Freyre |
Por detrás de uma minoria numérica
de negros que povoam o Brasil, esconde-se um número muito maior de
afro-brasileiros, mulatos, que como outrora, vivem em condições de vida que os
limitam na hora de desenvolver suas potencialidades. Por constatar este fato,
optamos por aprofundar, nesta dissertação, a questão do negro e dos seus
descendentes, no Brasil. Depois de uma busca bibliográfica, deparamo-nos com
Gilberto Freyre[I], e com a suas obras – Casa-grande e Senzala[II] e, Sobrados e Mucambos[III] –, que compõe duas partes das três
que completam a trilogia na qual ele desenvolveu a sua Introdução à historia da sociedade patriarcal no Brasil.
Consultando estas duas obras, decidimos utilizá-las por duas razões: primeiro,
porque muitas das fontes por nós consultadas sobre a temática remetiam-nos às
obras gilbertianas – mesmo quando era para rebater as posições por ele
defendidas –, e, depois, porque as pesquisas etnográficas e históricas
freyrianas pareciam oferecer-nos os pressupostos para a reconstrução histórica
e sociológica do processo de inserção da mulher escrava na formação da família
patriarcal do Brasil.
Partindo da perspectiva gilbertiana
– perspectiva do homem, senhor e colonizador –, nasceu-nos a ideia de fazer um
estudo socio-histórico da formação da família patriarcal rural brasileira e do
papel da mulher escrava na sua formação, buscando compreender as razões do
atual, paulatino e inacabado processo de integração da mulher negra e
miscigenada na sociedade brasileira. Logo, a dissertação tratará da família
patriarcal brasileira, havendo como elemento basilar as mulheres, a saber: a
índia, a escrava africana e a mulher de origem europeia, principalmente, lusa.
A finalidade será a de abrir um novo horizonte de descrição e de interpretação
dos fatos históricos conhecidos: a historia da mulher brasileira como categoria
descritiva e interpretativa no desenrolar da historia do Brasil como um
inteiro; da sua organização social e da sua cultura. É, em definitivo, uma
aplicação, em contexto brasileiro, da abordagem de Georges Duby e Michelle
Perrot, na Storia delle donne in
occidente[IV][4], que
contempla os fatos históricos não somente da ótica das grandes datas e dos
grandes eventos, mas, também, como dilatação progressiva do campo histórico “às práticas quotidianas, aos comportamentos
habituais, à mentalidade comum”[V]; trazendo, assim, uma
inovação histórica para a antropologia e, logo, para a sociologia, mais
especificamente, a microsociologia. Enfim, a nossa hipótese será que, segundo
Gilberto, não obstante a mulher de cor – negra ou ameríndia – gozasse do status
de escrava, jogou um papel indispensavelmente ativo na formação da família
patriarcal rural brasileira.
A dissertação foi dividida em três
capítulos, que seguem, progressivamente, uma ordem histórica: a primeira, na
qual analisamos o processo de inserção da mulher nativa na formação da família
patriarcal e o primado que esta assumiu em tal processo, sobretudo, como matriz
reprodutora; e as razões pelas quais se deu início a importação da mulher
africana. Na segunda parte, a análise foi
centrada sobre a mulher negra e sobre sua contribuição para a consolidação da
família patriarcal, ressaltando os logros na inserção de elementos da sua
cultura na geração de uma cultura brasileira. A terceira, e última parte, será dedicada ao estudo das mazelas,
por meio da exploração sexual, que as negras e as suas afrodescendentes
sofreram, e sofrem, enquanto vem inserindo-se na sociedade pós-escravocrata.
Por fim, as partes foram precedidas de uma introdução, e enfeixadas por uma
conclusão, onde foi analisada a hipótese sustentada por Gilberto Freyre, sobre
o papel ativo da mulher escrava na formação da família patriarcal brasileira.
Optamos por haver como fio condutor
a perspectiva gilbertiana. Todavia, conscientes das inúmeras críticas que o seu
pensamento reclama, permearemos a dissertação, ancorando-nos, principalmente,
nas críticas do antropólogo brasileiro, Darcy Ribeiro, autoridade reconhecida
em tudo o que tange sobretudo, mas, não só, ao indigenismo brasileiro. Em
relação à metodologia científica, fizemos uma opção: quando citarmos
diretamente as fontes, conservarmo-las em original, seja em português mais
arcaico, seja em outras língua. Enfim, limitaremos a nosso período histórico de
análise aos séculos que vão do século XVI ao XVIII, quando, segundo Gilberto
Freyre, tal família formou-se e consolidou-se, no Brasil.
Cena - Debret |
Capítulo I
A escravidão da mulher nativa e o seu primado na formação da sociedade patriarcal rural brasileira
O português, no Brasil Colonial, foi
um povo liberal, inclusive, na sua vida sexual; e o foi por necessidade. Freyre
insiste, por exemplo, que a liberalidade para com o estrangeiro na América
portuguesa do século dezesseis, remonta às raízes mesmas da civilização
portuguesa, outrora ocupada por romanos, alanos, vândalos, suevos, visigodos e mouros[VI]. Por outra parte, vem-nos
esclarecida a razão de sua liberalidade sexual: “Não se trata de nenhuma virtude descida do céu sobre os portugueses mas
o resultado quase químico da formação cosmopolita e heterogênea desse povo
marítimo”[VII]. Segundo Gilberto Freyre, no Brasil, o
português só fez dar continuidade à miscigenação presente desde o início da sua
formação.
Nos primórdios da colonização do
Brasil, além do indígena, o Brasil foi povoado por dois tipos de colonizadores
portugueses: aqueles agrupados num núcleo familiar, e os degredados; famílias
com estrutura patriarcal aglutinada na casa-grande, baseada no trabalho
agrícola, com pouca presença feminina[VIII]; degredados, exilados nas novas terras por lei
imperial, que vigorou durante os séculos dezesseis e dezessete, acusados de
irregularidades ou excesso na vida sexual, e de heresia[IX].
Gilberto Freire afirma que o
degredado pouco influenciou na plástica do brasileiro; mas conclui dando-nos a
dimensão positiva do exílio dessa gente, sobretudo, àqueles com forte compulsão
sexual, que, saciando suas taras, gerou a nação brasileira: “A ermos tão mal povoados, salpicados,
apenas, de gente branca, convinham super-excitados sexuais que aqui exercessem
uma atividade genésica acima da comum, proveitosa talvez, nos seus resultados,
aos interesses políticos e econômicos de Portugal no Brasil”[X].
Um dos aspectos característicos do
regime patriarcal rural brasileiro – sem excluir os aspectos de ordem econômica
– foi a distinção tão acentuada que o homem dá à mulher branca, tornando-a tão
diferente dele, quanto possível. Nele, o homem sempre foi o sexo forte e nobre,
e a mulher branca o sexo fraco e belo. Assim que, “a extrema diferenciação e especialização do sexo feminino em ‘belo
sexo’ e ‘sexo frágil’, fez da mulher do senhor de engenho e da fazenda, e da
iaiá de sobrado, um ser artificial, mórbido. Uma doente, deformada no corpo
para ser a serva do homem”[XI]. Durante todo o período patriarcal
encontramos mulheres patriarcais franzinas, que se entregavam, o dia todo, na
tarefa de coser, tomar o ponto dos doces, embalar-se nas redes, gritar para as
molecas, brincar com os periquitos, espiar os homens pelas brochas das portas,
fumar cigarro ou charuto, parir e morrer de parto.
“Um
fato triste é que muitas noivas de quinze anos morriam logo depois de casadas.
Meninas. [...] Morriam de parto [...] Sem tempo nem de criarem o primeiro
filho. Sem provarem o gosto de ninar uma criança de verdade em vez dos bebês de
pano, feitos pelas negras de restos de vestidos. Ficava então o menino para as
mucamas criarem”[XII].
Se, aos homens lhes eram concedidos
todas as liberdades, inclusive as sexuais; tudo conspirava no sentido de levar
a mulher branca a ser “serva do homem e a
boneca de carne do marido”[XIII].
Em geral, a mulher branca, no regime
patriarcal, era um elemento exclusivamente doméstico, que, quando menina, vivia
em um regime de quase-confinamento. Os pais preocupavam-se em casar cedo as
suas filhas; casamentos eram comuns entre as jovens de 13, 14 e 15 anos e eram
eles que escolhiam o marido para elas. Estas meninas casavam-se cedo e iam
viver numa nova casa-grande, com as mesmas atividades femininas: o preparo de
quitutes para o marido, o cuidado com os filhos; envelheciam rapidamente.
Ficavam reduzidas a simples máquinas de ter filhos, o que consumia a mocidade e
a própria vida. “Criaturinhas
fracas do peito, meninas românticas de olhos arregalados, de 14 e 15 anos que
os bacharéis de 25 e de 30 nomeavam passando de cartola e bengala pelas
calçadas dos sobrados, voltados para as varandas como para nichos ou altares. O
outro, as mães de 18 e 20 anos, mulheres gordas, mas de uma gordura mole e
fôfa, gordura de doença, mulheres que morriam velhas aos 25 anos, no oitavo ou
nono parto”[XIV].
Sendo estas a caracterização geral
da mulher branca brasileira na família patriarcal, como era tida a mulher escrava
numa sociedade gemeischaft, caracterizada pela relação social baseada
dominantemente na amizade, na parentela e nas relações de vizinhança; cuja
instituição central era a lei da família e o grupo de parentela amplo; cuja
forma característica de riqueza é a propriedade fundiária; sedimentada nas leis
da família?[XV]
Cicero Dias - casa-grande & senzala |
1. Os colonos e a instauração da escravidão nativa
Na colonização do Brasil, o
português contou com o índio, o primeiro a rasgar a mata e a terra, e com a
índia, para dar início à geração do povo brasileiro. Baseando-se no primeiro
documento redigido em terras brasileiras, a Carta escrita por Pero Vaz de
Caminha e destinada a narrar ao soberano português as coisas vistas e
apoderadas depois que as naus portuguesas ancoraram em terra firme, em 1500, em
terras brasileiras, Gilberto estampa as impressões do português em relação ao
nativo: “e o português que primeiro os surpreendeu, ingénuos e nus, nas praias
descobertas por Pedràlvares, fala com entusiasmo da robustez, da saúde e da
beleza desses [...]. Robustez e saúde que não esquece de associar ao sistema de
vida e de alimentação seguido pelos selvagens [...]. ‘Elles non lauram, nem
criam, nem haa aquy boy, nem vaca, nem cabra, nem ovelha, nem galinha, nem
outra nenhuma alimarea, que costumada seja aho viver dos homeens; nem comem
senom dese inhame, que aquy haa muyto, e desa semente, e fruitos que ha terra,
e has arvores de sy lançam: e com isto andam taaes, e tam rijos, e tam nedeos,
que ho non somonós tanto com quanto trigo, e legumes comernos’ (P.V. de Caminha, Carta, em: M.A. de Casal,
Corografia brasileira, Rio de
Janeiro, 18332)”[XVI].
Darcy Ribeiro - Antropòlogo |
Assunto como escravo, o índio,
insatisfeito, fugiu, refugiando-se nas aldeias e missões jesuíticas; posteriormente,
ou fugiu da costa em direção ao sertão, ou via-se capturado, escravizado e
assassinado pela tirania do trabalho escravocrata, monótono e incessante do
engenho. Sobre o papel dos Jesuítas na domesticação do indígena, Darcy Ribeiro
ratifica, radicalizando, a posição de Freyre: “Onde
Gilberto Freyre nos dá realmente um painel expressivo, onde ele indaga com
maior liberdade e isenção [e segui louvando o empreendimento] é no exame do
papel desenraizador do Jesuíta. […] o jesuíta teria desenvolvido toda uma
pedagogia fundada na utilização das crianças como agentes de mudança cultural.
[…] Não queriam a destruição do indígena [comenta Ribeiro]. Exaustos, porém, de
remar contra a correnteza da história, os jesuítas teriam acabado por assumir o
papel menos glorioso de amansadores de índios. Assim é que foram os próprios
inacianos, afinal, os agentes mais eficazes do engajamento da indiada. Descida
por eles dos ermos onde viviam livres, mas inúteis, para os trabalhos das obras
oficiais, para a escravidão na mão dos colonos e, principalmente, para as
próprias fazendas-missões da Companhia. Para Gilberto Freyre os padres teriam
se deixado escorregar para as delícias do escravatismo ao mesmo tempo que para
os prazeres do comércio. Contribuíram também concentrando os índios, para
facilitar as epidemias que, somadas à escravidão, provocaram o despovoamento no
Brasil de sua gente autóctone”[XVII].
Para Darcy Ribeiro, os Jesuítas
teriam sidos os grandes responsáveis da diminuição do contingente nativo; já,
para Freyre, o grande exterminador do índio foi a cultura canavieira, que
chamou para si a escravidão do nativo e da nativa, acostumados com um ritmo de vida silvícola[XVIII].
Em observação à afirmação
gilbertiana do caráter silvícola do nativo brasileiro, Darcy Ribeiro esboçou
uma pertinente crítica à concepção freyriana do nativo brasileiro: “A apreciação que se lê em CG&S [casa-grande & Senzala]do grau de
desenvolvimento das culturas tribais brasileiras é nada menos que grosseira
[...]. Para GF [Gilberto Freyre] o índio é o silvícola nômade, ‘de cultura
ainda não agrícola, apesar das lavouras de mandioca, cará, milho, jerimum,
mamão, praticada pelas tribos menos atrasadas’. Só nesta lista há fatos
suficientes para falar de uma agricultura tropical, desenvolvida pelo indígena
[...]. A verdade meio melancólica, porém, é que, apesar destas deficiências
evidentes no varejo, no atacado, CG&S dá uma imagem melhor da herança
indígena do que quanto se podia ler nos textos disponíveis de então”[XIX].
Se, afirma Gilberto Freyre, a
cultura indígena sobreviveu ao regime escravocrata imposto pelo engenho, foi
por meio da índia, que, para Freyre, foi a mãe do povo brasileiro: “À mulher gentia temos que considerá-la não
só a base física da família brasileira, aquela em que se apoiou,
robustecendo-se e multiplicando-se, a energia de reduzido número de povoadores
europeus, mas valioso elemento de cultura, pelo menos material, na formação
brasileira”[XX].
Neste ponto, Darcy Ribeiro reconhece
que, “continua sendo valiosa as apreciações
de Gilberto Freyre sobre o papel da mulher indígena como matriz genética e como
transmissora de fundamentais elementos de cultura”[XXI].
2. O colono e a nativa: relações sexuais e de família
Na índia, os primeiros colonos, os
pais dos brasileiros, em sua grande maioria homens que ainda não havia
constituído uma família, encontraram o modo de compensar a falta de mulher
branca, de aumentar a população e de contentar a sua avassaladora libido. Mesmo
assim, Gilberto Freyre comenta a arguta observação de Southey: “o
sistema português se revelara mais feliz do que nenhum outro no tocante às
relações do europeu com as raças de cor; mas salientando que semelhante sistema
fora antes ‘filho da necessidade’ do que de deliberada orientação sexual ou
política. (R. Southey, History of Brazil, Londres, 1810-1819)
[e segue, recolhendo uma afirmação de Henry Koster (H. Koster, Travels in
Brazil, Londres, 1816), citado por Manuel Bonfim] Esta vantagem [...] provem mais da necessidade que de um sentimento de
justiça (M. Bonfim, O Brasil na América, 1929)”[XXII].
De outro lado, ele aproveita para
aclarar, embebendo-se em Paulo Prado, que a índia cruzou-se com o branco, não
pela superioridade priápica deste, como insinuava Varnhagen, mas, sim, por
motivo social, como sustentava Capistrano de Abreu: “Paulo
Prado foi surpreender ‘o severo Varnhagen’, insinuando que, por sua vez, a
mulher indígena, ‘mais sensual que o homem como em todos os povos primitivos
[...] em seus amores dava preferência ao europeu, talvez por considerações
priápicas (P. Prado, Retrato do Brasil, São Paulo, 1928). Capistrano de Abreu sugere, porém, que a
preferência da mulher gentia pelo europeu teria sido por motivo mais social que
sexual” (C. de Abreu, Capítulos de história colonial, Rio de
Janeiro, 1928)”[XXIII].
Para Capistrano de Abreu, ao qual
Freyre adere, a índia dominada, dava preferência ao branco porque desejava que
sua prole pertencesse à raça superior[XXIV].
Dentre os estrangeiros, depois dos
português, os franceses foram os primeiros a aventurarem-se por terras
brasileiras. Sua miscibilidade também deixou marcas. Em fins do século
dezesseis, na Bahia e em todos os lugares onde abundassem o pau-de-tinta,
davam-se ao luxo de rodearem-se de índias, gerando uma prole mestiça que, ou
era reabsorvida pelos indígenas, ou restavam levando uma vida meio selvagem,
intermediando entre os nativos e os traficantes franceses e portugueses.
Gabriel Soares dá-se conta da situação desses franceses: “se amancebaram em terras onde morreram, sem se quererem tornar para a
França, e viveram como gentios com muitas mulheres, dos quaes, e dos que vinham
todos annos à Bahia e ao rio de Segerípe em náos da França”[XXV]. Freyre afirma que esses
descendentes, louros, alvos e sardos, eram confundidos com os índios
tupinambás, cujas fêmeas, em forma poligâmica, tomavam para amancebamentos[XXVI].
Tendo acesso livre às novas terras,
muitos outros, aventureiros como os portugueses e franceses, com interesses
análogos aos aqui já descritos, desembarcaram nessas terras; e dentre eles, não
poucos foram os que decidiram permanecer. A este propósito, em tom exagerado,
Freyre libidinosamente imagina a cena da chegada do europeu ao Brasil, e depois
escreve: “o europeu saltava em terra
escorregando em índia nua [...]”[XXVII]. Mesmo sendo mais uma frase de
efeito do que uma comprovação histórica, tal expressão rege a insinuação da
libertinagem que se instalou entre europeus e escravos, nativos ou não, como
cita o Padre Jesuíta, José de Anchieta: “Las
mujeres andan desnudas y no saben negar a ninguno mas aun ellas mismas acometen
y importunan los hombres hallandose com ellos em las redes; porque tienen por
honra dormir com los Xianos”[XXVIII].
3. Contribuições e limites da escrava nativa na formação da família patriarcal brasileira
Antes que sofressem a drástica
diminuição conhecida por nós, nos dias atuais, a índia legou ao Brasil, não só
a sua cor, mais muitos elementos que compuseram o mosaico da cultura
brasileira. Ela Enriqueceu a língua de numerosos vocabulários: “arapuca, pereba, sapeca, embatucar, tabaréu,
pipoca, tetéia, caipira”[XXIX]. Freyre apresenta, ainda, uma série
de elementos, característicos da cultura brasileira, de origem ameríndia. “Vários
são os complexos característicos da moderna cultura brasileira, de origem pura
ou nitidamente ameríndia: o da rede, o da mandioca, o do banho de rio, o do
caju, o do bicho, o da coivara, o da igara, o do moquém, o da tartaruga, o do
bodoque, o do óleo de coco-bravo, o da casa do caboclo, o do milho, o de
descansar ou defecar de cócoras, o do cabaço para cuia de farinha, gamela, coco
de beber água etc. Outros, de origem principalmente indígena: o do pé descalço,
o da muqueca, o da cor encarnada, o da pimenta etc. isto sem falarmos no tabaco
e na bola de borracha, de uso universal, e de origem ameríndia, provavelmente
brasílica”[XXX].
Quando o colonizador percebeu que a
capacidade geradora da índia não era suficiente para satisfazer a demanda de
capital humano para trabalhar no eito da cana, que o macho nativo era incapaz
de adaptar-se ao trabalho sedentário e a sua experiência de mais de cem
anos nas colônias da África, conduziu-o a crer que a melhor solução era trazer
“energia moça, tesa, vigorosa do negro,
este um verdadeiro contraste com o selvagem americano pela sua extroversão e vivacidade”[XXXI].
Outro aspecto, segundo Freyre, que
influenciou na decisão do colono em importar mão-de-obra africana foi a
limitação da índia em tudo o que se refere aos serviços domésticos, afinal, em
geral, na cultura indígena brasileira, era de costume atribuir a estas,
atividades agrícolas – desprezadas pelos machos, caçadores, pescadores e guerreiros
–, diminuindo, assim, a sua domesticidade. Por isso, Freyre conclui: “Daí não terem as mulheres índias dado tão
boas escravas domésticas quanto as africanas, que mais tarde as substituíram
vantajosamente como cozinheiras e amas de menino”[XXXII]. Por outra parte, preanunciamos: a
transição, da exploração da índia para a exploração da negra, deu-se com a
diminuição do contingente nativo. O índio, que ainda não tivesse sido
assimilado pelo colono branco, para escapar à escravidão, fugiu para o mato,
abandonando mulher e filhos, fazendo aumentar a mortalidade infantil. Muitos,
dentre os que não fugiam, rebelavam-se, e tais atos eram causa de suplícios e
castigos que findavam em reduzir, drasticamente a presença nativa no Brasil[XXXIII]. Quem não fugiu ou não morreu, foi-se
diluindo, fortalecendo a constituição da família patriarcal rural brasileira.
Cicero Dias |
Capítulo II
A mulher africana, e a sua contribuição, como escrava,para a consolidação da família patriarcal rural brasileira
A experiência acumulada pelo português em
terras africanas, serviu, em muito, para que este lograsse adaptar-se ao
Brasil; de fato, o português, habituado com a força motriz de suas colônias
africanas, tentou propulsar o nativo a imitar o trabalho já desempenhado pelo
negro nas colónias portuguesas da Africa. Descobrindo que, o índio – a causa do seu
precedente ritmo de vida –, não se adaptava ao serviço do eito; e, que não
bastava a monogamia nem a miscigenação com a índia para povoar e lavorar a
terra, o colono começou a importar a mão-de-obra africana, que além de
pertencer, de modo geral, a uma cultura superior à do ameríndio – pois muitos
deles eram já islamizados –, correspondia melhor às necessidades de contínuo
esforço físico e de lide com os afazeres domésticos[XXXIV]. Ao invés de Gilberto Freyre, foi
Darcy Ribeiro quem definiu, mais precisa e sinteticamente, as proveniências dos
negros que foram trazidos para o Brasil: “Os
negros do Brasil foram trazidos principalmente da costa ocidental africana.
[Fazendo referência a estudos de Artur Ramos e Nina Rodrigues, distingue-os em
três grandes grupos] O primeiro, das culturas sudanesas, é representado, principalmente,
pelos grupos Yoruba, chamado nagô; pelos Dahomey, designados geralmente como gegê;
e pelos Fanti-Ashanti, conhecidos como minas; além de muitos representantes de
grupos menores da Gâmbia, Serra Leoa, Costa da malagueta e Costa do Marfim. O
segundo grupo trouxe ao Brasil culturas islamizadas, principalmente os Peuhl,
os Mandinga e os Haussa, do norte da Nigéria, identificados na Bahia como
negros male e no Rio de Janeiro como negros alufá. O terceiro grupo cultural
africano era integrado por tribos Bantu, do grupo congo-angolês, provenientes
da área hoje compreendida pela Angola e a ‘Contra Costa’, que corresponde ao
atual território de Moçambique”[XXXV].
Freyre, ao invés, fez questão de se
ater à diversificação dos lotes negros vindos para o Brasil para ressaltar o
resultado positivo da importação; para realçar a riqueza cultural que estes
portaram ao Brasil, ao serem selecionados, segundo a especialidade, para
determinados trabalhos. “Os Angolas
eram Bantos; como os do Congo, eram bons para o trabalho bruto. Os Angolas
‘ladinos’ [os africanos que já falavam o português e já estavam instruídos nos
costumes do Brasil] prestavam-se bem para iniciar os ‘boçais’ [negros novos]
nos serviços do eito. As Ardas vinham do Daomé. Eram ‘tão fogosos que tudo querem
cortar de um só golpe’, como deles dizia Henrique Dias (H. Dias, Carta, 1647). Os Minas, Nagô,
da Costa do Ouro. O Daomé e a Costa do Ouro eram os centros de cultura
sudanesa. Os da Guiné, bonitos de Corpo, eram excelentes para os serviços
domésticos, principalmente mulheres. Os de Cabo Verde eram os melhores e os
mais robustos de todos e os mais caros”[XXXVI].
Para levar adiante o projeto
colonizador, os colonos tiveram que desenvolver uma cultura agrícola baseada no
trabalho escravo africano, adaptando, como se fosse sua, a mão-de-obra, a
cultura e a técnica do indígena; improvisando, no ventre da nativa e,
posteriormente, no ventre da africana, a sementeira da nascente população
brasileira. Neste aspecto reside a grande novidade da obra freyriana: o estudo
aprofundado das contribuições do elemento negro, principalmente o elemento
feminino, vindo para o Brasil como escravo desde os princípios do século
dezesseis até meados do século dezenove, quando as leis brasileiras proibiram o
trafico negreiro, na formação da cultura e do povo brasileiro[XXXVII].
1. A
razão da eugenia na seleção da escrava doméstica
O negro de cultura mais elevada,
segundo Freyre, a cauda da proveniência, destes, de zonas islamizadas; e,
plasticamente mais apresentável, foram os que mais facilmente entraram para
fazer parte da casa-grande do colono. Idealizado por Gilberto Freyre, o negro
protagonista de Casa-grande & Senzala
e de Sobrados e Mucambos será,
sobretudo, o negro e a negra, domésticos; deixando em um segundo plano,
praticamente no anonimato, os negros e negras senzalados, que representaram a
maioria numérica de tal população, mas que pouco influenciaram na cultura do
povo brasileiro. Fazendo uma análise compressiva de toda a história da
escravidão, Gilberto Freyre busca arrematar que:“O Brasil não se limitou a recolher da África a lama de gente preta que
fecundou os canaviais e cafezais; que lhes amaciou a terra seca; que lhe
completou as riquezas da mancha de massapê. Vieram-lhe da África ‘donas de
casa’ para seus colonos sem mulher branca”[XXXVIII].
Os escravos domésticos, escolhidos,
sobretudo, entre as mulheres, serviam na casa, e findavam, pois – não
esqueçamos que o critério plástico era dentre todos, um dos mais observados –,
por servirem aos senhores e da casa-grande, como elementos de satisfação sexual
e reprodutiva. Tanto é assim que, as negras, mesmo sendo habilidosas e
honestas, só gozavam importância, se fossem, eugenicamente, melhores, como
podemos ver pelo anúncio do Jornal Diário
de Pernambuco: “Vende-se
uma escrava por preço tão favorável que seria no tempo presente por tal
compará-la; a mesma escrava não tem vício algum, e he quitandeira, e só tem
contra si huma figura desagradável e he o motivo porque, se vende; na cidade de
Olinda na segunda casa sobre o aterro das viças, ou no Recife na rua do Crespo
D. 3”[XXXIX].
Darcy Ribeiro, para mais além das
divergências com Gilberto Freyre, reconhece que a eugenia serviu de critério na
hora de acolher a escrava. Ele esclarece sobre a grande quantidade de escravas
que chegavam ao Brasil: “Tratava-se
de negrinhas roubadas que alcançavam altos preços, às vezes o dois mulatões, se
fossem graciosas. Eram luxos que se davam os senhores e capatazes. Produziram
quantidades de mulatas, que viveram melhores destinos nas casas-grandes.
Algumas se converteram em mucamas e até se incorporaram às famílias, como amas
de leite, tal como Gilberto Freyre descreve gostosamente”[XL].
Freyre não nega que, dentre os
escravos, alguns gozavam de preferência, na hora da seleção: os mais claros e
mais belos tinham prioridade; daí a maioria ser Minas e Fulas; estes últimos,
apelidados de negros de raça branca[XLI]. Remetendo-nos à afirmação de
Araripe Junior, Freyre elenca as virtudes da negra mina – pode-se dizer que,
também da fula –, que a permitiram ser considerada como excelente companheira:
“sadia, engenhosa, sagaz e afetiva”[XLII].
2. As contribuições da escrava negra na diversificação da dieta alimentar
Atuando na cozinha, a escrava
doméstica negra logrou inserir os vegetais na dieta, até então, pobre do português,
fazendo infiltrar a cultura negra na economia e na vida doméstica do
brasileiro, por meio da culinária. A influência na
culinária assumiu tamanha proporção que, hoje, os pratos tipicamente
brasileiros – como a farofa e o vatapá –, resultam da técnica culinária
africana “no regime alimentar brasileiro, a
contribuição africana afirmou-se principalmente pela introdução do
azeite-de-dendê e da pimenta malagueta, tão característico da cozinha baiana;
pela introdução do quiabo; pelo maior uso da banana; pela grande variedade da
maneira de preparar a galinha e o peixe. Varias comidas portuguesas ou
indígenas, foram no Brasil modificadas pela condimentação ou técnica culinária
do negro, alguns dos pratos mais caracteristicamente brasileiros são de técnica
africana: a farofa, o quibebe, o vatapá”[XLIII].
A especialização do escravo no
serviço da cozinha chegou a tal ponto que, “reservaram-se
sempre dois, às vezes três indivíduos, aos trabalhos de cozinha. De ordinário,
grandes pretalhonas; às vezes negros incapazes de serviço bruto, mas sem rival
no preparo de quitutes e doces”[XLIV].
Tocou às negras escravas adoçar a
vida das cidades, fazendo e vendendo, sempre a lucro dos seus senhores, uma
infinidade de doces e outras iguarias[XLV].
3. As contribuições da mãe-preta e o seu papel na criação e educação da criança patriarcal
Grandes prestigiadas pela
casa-grande, as mães-pretas gozavam de respeito, sobretudo, depois de
alforriadas, e quando chegavam à velhice, “se fazia todas as [suas] vontades: os
meninos tomavam-lhe a bênção; os escravos tratavam-nas de senhoras; os
boleeiros andavam com elas no carro. E dia de festa, quem as visse anchas e
engangentas entre os brancos de casa, havia de supô-las senhoras bem nascidas;
nunca ex-escravas vindas das senzalas”[XLVI].
Parece, analisando os textos freyreanos,
que estas pretas eram por demais idealizadas, mas, ele dá a razão para tal
tomada de posição. Dado que a menina branca casou-se jovenzinha, gerando, quase
que no mesmo ano, o seu primogênito, eram estas pretas que cuidavam da prole,
por causa da inexperiência da jovem senhora. Enquanto criavam os filhos
legítimos da casa-grande, isto é, os brancos, elas introduziram nestes,
elementos de cujo mundo provinham; modificaram canções de berço portuguesa,
corrompendo palavras, “adaptando-as às
condições regionais; ligando-as às crenças dos índios e às suas”[XLVII].
As histórias portuguesas, na boca
das negras velhas, e das amas de leite, muitas destas, contadoras de histórias
itinerantes, foram enriquecidas, adornando o imaginário dos que as escutavam,
somando às histórias em estilo europeu, histórias de “madrastas, de príncipes, gigantes, princesas, pequenos polegares,
mouras encantadas, [às de] bichos
confraternizando com pessoas, falando como gente, casando-se”[XLVIII]. Porém, a maior contribuição destas
pretas mães-de-leite foi, sem dúvida, a corrupção da áspera língua portuguesa[XLIX]. A corrupção começou com a nítida
distinção do português falado na senzala, aprendido de ouvido, e do português
da casa-grande, aprendido também de ouvido, mas com uma base gramatical. Foi a
primeira metamorfose da língua, africanizada, já, no modo de captar a pronúncia
da casa-grande.
A dualidade linguística representada
pela língua portuguesa da senzala, de um lado, e a da casa-grande, de outro,
foi diminuindo quando os senzalados entraram em contato mais estreito com a da
casa-grande, por meio das relações entre “a
ama negra e o menino branco, da mucama com a sinhá-moça”[L]. À ama negra, cabe o grande mérito
de ter amolecido a pronúncia; ela fez, “muitas vezes com a palavra o mesmo
que fez com a comida: machucou-as, tirou-lhe os espinhos, os ossos, as durezas
só deixando para a boca do menino branco as sílabas moles. Daí esse português
de menino que no norte do Brasil, principalmente, é uma das falas mais doces
deste mundo”[LI].
Os nomes próprios, recebendo um
diminutivo, tornaram-se mais dengosos, amolecidos[LII], tendo, não só os nomes, mas as
palavras, em geral, uma pronúncia menos nasal do que a de Portugal.
Foi, ainda, a ama negra quem ensinou
ao menino as primeiras palavras de português errado; “ensinou o primeiro ‘padre nosso’, a primeira ‘ave-maria’, o primeiro
vôte! ou oxente”[LIII]. métodos punitivos –, às ingerências no modo
de falar a língua portuguesa, por parte dos meninos e meninas da casa-grande[LIV].
4. O
papel sentimental da mucama
A mucama, foi quem melhor
acomodou-se, ao lado da mãe-preta e do malungo, à vida da casa-grande, ao
serviço doméstico[LV]. Nela, os sentimentos dos senhores, das
senhoras e das sinhás, encontraram acolhida. Freyre chega a queixar-se de que,
juntamente com os confessionários, a mucama abafou a história sentimental da
casa-grande. Ela ouviu os segredos de suas senhoras, suas paixões, sendo
inclusive, a grande alcoviteira de senhoras e sinhazinhas não tão puras e
santas como se poderia pensar, sobretudo, se levarmos em conta a grande
exclusão social que estas sofreram, rompida somente com o advento das cidades e
de suas ruas[LVI].
Benquistas pelas sinhás, as mucamas
participavam aos raptos e fugas das sinhazinhas desejosas de casarem-se por
amor, ao invés de entregarem-se, aos treze ou quatorze anos, a homem arranjado pelos pais, sistema típico de
família e da sociedade patriarcal[LVII]. Negras alcoviteiras que,
contribuindo para a felicidade dos néo-esposos, eram dados a estes como dotes
de casamento, tratados com uma certa gratidão por eles, e não raro, alforriadas[LVIII].
Capítulo III
Seqüelas das mazelas e da má fama da escrava na mulher miscigenada
No Brasil da época colonial, os
negros escravos foram comparados a instrumentos de trabalho e animais: era-lhes
negado o status de humanos. Com a abolição, os negros foram relegados ao status
de cidadãos de segunda classe, excluídos dos direitos sociais e de cidadania e
desconsiderados. O próprio magistério social da Igreja católica, em um país
onde a unidade da fé almejava ser o elemento coagulante das diferenças, foi
transcurado[LIX]. Eis as sequelas, geradora de mitos e de
tabus, em relação à negra.
1. A escrava na vida sexual da sociedade patriarcal: tabus e mitos
A propósito de doenças, Freyre busca
mostrar que algumas, como a sífilis, muito difusa no Brasil colonial, foram
sementes depositadas pelo branco da casa-grande na genitália da negra, e dela,
promíscua por ser escrava, passaram a outros brancos e chegaram até a senzala,
contribuindo, irresponsavelmente, para a deformação da plástica e para a
depauperação da energia econômica do mestiço brasileiro. “A contaminação [com a sífilis] em massa verificou-se nas senzalas
coloniais. [...] Foram os senhores das casas-grandes que contaminaram de lues
as negras das senzalas. Negras tantas vezes entregues virgens [...] a rapazes
brancos já podres da sífilis das cidades. Porque por muito tempo dominou no Brasil
a crença de que para um sifilítico não há melhor depurativo que uma negrinha
virgem”[LX].
Com isto, o círculo fechava-se,
sifilizando o Brasil colonial, pois, estas mesmas negrinhas eram as
responsáveis da precoce maturação sexual do jovem donzelo – menino ou
adolescente – dos engenhos.
Além do pai e do filho, os padres e frades
também contribuíram para a assunção da negra escrava da cozinha para a cama. “No
século dezesseis, com exceção dos jesuítas – donzelões intransigentes – padres
e frades de ordens maiores mais relassos em grande número se amancebaram com
índias e negras”[LXI], gerando uma multidão de filhos ilegítimos,
muitos destes, criados na casa-grande e nos orfanatos[LXII].
Aspecto molesto da escravidão da
negra era, também, a prostituição[LXIII]. Muitos dos cronistas da escravidão dão-lhe
muita importância – e, com eles, Freyre –, sublinhando que foi, sempre,
prostituição das negras e
mulatas exploradas pelos brancos[LXIV].
Se alguém lucrou com a depravação da negra
escrava, foram as mulheres brancas. Explorada pelo branco, serviu para a
manutenção da virtude casta da mulher branca; virtude confirmada pelo adágio
popular brasileiro, registrado por H. Handelmann: “branca para casar, mulata para foder, negra para trabalhar (H. Handelmann, História do Brasil, Rio de Janeiro, 1931); ditado no qual se sente, ao lado do convencionalismo social da
superioridade da mulher branca e da inferioridade da preta, a preferência
sexual pela mulata”[LXV].
Permaneceu útil e agradável a
relação sexual entre brancos e negras escravas, afinal, brancas, sempre
faltaram; afinal, a doçura, de trato e de sabor da carne, muito influenciou na
hora de escolher que tipo de negro entraria na vida social do branco, como
testemunhou Oliveira Viana, num trecho recolhido em Casa-grande & Senzala: “Oliveira
Viana salienta que em Minas Gerais observa-se hoje nos negros ‘delicadeza de
traços e relativa beleza’, ao contrário das ‘caricaturas simiescas […]
abundantíssimas na região central da baixada fluminense’. […] Foram essas minas
e fulas [e identifica a predominância etnia do negro mineiro] – africanas não
só de pele mais clara, como mais próximas, em cultura e domesticação dos
brancos – as mulheres preferidas, em zonas como Minas Gerais, de colonização
escoteira, para amigas, mancebas e caseiras dos brancos. […] Outras terão
permanecido escravas, ao mesmo tempo que amantes do senhor branco: ‘preferidas
como mucamas e cozinheiras’ (J.F.O. Viana,
Evolução do povo brasileiro, São
Paulo, 1933)”[LXVI].
Todavia, no Brasil patriarcal, à
inferioridade da mulher agregou-se a inferioridade gerada pelo status de
escrava, fazendo da cultura brasileira, uma cultura com muitos dos seus
elementos mais ricos abafados e proibidos de se expressarem pelo tabu do sexo[LXVII]. Sexo fraco. Belo sexo. Sexo
doméstico. Sexo mantido em situação toda artificial para regalo e conveniência
do homem, dominador, exclusivo dessa sociedade meio morta que no Brasil, foi a
sociedade patriarcal dos três primeiros séculos após a chegada da colonização europeia.
Mas, não obstante estes, sem fim, de obstáculos, triunfou, no Brasil, a
miscigenação; gerando, nele, um mosaico de cores, modos, modas e sabores, que
deram formato à cultura e à sociedade brasileira.
2. A situação da mulher miscigenada depois da abolição da escravatura
Depois da Abolição – crença em
relação à igualdade, ao menos do ponto de vista legal entre senhores e escravos
–, as raças formadoras da sociedade brasileira se sentiram mais livres para se
locomoverem, socialmente. Todos eram livres, ainda se senhores de uma liberdade
restringida pela posição social que ocupavam.
Racismo à parte, a sociedade
brasileira, miscigenada, foi mais propensa a integrar a mestiça, sobretudo, as
mais claras; a integrar a “a mestiça mais
clara [que] vestindo se bem, comportando-se como gente fina [tornava-se] branca
para todos os efeitos sociais»[LXVIII]; «os mulatos mais claros [pela fama de inteligente e de avantajado
sexualmente], que os negros mais escuros”[LXIX]. A mulata – não tão bonita quanto
simpática –, foi sempre o mais favorecida, herdando da raça negra a alegria e a
cordialidade que a ajudaram a gingar e combater os preconceitos sociais e
raciais da sociedade republicana nascente. Em contrapartida, a sociedade
patriarcal foi acomodando a ancestral senzalada da mestiça, fazendo-a,
literalmente, desaparecer; marginalizando-a sempre mais, recluindo-a em
mucambos e, depois, em favelas, priva de atenção público-governamental,
confirmando, como diz-nos Darcy Ribeiro, “[a]
tamanha carga de opressão, preconceito e discriminação antinegro que ela [a
situação destes] encerra”[LXX].
A negra tinha que se contentar com o
triunfo de uma parte de si, aquela herdada pelos mestiços e baseada, muitas
vezes, em mitos, como o da tendência priápica da mulata e a dos dotes genitais
e sensuais do mulato[LXXI].
Enquanto triunfava, a mulata foi
sendo alvo de discriminações e de calúnias por parte de suas rivais, que no
século dezenove e início do século vinte, eram as imigrantes italianas e
portuguesas, bem como as senhoras brancas decadentes. Era uma forma de
discriminação, sobretudo, social, mas, também, racial. Comentando um artigo
sobre as Mil e uma noites, de Berkeley Hill, Gilberto Freyre
retoma a questão da tendenciosa atração dos brancos pelas pessoas de cor –
segundo Berkeley, já presente no mundo greco-romano clássico, turco, persa,
hindu –, para fundar a inveja e a calúnia do branca para com a mulher de cor. “Para Berkley Hill parece evidente que tanto
o homem como a mulher, mas especialmente a mulher, a branca e fina, a fêmea que
ele chama ‘tipo racialmente superior, a racially
superior type, é suscetível de tornar-se
presa da mais forte atração sexual por indivíduo de tipo racialmente mais
primitivo’ (O. Berkeley Hill, The Spectator, Londres, 15 de setembro de 1931). [Daí, o ciúme e a
inveja sexual do branco, desenfaixado nas seguintes táticas usadas para denegrir a imagem do híbrido] Para contrariar o encanto do macho negro sobre a mulher branca, o
branco civilizado teria procurado desenvolver uma aura de ridículo e de
grotesco em volta do preto e da sua primitividade e – pode se acrescentar – uma
aura de antipatia em torno do mulato, tão acusado de falso ou inconstante na
afeição, de incapaz de igualar-se ao branco em verdadeiro cavalheirismo e na
autêntica elegância masculina; para não falar da inteligência, no seu sentido
mais nobre e com todas as suas qualidades [...], que seriam, para os críticos
do mulatismo, raramente atingidos pelos meio-sangues, ou pelos pretos puros”[LXXII].
Insatisfeito pela forma repentina,
como se deu a Abolição, Gilberto Freyre chama à atenção às formas lights de trabalho e servidão, criadas
pela libertação dos escravos; formas nas quais, em detrimento das negras e
mulatas, exaltava a nova força trabalhadora estrangeira, revelando, de outra
parte, a postura anti-xenofóbica do brasileiro, não excluindo o preconceito de
cor, já que, estes novos trabalhadores não provinham das Terras Negras. “A procura de substitutos para domésticos de
cor, desde a Abolição, evitados por algumas das famílias mais distintas do Rio
de Janeiro e de outras cidades da República, não se fixou apenas em italianos,
[...] estendeu-se a alemães, espanhóis, portugueses, como indicam os artigos de
jornais daquele período de transição mais aguda do trabalho escravo para o
livre. Por outro lado, não faltou na época ofertas de estrangeiras para o
serviço doméstico nas melhores residências urbanas. [...] anúncios nos quais
transparece a valorização da empregada estrangeira para o serviço doméstico e
sua exaltação sobre a negra e a mestiça”[LXXIII].
Mesmo adaptado ao meio, a negra não
encontrou, nele, as condições favoráveis para se desenvolver, pois a escravidão
monocultora foi-lhe um limite. A mulata, sim! A negra, a grande massa da
senzala, foi relegada aos mucambos e às favelas; nelas foi sendo marginalizada,
acomodada. Muitas mulatas, também! Só que este, geralmente menos distante da
classe alta e branca, por razões sociais e de cor, encontrou menos rejeição na
hora de integrar-se. Ela foi a grande favorecida no jogo de simular grandeza,
de simular status, jogo tão típico
dos ibéricos e herdado pelos brasileiros, tão presente em uma nação em processo
de mudança como aquela dos primeiros anos republicanos, onde o inchaço das
cidades permitia, até, certo anonimato. Por esta razão, ainda no período
colonial, aos negros, à negra e à mucama, vinha-lhes imposta qualquer forma de
vestir ou se adornar que pudesse avizinhá-los aos seus senhores. No Império,
chegou-se ao ponto de, nem sequer, dar o direito de irem fazer queixas das mazelas
dos seus senhores para com eles à autoridade policial constituída. Estas eram
as respostas para os que desejavam viver segundo a situação social que havia
alcançado.
No Brasil republicano, a tendência
miscigenante acentuou-se ainda mais, e o grande favorecido foi a própria nação.
E assim, Freyre se permite afirmar que, no Brasil, “as regiões ou áreas de mestiçamento mais intenso se apresentam as mais
fecundas em grandes homens”[LXXIV]. A prole mestiça é, hoje, o cartão
de visita do Brasil; também, o seu mais conhecido produto de exportação. Eles
nos legaram o samba[LXXV]. O carnaval do Império, de possível origem
indiana, monótono, de gente grã-fina e de bailes de máscaras[LXXVI], ganhou vida com a consecução da
negra e do plebeu em geral[LXXVII]. Hoje ele è, principalmente, popular,
degenerando-se, ao menos para o visitador estrangeiro, em carnaval de negras e
mulatas semi-nuas, muitas das quais, são capazes de entregarem-se aos
estrangeiros, entre os quais, muitos, turistas em busca de sexo – pensando
algumas em poder armar-se, ascender
socialmente por meio de uma fortuita união –, passando-lhes a mesma impressão
que a nativa pôde ter causado no começo da colonização: a de que “davam-se [as índias] aos europeus por um
pente ou um caco de espelho”[LXXVIII]. À mestiçagem de pé ágil, incorporou-se,
tantas vezes, a figura do “feio sim, mas
simpático”[LXXIX], e da Raimunda, “feia de cara e boa de bunda”, como diz o conhecido adágio popular;
características que Freyre disse terem sido herdadas, não da pura e simples
quase-democracia racial brasileira[LXXX], mas das condições nas quais essa
se deu: os fatores sociais nos quais os mestiços foram gerados e onde muitos
deles viveram e vivem. Uma das mais importantes e atualizadas interpretações de
dados sobre a desigualdade racial no Brasil está contida no Dossiê Assimetrias Raciais no Brasil: alerta para a
elaboração de políticas, da Rede Feminista de Saúde. O documento traça o
retrato da situação dos afrodescendentes, utilizando o recorte racial/étnico
das Pesquisas Nacionais de Amostra por Domicílio (PNADs), da década de 1990 até
o ano de 2001. Numa comparação de vários indicadores, o Dossiê mostra a
exclusão a que está submetida a população afrodescendente, com dados
alarmantes: “A alta taxa de mortalidade
infantil entre crianças negras até cinco anos é de 76,1 por mil contra 45,7 por
mil de crianças brancas; Em 2001, o rendimento das famílias brancas chegava a
ser 2,3 vezes superior (R$ 481,6) ao das famílias afrodescendentes (R$ 205,4);
Em 2001, as taxas de analfabetismo para meninas afrodescendentes entre 10 e 14
anos eram de 4,5% enquanto para as meninas brancas de 1,3%; Em 2001, cerca de
47% dos afrodescendentes no Brasil eram enquadrados como pobres e 21,2%
indigentes. No caso da população branca, os percentuais são 22,4% de pobres
e 8,4% de indigentes. Ao verificar a situação de pobreza de cada um dos
Estados da Federação, apurou-se que 12 estados possuem mais de 50% de sua
população afrodescendente em situação de pobreza. Desses, nove pertencem à
Região Nordeste – Alagoas, Paraíba, Maranhão, Pernambuco, Piauí, Ceará, Bahia,
Sergipe e Rio Grande do Norte”[LXXXI].
A favela, o sistema educacional
deficitário, o sub-emprego, a má nutrição, são alguns dos fatores que impedem a
híbrida brasileira, racialmente ou culturalmente miscigenada, de atuar com
todas as suas potencialidades, confirmando, mesmo tendo que relativizar, a validade da teoria freyriana da democracia
racial, tão rebatida pelos seus críticos.
Conclusão
Através da análise de Casa-grande & Senzala e de Sobrados e Mucambos – e da análise da
crítica existente ao pensamento gilbertiano –, podemos observar o quadro da
sociedade brasileira, especialmente da família brasileira dos séculos dezesseis
ao dezoito, interpretado por Gilberto Freyre. Em nosso trabalho focalizamos
simplesmente uma das figuras mais presentes – mas, sem protagonismo – em sua
análise sociológica: a mulher, com ênfase à escrava, brasileira, dentro da
sociedade patriarcal. Nestas obras, sobre a sociedade patriarcal, Gilberto
Freyre recriou a figura magnífica de mulheres escravas, guerreiras,
batalhadoras, dentro dos sobrados ou do interior das casas-grandes, as quais
exerceram ação decisiva no que tange a adaptação do modo de vida nas regiões
tropicais.
Por isso, podemos ratificar, dentro
dos limites já expostos do status de escrava da mulher de cor, e do de,
quase-escrava, da mulher branca, a hipótese deste trabalho, afinal, não
obstante o seu status de escrava, a mulher contribuiu para a formação, não só
da família patriarcal, mas, da cultura e da própria sociedade brasileira,
dentro daqueles que são os limites do sistema patriarcal, como afirma, em
síntese, o próprio Gilberto Freyre[LXXXII]. Todavia, è mister afirmar que, não
só historicamente, mas, retoricamente, a pesquisa freyreana è inacabada; è uma
tentativa de dar respostas históricas à situação na qual, nos dias atuais –
comparada com a mulher branca –, a mestiça encontra-se em situação social
desvantajosa.
Já na introdução assistimos à
extrema diferenciação e especialização do sexo feminino em ‘belo sexo’, ‘sexo
frágil’; e ‘sexo útil’ e ‘sexo parazeiroso’ a ponto de fazer, da mulher, muitas
vezes, um ser artificial e mórbido, serva do homem e boneca de carne do marido
ou do senhor, que, quando senhora, encontrava na religião e no confessionário
os caminhos para a sublimação dos seus sofrimentos psíquicos e, que, quando
escrava, encontrava na miscigenação a única oportunidade de fazer ascender a
sua descendência.
Por outro lado, devemos reconhecer
que a mulher escrava não contribuiu para que fosse mudado o status do gênero feminino no Brasil.
Porém, aliou-se a ela, chegando, muitas vezes, à rivalidade, para que fosse vencido
os grandes desafios da colonização: a grande extensão territorial e a carência
de elemento feminino. Ela foi escrava, como foi também escrava a mulher branca;
a única diferença reside no fato que, a escrava tinha dois senhores: o senhor e
a senhora. Todavia, concluímos, as escravas lograram ajudar os colonos brancos
na adaptação às terras tropicais, jogando um papel decisivo não só na
miscigenação, mas na geração da família e da sociedade patriarcal e, se ainda
hoje, sofre as consequências do status dos seus ancestrais, não è
exclusivamente por razão de cor, mas, sim, pela sua condição social.
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[I]“O
sociólogo e escritor Gilberto de Mello Freyre nasceu em Recife-PE, em 15 de
março de 1900, em uma família de senhores de engenho. Iniciou seus estudos com
professores particulares e, posteriormente, foi viver nos Estados Unidos, onde
graduou-se em Artes Liberais pela Universidade de Baylor (Texas). Na
Universidade de Columbia (Nova York), obteve o título de mestre em Ciências
Políticas, Jurídicas e Sociais com a dissertação Social life in Brazil in the
middle of the 19th Century [...]. Depois de um período na Europa, regressou a
Pernambuco. Em 1930, novamente na Europa, morando em Portugal, iniciou as
pesquisas para o livro Casa-Grande & Senzala, complementadas nos anos
seguintes no Brasil. O livro foi publicado pela primeira vez em dezembro de
1933 e tornou-se o centro de sua obra. Além de deixar uma bibliografia extensa
em estudos sociológicos e antropológicos, Gilberto Freyre foi também poeta,
ficcionista e pintor, realizando exposições no Recife, Rio de Janeiro e São
Paulo e publicando livros de poemas [...] e romances [...]. Faleceu em 18 de
julho de 1987, [...], no Recife” (F. Araújo,
«Gilberto Freyre: um novo Cabral», O povo,
Fortaleza, 01de dezembro de 2003).
[II] A primeira obra, “Casa-grande & Senzala, narra o período
de história social do Brasil a partir da segunda metade do século XVI, até as
primeiras décadas do século XVIII. Esse estudo procura enfocar a ordem social
patriarcal, rural, brasileira. O título da obra é expressivo, pois faz realçar
a estrutura estável e hierarquizada dessa mesma sociedade: senhor e escravo.
Encontra-se, aí, toda a formação da família brasileira sob o regime de economia
patriarcal, analisada através de nossos antecedentes socioculturais. Surge,
como não poderia deixar de ser, a visão do homem lusitano: aberto à
experiências novas, em convivência com outros povos, outras raças e outros
climas, dotado de mobilidade e miscibilidade. O estudo do primitivo habitante
das terras brasileiras é feito com segurança e detalhes informativos. A
presença do africano no Brasil, contribuindo para a nossa miscigenação e o
nosso enriquecimento cultural, é estudada de forma precursora, em seus aspectos
valorativos do homem negro” (G. M. Navarro Burity, A
mulher na obra sociológica de Gilberto Freyre, em:
http://prossiga.bvgf.fgf.org.br/frances/critica/livros/a_mulher_obra_gf.htm).
[III] A Segunda obra, Sobrados e Mucambos, “descreve outra fase da nossa história
social, correspondente às últimas décadas do século XVIII e à primeira metade
do século XIX. Durante esse período, o Brasil passa por profundas modificações socioeconômicas.
As atividades comerciais e industriais se intensificam, por força, inclusive,
da descoberta de minas. As cidades crescem rapidamente e se modificam, ganhando
novo colorido e importância no plano econômico e administrativo. A vinda de D.
João VI, rei de Portugal, acelera o ritmo dessas modificações. A paisagem
social ganha novo aspecto e surgem inúmeras e novas figuras sociais. É a
decadência do patriarcado rural e a consolidação do patriarcado urbano. O
Senhor do Sobrado substitui o Senhor da Casa-grande. A senzala alonga-se em
dependência de empregado e mucambo. Trata-se, também, nesse período do fenômeno
relativo à reeuropeização do Brasil, através do imperialismo industrial da
Inglaterra e da França. Principalmente da Inglaterra. É também o período da
ascensão social do mulato e do bacharel. Surge, nesse trabalho, com mais vigor,
a descrição de tipos humanos bastantes característicos, tais como: o senhor
rural, a mulher patriarcal rural e urbana, o padre católico, o filho do senhor
do sobrado, o caixeiro português e o brasileiro, o médico, o bacharel e o
mulato, os estrangeiros, etc” (G.M. Navarro Burity, A
mulher na obra sociológica de Gilberto Freyre, em: http://prossiga.bvgf.fgf.org.br/frances/critica/livros/a_mulher_obra_gf.htm).
[IV]
G. Duby – M. Perrot, Storia delle donne in occidente, I-V, Bari, Laterza, 1991.
[VI] Em casa-grande & Senzala em quadrinhos, vem listada, com brevidade e precisão, alguns traços da
civilização moura, mourisca e israelita, que se instalou no Brasil através do
colonizador português, legado de seu passado, prova de seu longínquo processo
de hibridação. Da cultura moura e mourisca: “a doçura no tratamento dos escravos; doçura tradicional entre os
mouros. Outro traço, a mulher gorda como tipo ideal de beleza. De igual modo, o
gosto pela água corrente [...] os tapetes turcos, as almofadas orientais, as
esteiras [...] o emprego dos azulejos nas residências, nos chafarizes e até nas
igrejas, a telha mourisca, as gelosias, abalcoados ou muxarabis; as janelas
quadriculadas ou em xadrez, e o gosto pelas comidas oleosas, gordas ou ricas em
açúcar. Até o cuscuz, hoje tão brasileiro[...] Pode-se atribuir à influência israelita muito do gosto pela atividade
mercantil ou comercial, [...] o penhor para o bacharelismo [...] a aversão ao
trabalho manual [E conclui:] Compreende-se, assim, que os fundadores da lavoura
da cana, no Brasil, mantivessem o preconceito de que ‘trabalho era só para
negro” (G. Freyre, Casa-grande & Senzala em quadrinhos,
adaptação de Estevão Pinto, desenhos de Ivan Wasth Rodrigues e colorização de
Noguchi, Recife, ABE Graph, 2000, 20012 [em cores], 23-26).
[VII] G. Freyre, Casa-grande
& Senzala: Formação da família brasileira sob o regime da economia
patriarcal, apresentação de Fernando Henrique Cardoso, São Paulo, Global,
1933, 200550, 278.
[VIII] Casa-grande & Senzala, 80-81.
[IX] Os degredados vêm definidos
por Freyre como sendo soldados de fortuna, aventureiros, degredados,
cristãos-novos – entenda-se: judeus convertidos ao catolicismo –, fugidos à
perseguição religiosa, náufragos, traficantes de escravos, papagaios e de
madeira (Casa-grande & Senzala,
81).
[X] Casa-grande
& Senzala, 83.
[XI] G. Freyre, Sobrados e
Mucambos: decadência do patriarcado rural e desenvolvimento do urbano,
apresentação de Roberto DaMata, São Paulo, Global, 1936, 200314,
208.
[XII] Casa-grande & Senzala, 432-433.
[XIII] Sobrados e Mucambos, 208.
[XIV] Sobrados e Mucambos, 232.
[XV]
D. Martindale, Tipologia e storia della ricerca sociológica, Bologna, Il Mulino,
1968, 143. Semelhante analise vem sendo feita por Beltrão, aplicando, como elemento
micro-social, a família, fazendo a distinção entre “família d’altri tempi” –
entenda-se, pré-industrial – e, “famiglia d’oggi”, servindo-nos como quadro
atualizador da situação familiar. P.C. Beltrão, Sociologia della famiglia contemporanea, Roma, PUG, 1996, 55
[XVII] D. Ribeiro em: Casa-grande &
Senzala: Formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal, apresentação de
Darcy Ribeiro, Rio de Janeiro, Record, 200241, 34. D. Ribeiro, O povo Brasileiro: a formação e o sentido do Brasil, São Paulo,
Companhia das Letras, 1995, 20042, 54-56.
[XIX] D. Ribeiro em: Casa-grande
& Senzala [Record], 31-32. Posteriormente, Darcy Ribeiro, aprofundaria o argomento: “Na escala da evolução cultural, os povos Tupis davam
os primeiros passos da revolução agrícola, [...]. é de assinalar que eles
faziam por uma caminho próprio, juntamente com os outros povos da floresta
tropical que haviam domesticado diversas plantas, retirando-as da condição
selvagem para a de mantimento de seus roçados [...] Além da mandioca, cultivavam
o milho, a batata-doce, o cará, o feijão, o amendoim, o tabaco, a abóbora, o
urucu, o algodão, o carauá, cuias e cabaças, as pimentas, o abacaxi, o mamão, a
erva-mate, o guaraná, entre muitas outras plantas” (O
povo brasileiro, 31-32).
[XXII] Casa-grande & Senzala, 160.
[XXIII] Casa-grande & Senzala, 160.
[XXIV] “Facilitou a mistura das duas raças a preferência da mulher gentia pelo
homem branco: sonhava a nossa índia em ter filhos pertencentes a um povo que
considerava superior, pois, segundo as suas idéias, só tinha valor o parentesco
pelo lado paterno” (Casa-grande &
Senzala em quadrinhos, 08).
[XXV] G.S. De Souza, «Tratado descritivo do Brasil em 1587» ed. de
Varnhagen, Revista do instituto histórico
e geográfico brasileiro, tomos XIV e LXXVIII, II parte.
[XXVII]
Casa-grande & Senzala, 161.
[XXVIII] J. de Anchieta, Carta a
Laynes, em: P. Prado, Retrato do Brasil, São Paulo, 1928.
Esta, juntamente com uma outra carta, a – Epistola Rerum Naturalium – nos dão uma as
impressões que o ilustre padre Jesuíta teve das terras brasileiras de então. A. Gomes,
Epistola Rerum Naturalium do irmão José de Anchieta em:
http://www.novomilenio.inf.br/sv/svh024.htm.
[XXIX] Casa-grande & Senzala em quadrinhos, 17-18.
[XXXII] Casa-grande & Senzala, 164.
[XXXIII] “Decorrido, porém, o ‘período heróico’ das atividades jesuíticas, várias
missões quase se transformaram em armazéns de mercadorias [...] E os indígenas,
consequentemente, passaram a ser verdadeiros escravos. Desse modo, muitos
indígenas deram para ganhar o mato [...] Causa de muito despovoamento foram
ainda as guerras de repressão. Terríveis eram os suplícios e castigos aplicados
aos índios” (Casa-grande &
Senzala em quadrinhos, 21).
[XXXIV] Casa-grande & Senzala em quadrinhos, 390-391. D. Ribeiro, O povo Brasileiro, 113-114.
[XXXV] O povo Brasileiro, 113-114.
[XXXVI] Casa-grande & Senzala em quadrinhos, 29.
[XXXVII] Para iluminar aquilo que vem
sendo tido como a novidade do pensamento gilbertiano, isto é, a valorização o
mulher, por meio do reconhecimento da sua importância na formação da família e
da sociedade brasileira, é aconselhável a leitura da carta aos bispos da Igreja
católica sobre a colaboração do homem e da mulher na igreja e no mundo. Ali,
encontraremos luzes para, além do período da formação da família patriarcal
brasileira, atermo-nos à importância da mulher no mundo de hoje. Congregazione per la dottrina
della fede, Il ruolo della donna nella chiesa e nel mondo, Città del Vaticano,
L’osservatore Romano, 2004, 5-24.
[XXXVIII] Casa-grande & Senzala, 391
[XLI] “Nina Rodrigues identificou entre os negros do Brasil que conheceu ainda
no tempo da escravidão os chamados pretos de raça branca ou Fulas. Não só
fula-fulos ou Fulas puros, mas mestiços provenientes da Senegâmbia, Guiné
Portuguesa e costas adjacentes. Gente de cor cóbrea avermelhada e cabelos
ondeados quase lisos. Os negros desse estoque, considerados, por alguns,
superiores aos demais do ponto de vista antropológico, devido à mistura de
sangue hamítico e árabe, vieram principalmente para as capitanias, e mais tarde
províncias , do norte. [...] Descreve-os Haddon como gente alta, a pele amarela
ou avermelhada, o cabelo ondeado, o rosto oval, o nariz proeminente” (Casa-grande & Senzala, 386).
[XLIV] Casa-grande & Senzala, 542.
[XLV] “Mestre Vilhena fala desses doces e dessas iguarias – quitutes feitos em
casa e vendidos na rua em cabeça de negras mas em proveito das senhoras –
mocotós, vatapás, mingaus, pamonhas, canjicas, acaçás, abarás, arroz-de-coco,
feijão-de-coco, angus, pão-de-ló de arroz, pão-de-ló de milho, rolete de cana,
queimados, isto é, rebuçados, etc” (Casa-grande
& Senzala, 543).
[XLIX] Seguindo o pensamento de Paulo
Freire, podemos afirmar o papel libertador destas negras, que buscavam
apresentar às pessoas da casa-grande, o verdadeiro mundo onde estes viviam. De fato, para Freire, aos oprimidos é dada a
tarefa de libertar a si e aos opressores. Essa tarefa constitui, para Paulo
Freire, num parto doloroso. Desse
parto nasce “um homem novo que só é
viável na e pela superação da contradição opressores-oprimidos, que á a
libertação de todos” (P. Freire,
Pedagogia do oprimido, Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 198717, 35).
[LII] Por todo estes fatores,
climáticos, “As Antônias ficaram Dondons,
Toninhas, Totonhas; as Teresas, Tetés; os Manuéis, Nezinhos, Mandus, Manés; os
Fanciscos, Chico, Chiquinho, Chico; os Pedros, Pepés; os Albertos, Bebetos,
Betinhos. Isto sem falar nas Iaiás, dos Ioiôs, dos Sinhôs, dos Manus, Calus,
Bembéns, Dedes, Marocas, Nocas, Nonocas, Gegês” (Casa-grande & Senzala, 414).
[LIII] Casa-grande & Senzala, 419.
[LIV] “Os padres-mestres e os capelães de engenho, que, depois da saída dos
jesuítas, tornaram-se os responsáveis pela educação dos meninos brasileiros,
tentaram reagir contra a onda absorvente da influência negra [...]. Frei Miguel
do Sacramento Lopes da Gama, era um dos que se indignavam quando ouvia meninas
galantes dizerem mandá, buscá, comê, mi espere, ti faço, mi deixe, muler, coler,
le pediu, cadê ele, vigie, espie. E dissesse algum menino em sua presença um pru
mode, um oxente, veria o que era beliscão de frade zangado” (Casa-grande & Senzala, 417).
[LV] Sobrados e Mucambos, 626. O
povo brasileiro, 163.
[LVI] “Sabe-se que enorme prestígio alcançaram as mucamas na vida sentimental
das sinhazinhas. Pela negra ou pela mulata de estimação é que a menina se
iniciava nos mistérios do amor. […] Histórias de casamento, de namoros, ou
outras, menos românticas, mas igualmente sedutoras, eram as mucamas que
contavam às sinhazinhas nos doces vagares dos dias de calor, a menina sentada,
à mourisca, na esteira de pepiri, cosendo ou fazendo rendas; ou então deitada
na rede, os cabelos soltos, a negra catando-lhe piolho, dando-lhe cafuné; ou
enxotando-lhe as moscas do rosto com um abano” (Casa-grande & Senzala, 423-424).
[LIX] Sobre as questões relativas
ao desenvolvimento da exposição do pensamento da Igreja em relação ao
Matrimonio e à família, remetemos ao material recolhido e comentado em: P. Barberi e D. Tettamanzi, Matrimonio
e famiglia nel magistero della Chiesa: I documenti dal Concilio di Firenze a
Giovanni Paolo II, Milano, Massimo, 1986.
[LXII] “Talvez em nenhum país católico tenham até hoje os filhos ilegítimos,
principalmente os de padres, recebido tratamento tão doce; ou crescido, em
circunstâncias tão favoráveis. Dos filhos ilegítimos,
recolhidos nos inúmeros orfanatos coloniais, observou La Barbinais: ‘Ces sortes
d’énfants sont fort considerez dans ce Pais: le Roi les adopte, e les Dames les
plus qualifiés se font de honneur de les retirer dans leurs maisons, e de les
élever comme leurs propres enfants. Cette charité est bien louable mais elle
est suyette à bien des inconvenens” (M.L.G.D.
la Barbinais, Nouveau voyage au
tour du monde par M. Le Gentil Enrichi de Plusieurs Plais, vues e perspectives
des principales villes e ports du Pérou, Chily, Brésil e de la Chine,
Amsterdam, 1728). Mais dignos de admiração eram porém os meninos nascidos nas senzalas e
criados em casa, misturados aos brancos e legítimos” (Casa-grande & Senzala, 531).
[LXIV] “Admitida uma exceção ou outra, não foram as senhoras de família, mas
brancas desqualificadas, que assim exploraram as escravas. Às vezes negrinhas
de dez, doze anos já estavam na rua se oferecendo a marinheiros enormes,
gangozás ruivos que desembarcavam dos veleiros ingleses e franceses com uma
fome doida de mulher. E toda esta excitação dos gigantes louros, bestiais,
descarregava-se sobre molequinhas, e além da super-excitação, a sífilis, as
doenças do mundo – das quatro partes do mundo; as podridões internacionais do
sangue” (Casa-grande & Senzala,
537-538).
[LXVII] Sobrados e Mucambos, 127-128
[LXVIII] Sobrados e Mucambos, 744.
[LXIX] Sobrados e Mucambos, 748.
[LXX] O povo brasileiro, 224-225.
[LXXI] “O bom senso popular, a sabedoria folclórica, tantas vezes cheia de
intuições felizes, mas outras vezes convicta de inverdades profundas – a de que
a terra é chata e fixa, por exemplo; o bom senso popular e a sabedoria
folclórica continuam a acreditar na mulata diabólica, superexcitada por
natureza; e não pelas circunstâncias sociais que quase sempre a rodeiam,
estimulando-a às aventuras do amor físico como a nenhuma mulher de raça pura –,
melhor defendida de tais excitações pela própria fixidez de sua situação
social, decorrente da de raça, também mais estável. Por essa superexcitação,
verdadeira ou não, de sexo, a mulata é procurada pelos que desejam colher do
amor físico os extremos de gozo, e não apenas o comum. [...] A mesma aura cerca
a figura do mulato [...] Correm boatos sobre vantagens de ordem física que
fariam dele ou do negro o superior do branco puro e louro no ato do amor.
Vantagens ainda mais concretas que as de natureza priápica atribuídas à
mulata, em comparação com a branca fina, considerada mulher mais fria. Se é
certo que Hrdlicka, em estudos de antropologia comparada, atribui ao negro, em
geral, superioridade no tamanho dos órgãos sexuais, essa superioridade nem
sempre se tem verificado, nas pesquisas regionais empreendidas entre grupos de
indivíduos de raça preta comparados com os de raça branca” (Sobrados e Mucambos, 743-744).
[LXXII] Sobrados e Mucambos, 745-746.
[LXXIII] Sobrados e Mucambos, 445-446.
[LXXIV] Sobrados e Mucambos, 809.
[LXXV] Sobrados e Mucambos, 239-240.
[LXXVI] Sobrados e Mucambos, 612.
[LXXVII] Sobrados e Mucambos, 612.
[LXXVIII] Casa-grande & Senzala, 161.
[LXXIX] Sobrados e Mucambos, 791.
[LXXX] Em entrevista concedida em 15
de março de 1980, a Lêda Rivas – originalmente publicada no Diário de Pernambuco,
Recife, no dia 15 de março de 1980 –, Gilberto Freyre sintetizou as razões
da verdade e relatividade da democracia racial e social do Brasil: “democracia política é relativa [...]. Sempre
foi relativa, nunca foi absoluta. [...] democracia plena é uma bela frase [...]
de demagogos que não têm responsabilidade intelectual quando se exprimem sobre
assuntos políticos. [...] os gregos aclamados como democratas do passado
clássico conciliaram sua democracia com a escravidão. Os Estados Unidos, que
foram os continuadores dos gregos como exemplo moderno de democracia no século
XVIII, conciliaram essa democracia também com a escravidão. Os suiços, que
primaram pela democracia pura, até há pouco não permitiam que a mulher votasse.
São todos exemplos de democracia consideradas, nas suas expressões mais puras,
relativas. [...] o Brasil [...] é o país onde há uma maior aproximação à democracia racial, quer
seja no presente ou no passado humano. Eu acho que o brasileiro pode,
tranquilamente, ufanar-se de chegar a este ponto. Mas é um país de democracia racial perfeita, pura? Não, de modo algum.
Quando fala em democracia racial, você tem que considerar o problema de classe,
se mistura tanto ao problema de raça, ao problema de cultura, ao problema de
educação. [...] isolar os exemplos de democracia racial das suas circunstâncias
políticas, educacionais, culturais e sociais, é quase impossível. [...] é muito
difícil você encontrar no Brasil brasileiros que tenham atingido [uma situação
igual à dos brancos em certos aspectos...]. Por que? Porque o erro é de base.
Porque depois que o Brasil fez o seu festivo e retórico 13 de maio, quem cuidou
da educação do negro? Quem cuidou de integrar esse negro liberto à sociedade
brasileira? A Igreja? Era inteiramente ausente. A República? Nada. A nova
expressão de poder econômico do Brasil que sucedia ao poder patriarcal agrário
e que era a urbana industrial? De modo algum. De forma que nós estamos, hoje,
com descendentes de negros marginalizados, por nós próprios. Marginalizados na
sua condição social. [...]. Não há
pura democracia no Brasil, nem racial nem social, nem política, mas, repito,
aqui existe muito mais aproximação a uma democracia racial do que em qualquer
outra parte do mundo. [...]” (L. Rivas,
«O anarquista de Apipucos», Viagem em
torno de Gilberto Freyre, [CD-ROM 1], Recife, 2000).
[LXXXI] W. Sant’Anna, Dossiê Assimetrias
Raciais no Brasil: alerta para a elaboração de políticas, em: http://www.casadeculturadamulhernegra.org.br/rn_estat.
htm.
[LXXXII] “[pois,] O homem foi dentro do patriarcalismo brasileiro, e elemento móvel,
militante e renovador; a mulher o conservador, o estável, o de ordem. O homem o
elemento de imaginação mais criadora e de contatos mais diversos é, portanto,
mais inventor, mais diferenciador, mais perturbador da rotina. A mulher é o
elemento mais realista e mais integralizador” (Sobrados e Mucambos, 217). Nesta linha,
em artigo sobre a carta aos bispos da Igreja Católica sobre o papel da mulher
da Igreja e no mundo, a professora Alba Dini de quanto dito por Freyre,
ratificação parcial da nossa hipótese de trabalho: “La riflessione sulla
struttura costitutiva differente della persona, considerata non come un
astratto neutro, ma nella sua concretezza esistenziale sessuata, non può non
estendersi anche ad una rilettura di quanto storicamente acquisito in termini
di diritti e di doveri, anch’essi, quindi, non neutri, e alla realistica
valutazione dello statuto sociale della donna nel mondo” (A. Dini
Martino, em: Il ruolo della donna
nella Chiesa e nel mondo, 52)
Texto lindamente escrito e cheio de apoios historicos
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