I – Introduçao
Para entender
o sentido teórico dos escritos de Duns Escoto[1], à sua doutrina metafisica, propomos o seguinte
itinerário: partindo da relação entre filosofia e teologia, chegar à
univocidade do ente e à sua caracterização como objeto primeiro do intelecto,
rampa de elevação da alma a Deus
II – Distinção entre Filosofia e teologia
Escoto propõe a clara distinção entre a filosofia e a teologia. A filosofia
tem uma metodologia e um objeto não assimiláveis à metodologia e ao objeto da
teologia; mesmo sabendo qu elas «se
necesitan mutuamente, tanto para explicar la fe como para clarificar el
pensamiento»[2]. É
importante precisar as respectivas esferas da ação e as orientações específicas
da filosofia e da teologia.
A filosofia ocupa-se do
ente enquanto tal e de tudo o que é redutível a ele ou dele dedutível. Já a teologia, ao contrário, trata dos
objetos de fé. A filosofia segue o procedimento demonstrativo; a teologia, o
procedimento persuasivo. A filosofia detém-se na “lógica do natural”, a
teologia move-se na “lógica do sobrenatural”. A filosofia é essencialmente
especulativa, porque visa conhecer por conhecer. A teologia, ao contrário, é
tendencialmente prática, porque nos coloca a par de certas verdades para nos
induzir a agir mais corretamente[3]. A
filosofia não melhora, se colocada sob a tutela da teologia, nem esta se torna
mais rigorosa e persuasiva, se utilizar os instrumentos e tender aos mesmos fins
que a filosofia[4].
Resolvido o problema da relaçao entre filosofia e teologia, Escoto presenta
uma soluçao pratica para a superaçao das bareiras entre filosofos e teologos –
como ele prefere falar, ao invés de filosofia e teologia –, a soluçao
incontra-se no sugeito; isto è, em que o sujeito seja, ao mesmo tempo, filosofo
e teologo; como era o seu caso[5].
Neste caso, o resultado da mente do filosofo-teologo è a geraçao da metafisica,
uma «nova ciencia, com o seu metodo
proprio e seu objeto proprio e adequado à inteligencia humana […]»[6]. A
desscoberta da metafisica abre o discurso para a tese escotista da univocidade
do conceito de ente – pedra angular de toda a sua metafisica –, onde o
intendimento pode dispor-e a conhecer qualquer realidade humana e divina[7].
Le "Quaestiones" di Giovanni Scoto (manoscritto del sec. XIV-XV): iniziale decorata |
III – A univocidade do ente
Quando se fala em univocidade a propósito da filosofia escotista, o que se
pretende é falar da simplicidade irredutível à qual todos os conceitos
complexos devem ser conduzidos[8]. Ou seja,
trata-se daqueles conceitos que Escoto chama de conceitos simpliciter
simplices, no sentido de que cada um deles não é identificável com nenhum
outro, conceitos que só são possíveis de negar ou afirmar de um sujeito, mas
não ambas as coisas juntas[9].
Como exemplo, podemos citar a possibilidade do pode acontecer a propósito dos
conceitos analógicos, que, dada a sua complexidade, podem ser afirmados e
negados ao mesmo tempo, em relação ao mesmo sujeito, sob ângulos diferentes. A
esse propósito, no seu Ordinatio, Escoto
é absolutamente lúcido: “Chamo de unívoco um conceito que é de tal modo uno
que sua unidade é suficiente para provocar contradição quando é afirmado ou
negado de uma mesma coisa”[10].
Entre todos os conceitos unívocos, o conceito primeiro e mais simples é o
de “ente”, porque pode ser dito de tudo aquilo que existe de algum modo. O
conceito de ente pode ser fixado prescindindo dos modos específicos em que eles
efetivamente se concretizam. Nesse casos, tem-se então o conceito simples e,
portanto, unívoco do ente, que é universal porque aplicável a tudo aquilo que
existe de maneira unívoca. Com efeito, ele se aplica tanto a Deus quanto ao
homem porque ambos existem. A diferença entre Deus e o homem não está no fato
de que o primeiro exista e o segundo não, mas sim que o primeiro existe de modo
infinito e o segundo de modo finito. Ora, deixando-se de lado os modos de ser,
o conceito de ente aplica-se a ambos da mesma forma[11].
Pelo fato de prescindir dos modos de ser, o conhecimento de tal conceito
não permite identificar os traços específicos dos seres aos quais se aplica. A
noção unívoca do ente é de índole metafísica, no sentido de que expressa a
essência mesma do ser ou o ser enquanto ser, não a totalidade dos seres ou a
sua soma.
O intelecto foi feito, para Escoto, para conhecer o ente unívoco ou o ente
enquanto ente. Como, sendo unívoco, o ente é aplicável a tudo aquilo que
existe, da mesma forma o intelecto é feito para conhecer tudo aquilo que
existe, material e espiritual, particular e universal. Com o seu pensamento, o
homem pode abarcar o universo. Por sua universalidade, o conceito de ente
enquanto ente indica a extensão ilimitada do nosso intelecto[12].
Na condição humana atual, o intelecto humano é obrigado a seguir o processo de
abstração e, portanto, a alcançar o inteligível prescindindo – pela abstração –
da riqueza efetiva da realidade concreta. Assim, é necessário colocar ao lado
da filosofia, em posição subalterna e autônoma, as ciências em particular e,
para os aspectos da salvação da nossa existência, a teologia.
Não há necessidade de nenhuma prova da existência do ente finito,
porque ele é objeto da experiência imediata e cotidiana, no entanto, urge uma precisa demonstração da
existência do ente infinito, porque ele não constitui um dado da
evidência imediata. Se o conceito de ente infinito não é contraditório
em si mesmo - ao contrário, parece que a noção unívoca de ente encontra na
infinitude a sua realização mais completa - tal conceito representa
efetivamente alguma coisa? Em outras palavras: entre os entes existentes há
algum do qual se possa dizer que é verdadeiramente infinito?[13]
A prova parte de alguns dados importantes. Se o mundo existe, é
absolutamente certo e necessário que ele pode existir. Ainda que desaparecesse,
continuaria sendo verdadeiro que o mundo pode existir, visto que já existiu.
Estabelecida a necessidade da possibilidade, Escoto pergunta-se qual é o
seu fundamento ou causa. O fundamento de tal possibilidade não é o nada, porque
o nada não é fundamento ou causa. Também não é constituído pelas próprias
coisas, porque não é possível que as coisas possam dar a existência que ainda
não têm. Então, é necessário pôr a razão de tal possibilidade e um ser
diferente do ser produtível. Ora, esse ser que transcende a esfera do
produtível ou das coisas possíveis existe e atua por si mesmo ou existe e atua
em virtude de outro ser. No segundo caso, propõe-se a mesma pergunta, porque
ela dependeria de outro, sendo por seu turno produtível. No primeiro caso,
temos um ente em condições de produzir, mas que não é de modo algum produtível[14].
Assim, chegamos ao ente que se buscava, porque explica a possibilidade ou
produtividade do mundo sem que sua existência. Se as coisas são possíveis,
também é possível um ente primeiro. Mas tal ente é só possível ou existe de
fato? A resposta é que tal ente existe de fato, porque, se não existisse,
também não seria possível, considerando que nenhum outro estaria em condições
de produzi-lo. Assim, se é possível, o ente primeiro é real. Mas qual é a sua
conotação específica? A infinitude, porque é supremo e ilimitado. Só o ser
infinito é Ser no sentido pleno da palavra, porque é fundamento de todos os
entes e, antes ainda, de sua possibilidade.
IV – O princípio da individualização e o haecceitas
Escoto afirma o primado do individual, negando existir, em si ou em Deus, a
natureza ou a essência da qual os indivíduos participariam[15].
Interpretar o singular como participação no universal seria conceder demais à
concepção pagã, que desdenha um e exalta o outro, e não leva em consideração o
ato criador de Deus e sua providência. Deus conhece a todos, singularmente,
confiando a cada qual um lugar preciso na economia geral da salvação pessoal.
Para Escoto, nem a matéria, essencialmente indeterminada, nem a forma,
indiferente à individualidade e à universalidade (sendo, por natureza, comum a
todos os entes da mesma espécie) e, conseqüentemente, nem mesmo o composto
podem ser causa das características e das diferenças individuais.
“Essa entidade (a individualidade) não é nem matéria, nem
forma, nem composto, no sentido de que cada um deles é natureza, mas é a
realidade última daquele ente que é matéria, que é forma, que é composto”. Escoto sustenta, então,
que a realidade última explica a individualidade, isto é, a sua perfeição,
graças à qual uma realidade “haec est”, é esta e não outra. Daí o termo
“haecceitas”, que indica a formalidade ou perfeição pela qual cada ente
é o que é e se distingue de todo outro ente. O ente pessoal é um universal
concreto, porque, em sua unicidade, não é parte de um todo, mas sim um todo no
todo. O homem – cada homem – não é uma determinação do universal. Enquanto
realidade singular no tempo e irrepetível na história, ele, na realidade, é
supremo e original, porque, graças à mediação de Cristo, destina-se ao diálogo
com o Deus uno e trino da Escritura[16].
V – Conclusione
O elevadíssimo conceito – o do ente infinito –, ao qual o nosso intelecto
pode chegar, expressa verdadeiramente a riqueza pessoal de Deus, a ponto de
satisfazer as nossas exigências existenciais e mostrar a inutilidade da
teologia e, antes dela, da Revelação? Escoto responde que não. Para ele, esse
conceito é pobre e insuficiente, porque não nos consegue introduzir na riqueza
misteriosa de Deus.
Escoto proclama as possibilidades e os limites da filosofia. E proclama o
espaço e a necessidade da teologia.
Em relação ao
embate entre Duns Escoto o Tomismo, podemos enunciar, a guisa de conclusão, em
pelo menos 6 pontos de conflito. Vejamos, pois, sinteticamente, cada uma delas:
1) Escoto propõe a doutrina da distinção para submeter a
análise os conceitos complexos para reduzi-los a conceitos simples; Tomás
admite a distinção dos conceitos mediante a teoria da abstração e a teoria da
analogia; 2) Escoto propõe que o ser é um conceito unívoco; Tomás
afirma que o conceito é análogo; 3) Escoto afirma que o ente
unívoco é objeto do intelecto; Tomás sustenta que o ente é o
que primeiro apreende o intelecto, mas o ser é análogo; 4) Escoto
rejeita as demonstrações que partem da experiência para se chegar ao ente
necessário; Tomás se vale das demonstrações a posteriori para
provar a existência do necessário; 5) Escoto admite que o
princípio da individuação é o próprio ser; Tomás coloca na
matéria assinalada pela quantidade a individuação dos entes corpóreos; e, 6) Escoto
afirma que o bem não depende do ser, mas apenas de Deus; Tomás
sustenta que ser e bem são conversíveis, de tal modo que onde houver ser há o
bem[17].
VI – Bibliografia
G.
Reale- D. Antiseri, Il pensiero occidentale dalle origini ad
oggi, I, Brescia, La Scuola, 199821.
J.A.
Merino, Historia de la filosofia medieval, Madrid, BAC, 2001.
N.
Abbagnano, Storia della
filosofia, I, Torino, UTET, 2006.
Aquinate, portal
elettronico de Estudos Tomistas [http://www.
aquinate.net/p-web/PortalTomismo/Antitomistas/ antitomistas-duns-escoto.htm.
B. García, Beato Giovanni Duns Scoto, Appunti per la
scuola ad sum privatum, Pontificia Università Antonianum,
Roma 2007.
[1] João Duns Escoto,
Franciscano, filósofo e teólogo escolástico nasceu em 1265/66 em Maxton
(Escócia), e morreu no dia 8 de Novembro de 1308 em Köln. O “Doutor Sutil”.
Chamado por seus contemporâneos de Doctor Subtilis pela fineza e
profundidade de sua doutrina, João Escoto nasceu no povoado de Duns, na
Escócia, em 1266, quando Tomás de Aquino e Boaventura de Bagnoregio
encontravam-se no auge de sua produção científica. Ele se formou e trabalhou
nos dois maiores centros de estudo da época: Oxford e Paris. Na Universidade de
Oxford, caracterizada pela tradição “científica” de Grosseteste, Roger Bacon e
Peckham, ele aprendeu uma concepção extremamente rigorosa de “procedimento
demonstrativo”. Em Paris, centro de polêmicas entre tomistas, averroístas e
agostinianos, ele amadureceu a necessidade de ir além daqueles contrastes,
baseando-se, por um lado, na autonomia e nos limites da filosofia e, por outro,
no âmbito específico e na riqueza dos problemas da teologia. Aluno do convento
franciscano de Haddington, Escoto vestiu o hábito de são Francisco em 1278,
incentivado por um tio, Elias. Estudou teologia em Northhampton, na Inglaterra,
onde foi ordenado sacerdote em 1291. Enviado a Paris nos anos 1291-1296 para
aprofundar seus estudos filosóficos e teológicos, voltou depois para a
Inglaterra, indo trabalhar no estúdio dos Frades menores, anexo à Universidade
de Cambridge, onde começou a comentar as Sentenças de Pedro Lombardo. De
Cambridge, foi para Oxford (1300-1302) e daí para Paris (1302- 1303). Tendo
rejeitado, juntamente com outros professores da Universidade, o apelo de
Filipe, 0 Belo, ao concílio contra o papa Bonifácio VIII, foi obrigado a deixar
Paris e retomar a Oxford. Em 1304, O ministro-geral da ordem franciscana,
Gonsalvo Hispano, que fora seu professor, apresentou-o à Universidade de Paris
para a obtenção da licenciatura em sagrada teologia, que lhe foi conferida em
1305, recebendo logo depois a regência do estúdio dos frades menores. Mas,
devido às crescentes tensões entre o imperador e o papa, Escoto foi chamado
para o estúdio de Colônia, onde, depois de um ano de ensino, morreu em 1308,
sendo sepultado na Igreja de são Francisco, naquela cidade. O dístico que está
esculpido em seu túmulo resume muito bem o que foi sua vida atormentada: “Scotia
me genuit,/ Anglia me suscepit, Gallia me docuit,/ Colonia me tenet”. Cfr. G. Reale- D. Antiseri, Il pensiero occidentale dalle origini ad oggi, I, Brescia, La Scuola, 455-456; J.A. Merino, Historia de la filosofia medieval, Madrid, BAC, 2001, 257-259; N. Abbagnano, Storia della filosofia, I,
Torino, UTET, 2006, 623-625; Aquinate, portal elettronico de Estudos
Tomistas [http://www.aquinate.net/p-web/PortalTomismo/Antitomistas/
antitomistas-duns-escoto.htm (Acesso, 07/05/07)].
[2] J.A. Merino, Historia de la filosofia medieval, 260.
[3] Cfr. G. Reale- D. Antiseri, Il pensiero occidentale dalle origini ad oggi, 456; J.A. Merino, Historia de la filosofia medieval, 260-261.
[4] Cfr. B. García, Beato Giovanni Duns Scoto, Appunti
per la scuola ad sum privatum, Pontificia Università Antonianum, Roma 2007,
3.
[5] J.A. Merino, Historia de la filosofia medieval, 262; B. García,
Beato Giovanni Duns Scoto, Appunti per la scuola ad sum privatum, 2.
[6] B. García, Beato Giovanni Duns Scoto, Appunti
per la scuola ad sum privatum, 2.
[7] Cfr. J.A. Merino, Historia de la filosofia medieval, 262.
[8] B. García, Beato Giovanni Duns Scoto, Appunti
per la scuola ad sum privatum, Pontificia Università Antonianum, Roma 2007,
28-29.
[9] Cfr. G. Reale- D. Antiseri, Il pensiero occidentale dalle origini ad oggi, 457.
[10] J. Duns Scotus, Ordinatio, in: J.A. Merino, Historia de la filosofia medieval, 263.
[11] Cfr. G. Reale- D. Antiseri, Il pensiero occidentale dalle origini ad oggi, 457.
[12] Cfr. Ibid., 457-458.
[13] G. Reale- D. Antiseri, Il pensiero occidentale dalle origini ad oggi, 458.
[14] Cfr. Ibid., 458-459.
[15] Cfr. J.A. Merino, Historia de la filosofia medieval, 271.
[16] G. Reale- D. Antiseri, Il pensiero occidentale dalle origini ad oggi, 462.
[17] Cfr. Aquinate,
portal elettronico de Estudos Tomistas [http://www.aquinate.net/p-web/Portal-
Tomismo/Antitomistas/antitomistas-duns-escoto.htm (Acesso, 07/05/07)].
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