou uma pertinente crítica à concepção freyriana do nativo brasileiro: A apreciação que se lê em CG&S [casa-grande & Senzala]do grau de desenvolvimento das culturas tribais brasileiras é nada menos que grosseira [...]. Para GF [Gilberto Freyre] o índio é o silvícola nômade, ‘de cultura ainda não agrícola, apesar das lavouras de mandioca, cará, milho, jerimum, mamão, praticada pelas tribos menos atrasadas’. Só nesta lista há fatos suficientes para falar de uma agricultura tropical, desenvolvida pelo indígena [...]. A verdade meio melancólica, porém, é que, apesar destas deficiências evidentes no varejo, no atacado, CG&S dá uma imagem melhor da herança indígena do que quanto se podia ler nos textos disponíveis de então[XIX].
Se, afirma Gilberto Freyre, a cultura indígena sobreviveu ao regime escravocrata imposto pelo engenho, foi por meio da índia, que, para Freyre, foi a mãe do povo brasileiro: À mulher gentia temos que considerá-la não só a base física da família brasileira, aquela em que se apoiou, robustecendo-se e multiplicando-se, a energia de reduzido número de povoadores europeus, mas valioso elemento de cultura, pelo menos material, na formação brasileira[XX].
Neste ponto, Darcy Ribeiro reconhece que, “continua sendo valiosa as apreciações de Gilberto Freyre sobre o papel da mulher indígena como matriz genética e como transmissora de fundamentais elementos de cultura[XXI].

2.  O colono e a nativa: relações sexuais e de família

Na índia, os primeiros colonos, os pais dos brasileiros, em sua grande maioria homens que ainda não havia constituído uma família, encontraram o modo de compensar a falta de mulher branca, de aumentar a população e de contentar a sua avassaladora libido. Mesmo assim, Gilberto Freyre comenta a arguta observação de Southey: o sistema português se revelara mais feliz do que nenhum outro no tocante às relações do europeu com as raças de cor; mas salientando que semelhante sistema fora antes ‘filho da necessidade’ do que de deliberada orientação sexual ou política. (R. Southey, History of Brazil, Londres, 1810-1819) [e segue, recolhendo uma afirmação de Henry Koster (H. Koster, Travels in Brazil, Londres, 1816), citado por Manuel Bonfim] Esta vantagem [...] provem mais da necessidade que de um sentimento de justiça (M. Bonfim, O Brasil na América, 1929)”[XXII].
De outro lado, ele aproveita para aclarar, embebendo-se em Paulo Prado, que a índia cruzou-se com o branco, não pela superioridade priápica deste, como insinuava Varnhagen, mas, sim, por motivo social, como sustentava Capistrano de Abreu: Paulo Prado foi surpreender ‘o severo Varnhagen’, insinuando que, por sua vez, a mulher indígena, ‘mais sensual que o homem como em todos os povos primitivos [...] em seus amores dava preferência ao europeu, talvez por considerações priápicas (P. Prado, Retrato do Brasil, São Paulo, 1928). Capistrano de Abreu sugere, porém, que a preferência da mulher gentia pelo europeu teria sido por motivo mais social que sexual” (C. de Abreu, Capítulos de história colonial, Rio de Janeiro, 1928)”[XXIII].
Para Capistrano de Abreu, ao qual Freyre adere, a índia dominada, dava preferência ao branco porque desejava que sua prole pertencesse à raça superior[XXIV].
Dentre os estrangeiros, depois dos português, os franceses foram os primeiros a aventurarem-se por terras brasileiras. Sua miscibilidade também deixou marcas. Em fins do século dezesseis, na Bahia e em todos os lugares onde abundassem o pau-de-tinta, davam-se ao luxo de rodearem-se de índias, gerando uma prole mestiça que, ou era reabsorvida pelos indígenas, ou restavam levando uma vida meio selvagem, intermediando entre os nativos e os traficantes franceses e portugueses. Gabriel Soares dá-se conta da situação desses franceses: “se amancebaram em terras onde morreram, sem se quererem tornar para a França, e viveram como gentios com muitas mulheres, dos quaes, e dos que vinham todos annos à Bahia e ao rio de Segerípe em náos da França”[XXV]. Freyre afirma que esses descendentes, louros, alvos e sardos, eram confundidos com os índios tupinambás, cujas fêmeas, em forma poligâmica, tomavam para amancebamentos[XXVI].
Tendo acesso livre às novas terras, muitos outros, aventureiros como os portugueses e franceses, com interesses análogos aos aqui já descritos, desembarcaram nessas terras; e dentre eles, não poucos foram os que decidiram permanecer. A este propósito, em tom exagerado, Freyre libidinosamente imagina a cena da chegada do europeu ao Brasil, e depois escreve: “o europeu saltava em terra escorregando em índia nua [...][XXVII]. Mesmo sendo mais uma frase de efeito do que uma comprovação histórica, tal expressão rege a insinuação da libertinagem que se instalou entre europeus e escravos, nativos ou não, como cita o Padre Jesuíta, José de Anchieta: “Las mujeres andan desnudas y no saben negar a ninguno mas aun ellas mismas acometen y importunan los hombres hallandose com ellos em las redes; porque tienen por honra dormir com los Xianos[XXVIII].

3.  Contribuições e limites da escrava nativa na formação da família patriarcal brasileira

Antes que sofressem a drástica diminuição conhecida por nós, nos dias atuais, a índia legou ao Brasil, não só a sua cor, mais muitos elementos que compuseram o mosaico da cultura brasileira. Ela Enriqueceu a língua de numerosos vocabulários: “arapuca, pereba, sapeca, embatucar, tabaréu, pipoca, tetéia, caipira[XXIX]. Freyre apresenta, ainda, uma série de elementos, característicos da cultura brasileira, de origem ameríndia. Vários são os complexos característicos da moderna cultura brasileira, de origem pura ou nitidamente ameríndia: o da rede, o da mandioca, o do banho de rio, o do caju, o do bicho, o da coivara, o da igara, o do moquém, o da tartaruga, o do bodoque, o do óleo de coco-bravo, o da casa do caboclo, o do milho, o de descansar ou defecar de cócoras, o do cabaço para cuia de farinha, gamela, coco de beber água etc. Outros, de origem principalmente indígena: o do pé descalço, o da muqueca, o da cor encarnada, o da pimenta etc. isto sem falarmos no tabaco e na bola de borracha, de uso universal, e de origem ameríndia, provavelmente brasílica[XXX].
Quando o colonizador percebeu que a capacidade geradora da índia não era suficiente para satisfazer a demanda de capital humano para trabalhar no eito da cana, que o macho nativo era incapaz de adaptar-se ao trabalho sedentário e  a sua experiência de mais de cem anos nas colônias da África, conduziu-o a crer que a melhor solução era trazer “energia moça, tesa, vigorosa do negro, este um verdadeiro contraste com o selvagem americano pela sua extroversão e vivacidade[XXXI].

Outro aspecto, segundo Freyre, que influenciou na decisão do colono em importar mão-de-obra africana foi a limitação da índia em tudo o que se refere aos serviços domésticos, afinal, em geral, na cultura indígena brasileira, era de costume atribuir a estas, atividades agrícolas – desprezadas pelos machos, caçadores, pescadores e guerreiros –, diminuindo, assim, a sua domesticidade. Por isso, Freyre conclui: “Daí não terem as mulheres índias dado tão boas escravas domésticas quanto as africanas, que mais tarde as substituíram vantajosamente como cozinheiras e amas de menino[XXXII]. Por outra parte, preanunciamos: a transição, da exploração da índia para a exploração da negra, deu-se com a diminuição do contingente nativo. O índio, que ainda não tivesse sido assimilado pelo colono branco, para escapar à escravidão, fugiu para o mato, abandonando mulher e filhos, fazendo aumentar a mortalidade infantil. Muitos, dentre os que não fugiam, rebelavam-se, e tais atos eram causa de suplícios e castigos que findavam em reduzir, drasticamente a presença nativa no Brasil[XXXIII]. Quem não fugiu ou não morreu, foi-se diluindo, fortalecendo a constituição da família patriarcal rural brasileira.
Cicero Dias

Capítulo II

A mulher africana, e a sua contribuição, como escrava,para a consolidação da família patriarcal rural brasileira

A experiência acumulada pelo português em terras africanas, serviu, em muito, para que este lograsse adaptar-se ao Brasil; de fato, o português, habituado com a força motriz de suas colônias africanas, tentou propulsar o nativo a imitar o trabalho já desempenhado pelo negro nas colónias portuguesas da Africa. Descobrindo que, o índio – a causa do seu precedente ritmo de vida –, não se adaptava ao serviço do eito; e, que não bastava a monogamia nem a miscigenação com a índia para povoar e lavorar a terra, o colono começou a importar a mão-de-obra africana, que além de pertencer, de modo geral, a uma cultura superior à do ameríndio – pois muitos deles eram já islamizados –, correspondia melhor às necessidades de contínuo esforço físico e de lide com os afazeres domésticos[XXXIV]. Ao invés de Gilberto Freyre, foi Darcy Ribeiro quem definiu, mais precisa e sinteticamente, as proveniências dos negros que foram trazidos para o Brasil: “Os negros do Brasil foram trazidos principalmente da costa ocidental africana. [Fazendo referência a estudos de Artur Ramos e Nina Rodrigues, distingue-os em três grandes grupos] O primeiro, das culturas sudanesas, é representado, principalmente, pelos grupos Yoruba, chamado nagô; pelos Dahomey, designados geralmente como gegê; e pelos Fanti-Ashanti, conhecidos como minas; além de muitos representantes de grupos menores da Gâmbia, Serra Leoa, Costa da malagueta e Costa do Marfim. O segundo grupo trouxe ao Brasil culturas islamizadas, principalmente os Peuhl, os Mandinga e os Haussa, do norte da Nigéria, identificados na Bahia como negros male e no Rio de Janeiro como negros alufá. O terceiro grupo cultural africano era integrado por tribos Bantu, do grupo congo-angolês, provenientes da área hoje compreendida pela Angola e a ‘Contra Costa’, que corresponde ao atual território de Moçambique[XXXV].

Freyre, ao invés, fez questão de se ater à diversificação dos lotes negros vindos para o Brasil para ressaltar o resultado positivo da importação; para realçar a riqueza cultural que estes portaram ao Brasil, ao serem selecionados, segundo a especialidade, para determinados trabalhos. Os Angolas eram Bantos; como os do Congo, eram bons para o trabalho bruto. Os Angolas ‘ladinos’ [os africanos que já falavam o português e já estavam instruídos nos costumes do Brasil] prestavam-se bem para iniciar os ‘boçais’ [negros novos] nos serviços do eito. As Ardas vinham do Daomé. Eram ‘tão fogosos que tudo querem cortar de um só golpe’, como deles dizia Henrique Dias (H. Dias, Carta, 1647). Os Minas, Nagô, da Costa do Ouro. O Daomé e a Costa do Ouro eram os centros de cultura sudanesa. Os da Guiné, bonitos de Corpo, eram excelentes para os serviços domésticos, principalmente mulheres. Os de Cabo Verde eram os melhores e os mais robustos de todos e os mais caros[XXXVI].
Para levar adiante o projeto colonizador, os colonos tiveram que desenvolver uma cultura agrícola baseada no trabalho escravo africano, adaptando, como se fosse sua, a mão-de-obra, a cultura e a técnica do indígena; improvisando, no ventre da nativa e, posteriormente, no ventre da africana, a sementeira da nascente população brasileira. Neste aspecto reside a grande novidade da obra freyriana: o estudo aprofundado das contribuições do elemento negro, principalmente o elemento feminino, vindo para o Brasil como escravo desde os princípios do século dezesseis até meados do século dezenove, quando as leis brasileiras proibiram o trafico negreiro, na formação da cultura e do povo brasileiro[XXXVII].

1.  A razão da eugenia na seleção da escrava doméstica

O negro de cultura mais elevada, segundo Freyre, a cauda da proveniência, destes, de zonas islamizadas; e, plasticamente mais apresentável, foram os que mais facilmente entraram para fazer parte da casa-grande do colono. Idealizado por Gilberto Freyre, o negro protagonista de Casa-grande & Senzala e de Sobrados e Mucambos será, sobretudo, o negro e a negra, domésticos; deixando em um segundo plano, praticamente no anonimato, os negros e negras senzalados, que representaram a maioria numérica de tal população, mas que pouco influenciaram na cultura do povo brasileiro. Fazendo uma análise compressiva de toda a história da escravidão, Gilberto Freyre busca arrematar que:“O Brasil não se limitou a recolher da África a lama de gente preta que fecundou os canaviais e cafezais; que lhes amaciou a terra seca; que lhe completou as riquezas da mancha de massapê. Vieram-lhe da África ‘donas de casa’ para seus colonos sem mulher branca[XXXVIII].
Os escravos domésticos, escolhidos, sobretudo, entre as mulheres, serviam na casa, e findavam, pois – não esqueçamos que o critério plástico era dentre todos, um dos mais observados –, por servirem aos senhores e da casa-grande, como elementos de satisfação sexual e reprodutiva. Tanto é assim que, as negras, mesmo sendo habilidosas e honestas, só gozavam importância, se fossem, eugenicamente, melhores, como podemos ver pelo anúncio do Jornal Diário de Pernambuco: Vende-se uma escrava por preço tão favorável que seria no tempo presente por tal compará-la; a mesma escrava não tem vício algum, e he quitandeira, e só tem contra si huma figura desagradável e he o motivo porque, se vende; na cidade de Olinda na segunda casa sobre o aterro das viças, ou no Recife na rua do Crespo D. 3[XXXIX].
Darcy Ribeiro, para mais além das divergências com Gilberto Freyre, reconhece que a eugenia serviu de critério na hora de acolher a escrava. Ele esclarece sobre a grande quantidade de escravas que chegavam ao Brasil: Tratava-se de negrinhas roubadas que alcançavam altos preços, às vezes o dois mulatões, se fossem graciosas. Eram luxos que se davam os senhores e capatazes. Produziram quantidades de mulatas, que viveram melhores destinos nas casas-grandes. Algumas se converteram em mucamas e até se incorporaram às famílias, como amas de leite, tal como Gilberto Freyre descreve gostosamente[XL].
Freyre não nega que, dentre os escravos, alguns gozavam de preferência, na hora da seleção: os mais claros e mais belos tinham prioridade; daí a maioria ser Minas e Fulas; estes últimos, apelidados de negros de raça branca[XLI]. Remetendo-nos à afirmação de Araripe Junior, Freyre elenca as virtudes da negra mina – pode-se dizer que, também da fula –, que a permitiram ser considerada como excelente companheira: “sadia, engenhosa, sagaz e afetiva[XLII].

2.  As contribuições da escrava negra na diversificação da dieta alimentar

Atuando na cozinha, a escrava doméstica negra logrou inserir os vegetais na dieta, até então, pobre do português, fazendo infiltrar a cultura negra na economia e na vida doméstica do brasileiro, por meio da culinária. A influência na culinária assumiu tamanha proporção que, hoje, os pratos tipicamente brasileiros – como a farofa e o vatapá –, resultam da técnica culinária africana no regime alimentar brasileiro, a contribuição africana afirmou-se principalmente pela introdução do azeite-de-dendê e da pimenta malagueta, tão característico da cozinha baiana; pela introdução do quiabo; pelo maior uso da banana; pela grande variedade da maneira de preparar a galinha e o peixe. Varias comidas portuguesas ou indígenas, foram no Brasil modificadas pela condimentação ou técnica culinária do negro, alguns dos pratos mais caracteristicamente brasileiros são de técnica africana: a farofa, o quibebe, o vatapá[XLIII].
A especialização do escravo no serviço da cozinha chegou a tal ponto que, “reservaram-se sempre dois, às vezes três indivíduos, aos trabalhos de cozinha. De ordinário, grandes pretalhonas; às vezes negros incapazes de serviço bruto, mas sem rival no preparo de quitutes e doces[XLIV].
Tocou às negras escravas adoçar a vida das cidades, fazendo e vendendo, sempre a lucro dos seus senhores, uma infinidade de doces e outras iguarias[XLV].

3.  As contribuições da mãe-preta e o seu papel na criação e educação da criança patriarcal

Grandes prestigiadas pela casa-grande, as mães-pretas gozavam de respeito, sobretudo, depois de alforriadas, e quando chegavam à velhice, “se fazia todas as [suas] vontades: os meninos tomavam-lhe a bênção; os escravos tratavam-nas de senhoras; os boleeiros andavam com elas no carro. E dia de festa, quem as visse anchas e engangentas entre os brancos de casa, havia de supô-las senhoras bem nascidas; nunca ex-escravas vindas das senzalas[XLVI].
Parece, analisando os textos freyreanos, que estas pretas eram por demais idealizadas, mas, ele dá a razão para tal tomada de posição. Dado que a menina branca casou-se jovenzinha, gerando, quase que no mesmo ano, o seu primogênito, eram estas pretas que cuidavam da prole, por causa da inexperiência da jovem senhora. Enquanto criavam os filhos legítimos da casa-grande, isto é, os brancos, elas introduziram nestes, elementos de cujo mundo provinham; modificaram canções de berço portuguesa, corrompendo palavras, “adaptando-as às condições regionais; ligando-as às crenças dos índios e às suas[XLVII].

As histórias portuguesas, na boca das negras velhas, e das amas de leite, muitas destas, contadoras de histórias itinerantes, foram enriquecidas, adornando o imaginário dos que as escutavam, somando às histórias em estilo europeu, histórias de “madrastas, de príncipes, gigantes, princesas, pequenos polegares, mouras encantadas, [às de] bichos confraternizando com pessoas, falando como gente, casando-se[XLVIII]. Porém, a maior contribuição destas pretas mães-de-leite foi, sem dúvida, a corrupção da áspera língua portuguesa[XLIX]. A corrupção começou com a nítida distinção do português falado na senzala, aprendido de ouvido, e do português da casa-grande, aprendido também de ouvido, mas com uma base gramatical. Foi a primeira metamorfose da língua, africanizada, já, no modo de captar a pronúncia da casa-grande.
A dualidade linguística representada pela língua portuguesa da senzala, de um lado, e a da casa-grande, de outro, foi diminuindo quando os senzalados entraram em contato mais estreito com a da casa-grande, por meio das relações entre “a ama negra e o menino branco, da mucama com a sinhá-moça[L]. À ama negra, cabe o grande mérito de ter amolecido a pronúncia; ela fez, muitas vezes com a palavra o mesmo que fez com a comida: machucou-as, tirou-lhe os espinhos, os ossos, as durezas só deixando para a boca do menino branco as sílabas moles. Daí esse português de menino que no norte do Brasil, principalmente, é uma das falas mais doces deste mundo[LI].
Os nomes próprios, recebendo um diminutivo, tornaram-se mais dengosos, amolecidos[LII], tendo, não só os nomes, mas as palavras, em geral, uma pronúncia menos nasal do que a de Portugal.
Foi, ainda, a ama negra quem ensinou ao menino as primeiras palavras de português errado; “ensinou o primeiro ‘padre nosso’, a primeira ‘ave-maria’, o primeiro vôte! ou oxente[LIII]. métodos punitivos –, às ingerências no modo de falar a língua portuguesa, por parte dos meninos e meninas da casa-grande[LIV].

4.  O papel sentimental da mucama

A mucama, foi quem melhor acomodou-se, ao lado da mãe-preta e do malungo, à vida da casa-grande, ao serviço doméstico[LV]. Nela, os sentimentos dos senhores, das senhoras e das sinhás, encontraram acolhida. Freyre chega a queixar-se de que, juntamente com os confessionários, a mucama abafou a história sentimental da casa-grande. Ela ouviu os segredos de suas senhoras, suas paixões, sendo inclusive, a grande alcoviteira de senhoras e sinhazinhas não tão puras e santas como se poderia pensar, sobretudo, se levarmos em conta a grande exclusão social que estas sofreram, rompida somente com o advento das cidades e de suas ruas[LVI].
Benquistas pelas sinhás, as mucamas participavam aos raptos e fugas das sinhazinhas desejosas de casarem-se por amor, ao invés de entregarem-se, aos treze ou quatorze anos, a homem arranjado pelos pais, sistema típico de família e da sociedade patriarcal[LVII]. Negras alcoviteiras que, contribuindo para a felicidade dos néo-esposos, eram dados a estes como dotes de casamento, tratados com uma certa gratidão por eles, e não raro, alforriadas[LVIII].

Capítulo III

Seqüelas das mazelas e da má fama da escrava na mulher miscigenada

No Brasil da época colonial, os negros escravos foram comparados a instrumentos de trabalho e animais: era-lhes negado o status de humanos. Com a abolição, os negros foram relegados ao status de cidadãos de segunda classe, excluídos dos direitos sociais e de cidadania e desconsiderados. O próprio magistério social da Igreja católica, em um país onde a unidade da fé almejava ser o elemento coagulante das diferenças, foi transcurado[LIX]. Eis as sequelas, geradora de mitos e de tabus, em relação à negra.

1.  A escrava na vida sexual da sociedade patriarcal: tabus e mitos

A propósito de doenças, Freyre busca mostrar que algumas, como a sífilis, muito difusa no Brasil colonial, foram sementes depositadas pelo branco da casa-grande na genitália da negra, e dela, promíscua por ser escrava, passaram a outros brancos e chegaram até a senzala, contribuindo, irresponsavelmente, para a deformação da plástica e para a depauperação da energia econômica do mestiço brasileiro. “A contaminação [com a sífilis] em massa verificou-se nas senzalas coloniais. [...] Foram os senhores das casas-grandes que contaminaram de lues as negras das senzalas. Negras tantas vezes entregues virgens [...] a rapazes brancos já podres da sífilis das cidades. Porque por muito tempo dominou no Brasil a crença de que para um sifilítico não há melhor depurativo que uma negrinha virgem[LX].
Com isto, o círculo fechava-se, sifilizando o Brasil colonial, pois, estas mesmas negrinhas eram as responsáveis da precoce maturação sexual do jovem donzelo – menino ou adolescente – dos engenhos.
Além do pai e do filho, os padres e frades também contribuíram para a assunção da negra escrava da cozinha para a cama. No século dezesseis, com exceção dos jesuítas – donzelões intransigentes – padres e frades de ordens maiores mais relassos em grande número se amancebaram com índias e negras[LXI], gerando uma multidão de filhos ilegítimos, muitos destes, criados na casa-grande e nos orfanatos[LXII].
Aspecto molesto da escravidão da negra era, também, a prostituição[LXIII]. Muitos dos cronistas da escravidão dão-lhe muita importância – e, com eles, Freyre –, sublinhando que foi, sempre, prostituição das negras e mulatas exploradas pelos brancos[LXIV].
Se alguém lucrou com a depravação da negra escrava, foram as mulheres brancas. Explorada pelo branco, serviu para a manutenção da virtude casta da mulher branca; virtude confirmada pelo adágio popular brasileiro, registrado por H. Handelmann: “branca para casar, mulata para foder, negra para trabalhar (H. Handelmann, História do Brasil, Rio de Janeiro, 1931); ditado no qual se sente, ao lado do convencionalismo social da superioridade da mulher branca e da inferioridade da preta, a preferência sexual pela mulata[LXV].
Permaneceu útil e agradável a relação sexual entre brancos e negras escravas, afinal, brancas, sempre faltaram; afinal, a doçura, de trato e de sabor da carne, muito influenciou na hora de escolher que tipo de negro entraria na vida social do branco, como testemunhou Oliveira Viana, num trecho recolhido em Casa-grande & Senzala: Oliveira Viana salienta que em Minas Gerais observa-se hoje nos negros ‘delicadeza de traços e relativa beleza’, ao contrário das ‘caricaturas simiescas […] abundantíssimas na região central da baixada fluminense’. […] Foram essas minas e fulas [e identifica a predominância etnia do negro mineiro] – africanas não só de pele mais clara, como mais próximas, em cultura e domesticação dos brancos – as mulheres preferidas, em zonas como Minas Gerais, de colonização escoteira, para amigas, mancebas e caseiras dos brancos. […] Outras terão permanecido escravas, ao mesmo tempo que amantes do senhor branco: ‘preferidas como mucamas e cozinheiras’ (J.F.O. Viana, Evolução do povo brasileiro, São Paulo, 1933)”[LXVI].

Todavia, no Brasil patriarcal, à inferioridade da mulher agregou-se a inferioridade gerada pelo status de escrava, fazendo da cultura brasileira, uma cultura com muitos dos seus elementos mais ricos abafados e proibidos de se expressarem pelo tabu do sexo[LXVII]. Sexo fraco. Belo sexo. Sexo doméstico. Sexo mantido em situação toda artificial para regalo e conveniência do homem, dominador, exclusivo dessa sociedade meio morta que no Brasil, foi a sociedade patriarcal dos três primeiros séculos após a chegada da colonização europeia. Mas, não obstante estes, sem fim, de obstáculos, triunfou, no Brasil, a miscigenação; gerando, nele, um mosaico de cores, modos, modas e sabores, que deram formato à cultura e à sociedade brasileira.

2. A situação da mulher miscigenada depois da abolição da escravatura

Depois da Abolição – crença em relação à igualdade, ao menos do ponto de vista legal entre senhores e escravos –, as raças formadoras da sociedade brasileira se sentiram mais livres para se locomoverem, socialmente. Todos eram livres, ainda se senhores de uma liberdade restringida pela posição social que ocupavam.
Racismo à parte, a sociedade brasileira, miscigenada, foi mais propensa a integrar a mestiça, sobretudo, as mais claras; a integrar a “a mestiça mais clara [que] vestindo se bem, comportando-se como gente fina [tornava-se] branca para todos os efeitos sociais»[LXVIII]; «os mulatos mais claros [pela fama de inteligente e de avantajado sexualmente], que os negros mais escuros[LXIX]. A mulata – não tão bonita quanto simpática –, foi sempre o mais favorecida, herdando da raça negra a alegria e a cordialidade que a ajudaram a gingar e combater os preconceitos sociais e raciais da sociedade republicana nascente. Em contrapartida, a sociedade patriarcal foi acomodando a ancestral senzalada da mestiça, fazendo-a, literalmente, desaparecer; marginalizando-a sempre mais, recluindo-a em mucambos e, depois, em favelas, priva de atenção público-governamental, confirmando, como diz-nos Darcy Ribeiro, “[a] tamanha carga de opressão, preconceito e discriminação antinegro que ela [a situação destes] encerra[LXX].
A negra tinha que se contentar com o triunfo de uma parte de si, aquela herdada pelos mestiços e baseada, muitas vezes, em mitos, como o da tendência priápica da mulata e a dos dotes genitais e sensuais do mulato[LXXI].
Enquanto triunfava, a mulata foi sendo alvo de discriminações e de calúnias por parte de suas rivais, que no século dezenove e início do século vinte, eram as imigrantes italianas e portuguesas, bem como as senhoras brancas decadentes. Era uma forma de discriminação, sobretudo, social, mas, também, racial. Comentando um artigo sobre as Mil e uma noites, de Berkeley Hill, Gilberto Freyre retoma a questão da tendenciosa atração dos brancos pelas pessoas de cor – segundo Berkeley, já presente no mundo greco-romano clássico, turco, persa, hindu –, para fundar a inveja e a calúnia do branca para com a mulher de cor. Para Berkley Hill parece evidente que tanto o homem como a mulher, mas especialmente a mulher, a branca e fina, a fêmea que ele chama ‘tipo racialmente superior, a racially superior type, é suscetível de tornar-se presa da mais forte atração sexual por indivíduo de tipo racialmente mais primitivo’ (O. Berkeley Hill, The Spectator, Londres, 15 de setembro de 1931). [Daí, o ciúme e a inveja sexual do branco, desenfaixado nas seguintes táticas usadas para denegrir a imagem do híbrido] Para contrariar o encanto do macho negro sobre a mulher branca, o branco civilizado teria procurado desenvolver uma aura de ridículo e de grotesco em volta do preto e da sua primitividade e – pode se acrescentar – uma aura de antipatia em torno do mulato, tão acusado de falso ou inconstante na afeição, de incapaz de igualar-se ao branco em verdadeiro cavalheirismo e na autêntica elegância masculina; para não falar da inteligência, no seu sentido mais nobre e com todas as suas qualidades [...], que seriam, para os críticos do mulatismo, raramente atingidos pelos meio-sangues, ou pelos pretos puros[LXXII].
Insatisfeito pela forma repentina, como se deu a Abolição, Gilberto Freyre chama à atenção às formas lights de trabalho e servidão, criadas pela libertação dos escravos; formas nas quais, em detrimento das negras e mulatas, exaltava a nova força trabalhadora estrangeira, revelando, de outra parte, a postura anti-xenofóbica do brasileiro, não excluindo o preconceito de cor, já que, estes novos trabalhadores não provinham das Terras Negras. A procura de substitutos para domésticos de cor, desde a Abolição, evitados por algumas das famílias mais distintas do Rio de Janeiro e de outras cidades da República, não se fixou apenas em italianos, [...] estendeu-se a alemães, espanhóis, portugueses, como indicam os artigos de jornais daquele período de transição mais aguda do trabalho escravo para o livre. Por outro lado, não faltou na época ofertas de estrangeiras para o serviço doméstico nas melhores residências urbanas. [...] anúncios nos quais transparece a valorização da empregada estrangeira para o serviço doméstico e sua exaltação sobre a negra e a mestiça[LXXIII].
Mesmo adaptado ao meio, a negra não encontrou, nele, as condições favoráveis para se desenvolver, pois a escravidão monocultora foi-lhe um limite. A mulata, sim! A negra, a grande massa da senzala, foi relegada aos mucambos e às favelas; nelas foi sendo marginalizada, acomodada. Muitas mulatas, também! Só que este, geralmente menos distante da classe alta e branca, por razões sociais e de cor, encontrou menos rejeição na hora de integrar-se. Ela foi a grande favorecida no jogo de simular grandeza, de simular status, jogo tão típico dos ibéricos e herdado pelos brasileiros, tão presente em uma nação em processo de mudança como aquela dos primeiros anos republicanos, onde o inchaço das cidades permitia, até, certo anonimato. Por esta razão, ainda no período colonial, aos negros, à negra e à mucama, vinha-lhes imposta qualquer forma de vestir ou se adornar que pudesse avizinhá-los aos seus senhores. No Império, chegou-se ao ponto de, nem sequer, dar o direito de irem fazer queixas das mazelas dos seus senhores para com eles à autoridade policial constituída. Estas eram as respostas para os que desejavam viver segundo a situação social que havia alcançado.
No Brasil republicano, a tendência miscigenante acentuou-se ainda mais, e o grande favorecido foi a própria nação. E assim, Freyre se permite afirmar que, no Brasil, “as regiões ou áreas de mestiçamento mais intenso se apresentam as mais fecundas em grandes homens[LXXIV]. A prole mestiça é, hoje, o cartão de visita do Brasil; também, o seu mais conhecido produto de exportação. Eles nos legaram o samba[LXXV]. O carnaval do Império, de possível origem indiana, monótono, de gente grã-fina e de bailes de máscaras[LXXVI], ganhou vida com a consecução da negra e do plebeu em geral[LXXVII]. Hoje ele è, principalmente, popular, degenerando-se, ao menos para o visitador estrangeiro, em carnaval de negras e mulatas semi-nuas, muitas das quais, são capazes de entregarem-se aos estrangeiros, entre os quais, muitos, turistas em busca de sexo – pensando algumas em poder armar-se, ascender socialmente por meio de uma fortuita união –, passando-lhes a mesma impressão que a nativa pôde ter causado no começo da colonização: a de que “davam-se [as índias] aos europeus por um pente ou um caco de espelho[LXXVIII]. À mestiçagem de pé ágil, incorporou-se, tantas vezes, a figura do “feio sim, mas simpático[LXXIX], e da Raimunda, “feia de cara e boa de bunda”, como diz o conhecido adágio popular; características que Freyre disse terem sido herdadas, não da pura e simples quase-democracia racial brasileira[LXXX], mas das condições nas quais essa se deu: os fatores sociais nos quais os mestiços foram gerados e onde muitos deles viveram e vivem. Uma das mais importantes e atualizadas interpretações de dados sobre a desigualdade racial no Brasil está contida no Dossiê Assimetrias Raciais no Brasil: alerta para a elaboração de políticas, da Rede Feminista de Saúde. O documento traça o retrato da situação dos afrodescendentes, utilizando o recorte racial/étnico das Pesquisas Nacionais de Amostra por Domicílio (PNADs), da década de 1990 até o ano de 2001. Numa comparação de vários indicadores, o Dossiê mostra a exclusão a que está submetida a população afrodescendente, com dados alarmantes: A alta taxa de mortalidade infantil entre crianças negras até cinco anos é de 76,1 por mil contra 45,7 por mil de crianças brancas; Em 2001, o rendimento das famílias brancas chegava a ser 2,3 vezes superior (R$ 481,6) ao das famílias afrodescendentes (R$ 205,4); Em 2001, as taxas de analfabetismo para meninas afrodescendentes entre 10 e 14 anos eram de 4,5% enquanto para as meninas brancas de 1,3%; Em 2001, cerca de 47% dos afrodescendentes no Brasil eram enquadrados como pobres e 21,2% indigentes. No caso da população branca, os percentuais são 22,4% de pobres e  8,4% de indigentes. Ao verificar a situação de pobreza de cada um dos Estados da Federação, apurou-se que 12 estados possuem mais de 50% de sua população afrodescendente em situação de pobreza. Desses, nove pertencem à Região Nordeste – Alagoas, Paraíba, Maranhão, Pernambuco, Piauí, Ceará, Bahia, Sergipe e Rio Grande do Norte[LXXXI].
A favela, o sistema educacional deficitário, o sub-emprego, a má nutrição, são alguns dos fatores que impedem a híbrida brasileira, racialmente ou culturalmente miscigenada, de atuar com todas as suas potencialidades, confirmando, mesmo tendo que relativizar, a validade da teoria freyriana da democracia racial, tão rebatida pelos seus críticos.

Conclusão

Através da análise de Casa-grande & Senzala e de Sobrados e Mucambos – e da análise da crítica existente ao pensamento gilbertiano –, podemos observar o quadro da sociedade brasileira, especialmente da família brasileira dos séculos dezesseis ao dezoito, interpretado por Gilberto Freyre. Em nosso trabalho focalizamos simplesmente uma das figuras mais presentes – mas, sem protagonismo – em sua análise sociológica: a mulher, com ênfase à escrava, brasileira, dentro da sociedade patriarcal. Nestas obras, sobre a sociedade patriarcal, Gilberto Freyre recriou a figura magnífica de mulheres escravas, guerreiras, batalhadoras, dentro dos sobrados ou do interior das casas-grandes, as quais exerceram ação decisiva no que tange a adaptação do modo de vida nas regiões tropicais.
Por isso, podemos ratificar, dentro dos limites já expostos do status de escrava da mulher de cor, e do de, quase-escrava, da mulher branca, a hipótese deste trabalho, afinal, não obstante o seu status de escrava, a mulher contribuiu para a formação, não só da família patriarcal, mas, da cultura e da própria sociedade brasileira, dentro daqueles que são os limites do sistema patriarcal, como afirma, em síntese, o próprio Gilberto Freyre[LXXXII]. Todavia, è mister afirmar que, não só historicamente, mas, retoricamente, a pesquisa freyreana è inacabada; è uma tentativa de dar respostas históricas à situação na qual, nos dias atuais – comparada com a mulher branca –, a mestiça encontra-se em situação social desvantajosa.
Já na introdução assistimos à extrema diferenciação e especialização do sexo feminino em ‘belo sexo’, ‘sexo frágil’; e ‘sexo útil’ e ‘sexo parazeiroso’ a ponto de fazer, da mulher, muitas vezes, um ser artificial e mórbido, serva do homem e boneca de carne do marido ou do senhor, que, quando senhora, encontrava na religião e no confessionário os caminhos para a sublimação dos seus sofrimentos psíquicos e, que, quando escrava, encontrava na miscigenação a única oportunidade de fazer ascender a sua descendência.
Por outro lado, devemos reconhecer que a mulher escrava não contribuiu para que fosse mudado o status do gênero feminino no Brasil. Porém, aliou-se a ela, chegando, muitas vezes, à rivalidade, para que fosse vencido os grandes desafios da colonização: a grande extensão territorial e a carência de elemento feminino. Ela foi escrava, como foi também escrava a mulher branca; a única diferença reside no fato que, a escrava tinha dois senhores: o senhor e a senhora. Todavia, concluímos, as escravas lograram ajudar os colonos brancos na adaptação às terras tropicais, jogando um papel decisivo não só na miscigenação, mas na geração da família e da sociedade patriarcal e, se ainda hoje, sofre as consequências do status dos seus ancestrais, não è exclusivamente por razão de cor, mas, sim, pela sua condição social.

Bibliografia

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[I]O sociólogo e escritor Gilberto de Mello Freyre nasceu em Recife-PE, em 15 de março de 1900, em uma família de senhores de engenho. Iniciou seus estudos com professores particulares e, posteriormente, foi viver nos Estados Unidos, onde graduou-se em Artes Liberais pela Universidade de Baylor (Texas). Na Universidade de Columbia (Nova York), obteve o título de mestre em Ciências Políticas, Jurídicas e Sociais com a dissertação Social life in Brazil in the middle of the 19th Century [...]. Depois de um período na Europa, regressou a Pernambuco. Em 1930, novamente na Europa, morando em Portugal, iniciou as pesquisas para o livro Casa-Grande & Senzala, complementadas nos anos seguintes no Brasil. O livro foi publicado pela primeira vez em dezembro de 1933 e tornou-se o centro de sua obra. Além de deixar uma bibliografia extensa em estudos sociológicos e antropológicos, Gilberto Freyre foi também poeta, ficcionista e pintor, realizando exposições no Recife, Rio de Janeiro e São Paulo e publicando livros de poemas [...] e romances [...]. Faleceu em 18 de julho de 1987, [...], no Recife” (F. Araújo, «Gilberto Freyre: um novo Cabral», O povo, Fortaleza, 01de dezembro de 2003).
[II] A primeira obra, “Casa-grande & Senzala, narra o período de história social do Brasil a partir da segunda metade do século XVI, até as primeiras décadas do século XVIII. Esse estudo procura enfocar a ordem social patriarcal, rural, brasileira. O título da obra é expressivo, pois faz realçar a estrutura estável e hierarquizada dessa mesma sociedade: senhor e escravo. Encontra-se, aí, toda a formação da família brasileira sob o regime de economia patriarcal, analisada através de nossos antecedentes socioculturais. Surge, como não poderia deixar de ser, a visão do homem lusitano: aberto à experiências novas, em convivência com outros povos, outras raças e outros climas, dotado de mobilidade e miscibilidade. O estudo do primitivo habitante das terras brasileiras é feito com segurança e detalhes informativos. A presença do africano no Brasil, contribuindo para a nossa miscigenação e o nosso enriquecimento cultural, é estudada de forma precursora, em seus aspectos valorativos do homem negro” (G. M. Navarro Burity, A mulher na obra sociológica de Gilberto Freyre, em: http://prossiga.bvgf.fgf.org.br/frances/critica/livros/a_mulher_obra_gf.htm).
[III] A Segunda obra, Sobrados e Mucambos, “descreve outra fase da nossa história social, correspondente às últimas décadas do século XVIII e à primeira metade do século XIX. Durante esse período, o Brasil passa por profundas modificações socioeconômicas. As atividades comerciais e industriais se intensificam, por força, inclusive, da descoberta de minas. As cidades crescem rapidamente e se modificam, ganhando novo colorido e importância no plano econômico e administrativo. A vinda de D. João VI, rei de Portugal, acelera o ritmo dessas modificações. A paisagem social ganha novo aspecto e surgem inúmeras e novas figuras sociais. É a decadência do patriarcado rural e a consolidação do patriarcado urbano. O Senhor do Sobrado substitui o Senhor da Casa-grande. A senzala alonga-se em dependência de empregado e mucambo. Trata-se, também, nesse período do fenômeno relativo à reeuropeização do Brasil, através do imperialismo industrial da Inglaterra e da França. Principalmente da Inglaterra. É também o período da ascensão social do mulato e do bacharel. Surge, nesse trabalho, com mais vigor, a descrição de tipos humanos bastantes característicos, tais como: o senhor rural, a mulher patriarcal rural e urbana, o padre católico, o filho do senhor do sobrado, o caixeiro português e o brasileiro, o médico, o bacharel e o mulato, os estrangeiros, etc” (G.M. Navarro Burity, A mulher na obra sociológica de Gilberto Freyre, em: http://prossiga.bvgf.fgf.org.br/frances/critica/livros/a_mulher_obra_gf.htm).
[IV] G. Duby – M. Perrot, Storia delle donne in occidente, I-V, Bari, Laterza, 1991.
[V] P. Schmitt Pantel (Curatrice), Storia delle donne in occidente, I, XII.
[VI] Em casa-grande & Senzala em quadrinhos, vem listada, com brevidade e precisão, alguns traços da civilização moura, mourisca e israelita, que se instalou no Brasil através do colonizador português, legado de seu passado, prova de seu longínquo processo de hibridação. Da cultura moura e mourisca: “a doçura no tratamento dos escravos; doçura tradicional entre os mouros. Outro traço, a mulher gorda como tipo ideal de beleza. De igual modo, o gosto pela água corrente [...] os tapetes turcos, as almofadas orientais, as esteiras [...] o emprego dos azulejos nas residências, nos chafarizes e até nas igrejas, a telha mourisca, as gelosias, abalcoados ou muxarabis; as janelas quadriculadas ou em xadrez, e o gosto pelas comidas oleosas, gordas ou ricas em açúcar. Até o cuscuz, hoje tão brasileiro[...] Pode-se atribuir à influência israelita muito do gosto pela atividade mercantil ou comercial, [...] o penhor para o bacharelismo [...] a aversão ao trabalho manual [E conclui:] Compreende-se, assim, que os fundadores da lavoura da cana, no Brasil, mantivessem o preconceito de que ‘trabalho era só para negro” (G. Freyre, Casa-grande & Senzala em quadrinhos, adaptação de Estevão Pinto, desenhos de Ivan Wasth Rodrigues e colorização de Noguchi, Recife, ABE Graph, 2000, 20012 [em cores], 23-26).
[VII] G. Freyre, Casa-grande & Senzala: Formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal, apresentação de Fernando Henrique Cardoso, São Paulo, Global, 1933, 200550, 278.
[VIII] Casa-grande & Senzala, 80-81.
[IX] Os degredados vêm definidos por Freyre como sendo soldados de fortuna, aventureiros, degredados, cristãos-novos – entenda-se: judeus convertidos ao catolicismo –, fugidos à perseguição religiosa, náufragos, traficantes de escravos, papagaios e de madeira (Casa-grande & Senzala, 81).
[X] Casa-grande & Senzala, 83.
[XI] G. Freyre, Sobrados e Mucambos: decadência do patriarcado rural e desenvolvimento do urbano, apresentação de Roberto DaMata, São Paulo, Global, 1936, 200314, 208.
[XII] Casa-grande & Senzala, 432-433.
[XIII] Sobrados e Mucambos, 208.
[XIV] Sobrados e Mucambos, 232.
[XV] D. Martindale, Tipologia e storia della ricerca sociológica, Bologna, Il Mulino, 1968, 143. Semelhante analise vem sendo feita por Beltrão, aplicando, como elemento micro-social, a família, fazendo a distinção entre “família d’altri tempi” – entenda-se, pré-industrial – e, “famiglia d’oggi”, servindo-nos como quadro atualizador da situação familiar. P.C. Beltrão, Sociologia della famiglia contemporanea, Roma, PUG, 1996, 55
[XVI] Casa-grande & Senzala, 229-230.
[XVII] D. Ribeiro em: Casa-grande & Senzala: Formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal, apresentação de Darcy Ribeiro, Rio de Janeiro, Record, 200241, 34. D. Ribeiro, O povo Brasileiro: a formação e o sentido do Brasil, São Paulo, Companhia das Letras, 1995, 20042, 54-56.
[XVIII] Casa-grande & Senzala, 219-224.
[XIX] D. Ribeiro em: Casa-grande & Senzala [Record], 31-32. Posteriormente, Darcy Ribeiro, aprofundaria o argomento: “Na escala da evolução cultural, os povos Tupis davam os primeiros passos da revolução agrícola, [...]. é de assinalar que eles faziam por uma caminho próprio, juntamente com os outros povos da floresta tropical que haviam domesticado diversas plantas, retirando-as da condição selvagem para a de mantimento de seus roçados [...] Além da mandioca, cultivavam o milho, a batata-doce, o cará, o feijão, o amendoim, o tabaco, a abóbora, o urucu, o algodão, o carauá, cuias e cabaças, as pimentas, o abacaxi, o mamão, a erva-mate, o guaraná, entre muitas outras plantas” (O povo brasileiro, 31-32).
[XX] Casa-grande & Senzala, 162.
[XXI] D. Ribeiro em: Casa-grande & Senzala [Record], 32.
[XXII] Casa-grande & Senzala, 160.
[XXIII] Casa-grande & Senzala, 160.
[XXIV]Facilitou a mistura das duas raças a preferência da mulher gentia pelo homem branco: sonhava a nossa índia em ter filhos pertencentes a um povo que considerava superior, pois, segundo as suas idéias, só tinha valor o parentesco pelo lado paterno” (Casa-grande & Senzala em quadrinhos, 08).
[XXV] G.S. De Souza, «Tratado descritivo do Brasil em 1587» ed. de Varnhagen, Revista do instituto histórico e geográfico brasileiro, tomos XIV e LXXVIII, II parte.
[XXVI] Casa-grande & Senzala, 346.
[XXVII] Casa-grande & Senzala, 161.
[XXVIII] J. de Anchieta, Carta a Laynes, em: P. Prado, Retrato do Brasil, São Paulo, 1928. Esta, juntamente com uma outra carta, a – Epistola Rerum Naturaliumnos dão uma as impressões que o ilustre padre Jesuíta teve das terras brasileiras de então. A. Gomes, Epistola Rerum Naturalium do irmão José de Anchieta em: http://www.novomilenio.inf.br/sv/svh024.htm.
[XXIX] Casa-grande & Senzala em quadrinhos, 17-18.
[XXX] Casa-grande & Senzala, 232.
[XXXI] Casa-grande & Senzala, 229.
[XXXII] Casa-grande & Senzala, 164.
[XXXIII]Decorrido, porém, o ‘período heróico’ das atividades jesuíticas, várias missões quase se transformaram em armazéns de mercadorias [...] E os indígenas, consequentemente, passaram a ser verdadeiros escravos. Desse modo, muitos indígenas deram para ganhar o mato [...] Causa de muito despovoamento foram ainda as guerras de repressão. Terríveis eram os suplícios e castigos aplicados aos índios” (Casa-grande & Senzala em quadrinhos, 21).
[XXXIV] Casa-grande & Senzala em quadrinhos, 390-391. D. Ribeiro, O povo Brasileiro, 113-114.
[XXXV] O povo Brasileiro, 113-114.
[XXXVI] Casa-grande & Senzala em quadrinhos, 29.
[XXXVII] Para iluminar aquilo que vem sendo tido como a novidade do pensamento gilbertiano, isto é, a valorização o mulher, por meio do reconhecimento da sua importância na formação da família e da sociedade brasileira, é aconselhável a leitura da carta aos bispos da Igreja católica sobre a colaboração do homem e da mulher na igreja e no mundo. Ali, encontraremos luzes para, além do período da formação da família patriarcal brasileira, atermo-nos à importância da mulher no mundo de hoje. Congregazione per la dottrina della fede, Il ruolo della donna nella chiesa e nel mondo, Città del Vaticano, L’osservatore Romano, 2004, 5-24.
[XXXVIII] Casa-grande & Senzala, 391
[XXXIX] Diário de Pernambuco, Recife, 23 de setembro de 1830.
[XL] O povo Brasileiro, 163.
[XLI]Nina Rodrigues identificou entre os negros do Brasil que conheceu ainda no tempo da escravidão os chamados pretos de raça branca ou Fulas. Não só fula-fulos ou Fulas puros, mas mestiços provenientes da Senegâmbia, Guiné Portuguesa e costas adjacentes. Gente de cor cóbrea avermelhada e cabelos ondeados quase lisos. Os negros desse estoque, considerados, por alguns, superiores aos demais do ponto de vista antropológico, devido à mistura de sangue hamítico e árabe, vieram principalmente para as capitanias, e mais tarde províncias , do norte. [...] Descreve-os Haddon como gente alta, a pele amarela ou avermelhada, o cabelo ondeado, o rosto oval, o nariz proeminente” (Casa-grande & Senzala, 386).
[XLII] Sobrados e Mucambos, 389.
[XLIII] Casa-grande & Senzala, 542.
[XLIV] Casa-grande & Senzala, 542.
[XLV]Mestre Vilhena fala desses doces e dessas iguarias – quitutes feitos em casa e vendidos na rua em cabeça de negras mas em proveito das senhoras – mocotós, vatapás, mingaus, pamonhas, canjicas, acaçás, abarás, arroz-de-coco, feijão-de-coco, angus, pão-de-ló de arroz, pão-de-ló de milho, rolete de cana, queimados, isto é, rebuçados, etc” (Casa-grande & Senzala, 543).
[XLVI] Casa-grande & Senzala, 435.
[XLVII] Casa-grande & Senzala, 410.
[XLVIII] Casa-grande & Senzala, 414.
[XLIX] Seguindo o pensamento de Paulo Freire, podemos afirmar o papel libertador destas negras, que buscavam apresentar às pessoas da casa-grande, o verdadeiro mundo onde estes viviam. De fato, para Freire, aos oprimidos é dada a tarefa de libertar a si e aos opressores. Essa tarefa constitui, para Paulo Freire, num parto doloroso. Desse parto nasce “um homem novo que só é viável na e pela superação da contradição opressores-oprimidos, que á a libertação de todos” (P. Freire, Pedagogia do oprimido, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 198717, 35).
[L] Casa-grande & Senzala, 416.
[LI] Casa-grande & Senzala, 414.
[LII] Por todo estes fatores, climáticos, “As Antônias ficaram Dondons, Toninhas, Totonhas; as Teresas, Tetés; os Manuéis, Nezinhos, Mandus, Manés; os Fanciscos, Chico, Chiquinho, Chico; os Pedros, Pepés; os Albertos, Bebetos, Betinhos. Isto sem falar nas Iaiás, dos Ioiôs, dos Sinhôs, dos Manus, Calus, Bembéns, Dedes, Marocas, Nocas, Nonocas, Gegês” (Casa-grande & Senzala, 414).
[LIII] Casa-grande & Senzala, 419.
[LIV]Os padres-mestres e os capelães de engenho, que, depois da saída dos jesuítas, tornaram-se os responsáveis pela educação dos meninos brasileiros, tentaram reagir contra a onda absorvente da influência negra [...]. Frei Miguel do Sacramento Lopes da Gama, era um dos que se indignavam quando ouvia meninas galantes dizerem mandá, buscá, comê, mi espere, ti faço, mi deixe, muler, coler, le pediu, cadê ele, vigie, espie. E dissesse algum menino em sua presença um pru mode, um oxente, veria o que era beliscão de frade zangado” (Casa-grande & Senzala, 417).
[LV] Sobrados e Mucambos, 626. O povo brasileiro, 163.
[LVI]Sabe-se que enorme prestígio alcançaram as mucamas na vida sentimental das sinhazinhas. Pela negra ou pela mulata de estimação é que a menina se iniciava nos mistérios do amor. […] Histórias de casamento, de namoros, ou outras, menos românticas, mas igualmente sedutoras, eram as mucamas que contavam às sinhazinhas nos doces vagares dos dias de calor, a menina sentada, à mourisca, na esteira de pepiri, cosendo ou fazendo rendas; ou então deitada na rede, os cabelos soltos, a negra catando-lhe piolho, dando-lhe cafuné; ou enxotando-lhe as moscas do rosto com um abano” (Casa-grande & Senzala, 423-424).
[LVII] Sociologia della famiglia contemporânea, 31-32.
[LVIII] Casa-grande & Senzala, 423.
[LIX] Sobre as questões relativas ao desenvolvimento da exposição do pensamento da Igreja em relação ao Matrimonio e à família, remetemos ao material recolhido e comentado em: P. Barberi e D. Tettamanzi, Matrimonio e famiglia nel magistero della Chiesa: I documenti dal Concilio di Firenze a Giovanni Paolo II, Milano, Massimo, 1986.
[LX] Casa-grande & Senzala, 400-401.
[LXI] Casa-grande & Senzala, 531-532.
[LXII]Talvez em nenhum país católico tenham até hoje os filhos ilegítimos, principalmente os de padres, recebido tratamento tão doce; ou crescido, em circunstâncias tão favoráveis. Dos filhos ilegítimos, recolhidos nos inúmeros orfanatos coloniais, observou La Barbinais: ‘Ces sortes d’énfants sont fort considerez dans ce Pais: le Roi les adopte, e les Dames les plus qualifiés se font de honneur de les retirer dans leurs maisons, e de les élever comme leurs propres enfants. Cette charité est bien louable mais elle est suyette à bien des inconvenens” (M.L.G.D. la Barbinais, Nouveau voyage au tour du monde par M. Le Gentil Enrichi de Plusieurs Plais, vues e perspectives des principales villes e ports du Pérou, Chily, Brésil e de la Chine, Amsterdam, 1728). Mais dignos de admiração eram porém os meninos nascidos nas senzalas e criados em casa, misturados aos brancos e legítimos” (Casa-grande & Senzala, 531).
[LXIII] Casa-grande & Senzala, 537.
[LXIV]Admitida uma exceção ou outra, não foram as senhoras de família, mas brancas desqualificadas, que assim exploraram as escravas. Às vezes negrinhas de dez, doze anos já estavam na rua se oferecendo a marinheiros enormes, gangozás ruivos que desembarcavam dos veleiros ingleses e franceses com uma fome doida de mulher. E toda esta excitação dos gigantes louros, bestiais, descarregava-se sobre molequinhas, e além da super-excitação, a sífilis, as doenças do mundo – das quatro partes do mundo; as podridões internacionais do sangue” (Casa-grande & Senzala, 537-538).
[LXV] Casa-grande & Senzala, 72.
[LXVI] Casa-grande & Senzala, 389.
[LXVII] Sobrados e Mucambos, 127-128
[LXVIII] Sobrados e Mucambos, 744.
[LXIX] Sobrados e Mucambos, 748.
[LXX] O povo brasileiro, 224-225.
[LXXI]O bom senso popular, a sabedoria folclórica, tantas vezes cheia de intuições felizes, mas outras vezes convicta de inverdades profundas – a de que a terra é chata e fixa, por exemplo; o bom senso popular e a sabedoria folclórica continuam a acreditar na mulata diabólica, superexcitada por natureza; e não pelas circunstâncias sociais que quase sempre a rodeiam, estimulando-a às aventuras do amor físico como a nenhuma mulher de raça pura –, melhor defendida de tais excitações pela própria fixidez de sua situação social, decorrente da de raça, também mais estável. Por essa superexcitação, verdadeira ou não, de sexo, a mulata é procurada pelos que desejam colher do amor físico os extremos de gozo, e não apenas o comum. [...] A mesma aura cerca a figura do mulato [...] Correm boatos sobre vantagens de ordem física que fariam dele ou do negro o superior do branco puro e louro no ato do amor. Vantagens ainda mais concretas que as de natureza priápica atribuídas à mulata, em comparação com a branca fina, considerada mulher mais fria. Se é certo que Hrdlicka, em estudos de antropologia comparada, atribui ao negro, em geral, superioridade no tamanho dos órgãos sexuais, essa superioridade nem sempre se tem verificado, nas pesquisas regionais empreendidas entre grupos de indivíduos de raça preta comparados com os de raça branca” (Sobrados e Mucambos, 743-744).
[LXXII] Sobrados e Mucambos, 745-746.
[LXXIII] Sobrados e Mucambos, 445-446.
[LXXIV] Sobrados e Mucambos, 809.
[LXXV] Sobrados e Mucambos, 239-240.
[LXXVI] Sobrados e Mucambos, 612.
[LXXVII] Sobrados e Mucambos, 612.
[LXXVIII] Casa-grande & Senzala, 161.
[LXXIX] Sobrados e Mucambos, 791.
[LXXX] Em entrevista concedida em 15 de março de 1980, a Lêda Rivas – originalmente publicada no Diário de Pernambuco, Recife, no dia 15 de março de 1980 –, Gilberto Freyre sintetizou as razões da verdade e relatividade da democracia racial e social do Brasil: “democracia política é relativa [...]. Sempre foi relativa, nunca foi absoluta. [...] democracia plena é uma bela frase [...] de demagogos que não têm responsabilidade intelectual quando se exprimem sobre assuntos políticos. [...] os gregos aclamados como democratas do passado clássico conciliaram sua democracia com a escravidão. Os Estados Unidos, que foram os continuadores dos gregos como exemplo moderno de democracia no século XVIII, conciliaram essa democracia também com a escravidão. Os suiços, que primaram pela democracia pura, até há pouco não permitiam que a mulher votasse. São todos exemplos de democracia consideradas, nas suas expressões mais puras, relativas. [...] o Brasil [...] é o país onde há uma maior aproximação à democracia racial, quer seja no presente ou no passado humano. Eu acho que o brasileiro pode, tranquilamente, ufanar-se de chegar a este ponto. Mas é um país de democracia racial perfeita, pura? Não, de modo algum. Quando fala em democracia racial, você tem que considerar o problema de classe, se mistura tanto ao problema de raça, ao problema de cultura, ao problema de educação. [...] isolar os exemplos de democracia racial das suas circunstâncias políticas, educacionais, culturais e sociais, é quase impossível. [...] é muito difícil você encontrar no Brasil brasileiros que tenham atingido [uma situação igual à dos brancos em certos aspectos...]. Por que? Porque o erro é de base. Porque depois que o Brasil fez o seu festivo e retórico 13 de maio, quem cuidou da educação do negro? Quem cuidou de integrar esse negro liberto à sociedade brasileira? A Igreja? Era inteiramente ausente. A República? Nada. A nova expressão de poder econômico do Brasil que sucedia ao poder patriarcal agrário e que era a urbana industrial? De modo algum. De forma que nós estamos, hoje, com descendentes de negros marginalizados, por nós próprios. Marginalizados na sua condição social. [...]. Não há pura democracia no Brasil, nem racial nem social, nem política, mas, repito, aqui existe muito mais aproximação a uma democracia racial do que em qualquer outra parte do mundo. [...]” (L. Rivas, «O anarquista de Apipucos», Viagem em torno de Gilberto Freyre, [CD-ROM 1], Recife, 2000).
[LXXXI] W. Sant’Anna, Dossiê Assimetrias Raciais no Brasil: alerta para a elaboração de políticas, em: http://www.casadeculturadamulhernegra.org.br/rn_estat. htm.
[LXXXII] “[pois,] O homem foi dentro do patriarcalismo brasileiro, e elemento móvel, militante e renovador; a mulher o conservador, o estável, o de ordem. O homem o elemento de imaginação mais criadora e de contatos mais diversos é, portanto, mais inventor, mais diferenciador, mais perturbador da rotina. A mulher é o elemento mais realista e mais integralizador” (Sobrados e Mucambos, 217). Nesta linha, em artigo sobre a carta aos bispos da Igreja Católica sobre o papel da mulher da Igreja e no mundo, a professora Alba Dini de quanto dito por Freyre, ratificação parcial da nossa hipótese de trabalho: “La riflessione sulla struttura costitutiva differente della persona, considerata non come un astratto neutro, ma nella sua concretezza esistenziale sessuata, non può non estendersi anche ad una rilettura di quanto storicamente acquisito in termini di diritti e di doveri, anch’essi, quindi, non neutri, e alla realistica valutazione dello statuto sociale della donna nel mondo” (A. Dini Martino, em: Il ruolo della donna nella Chiesa e nel mondo, 52)

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