11 gennaio, 2014

NIGROFOBIA E NIGROFILIA NO BRASIL: Alguns aspectos do processo de integração do negro na sociedade brasileira na trilogia: Casa grande & Senzala, Sobrados e Mucambos e Ordem e Progresso de Gilberto Freyre (III de 3)




Negros e mestiços, forros e livres, na sociedade brasileira   

A problemática dos negros brasileiros não encontrou soluções com a transferência da corte portuguesa para o Brasil. Fugidos como ratos do gato faminto chamado Napoleão – megalômano desejoso de conquistar o mundo –, chegaram ao Brasil, num contingente de quinze mil pessoas, alimentando, também, o desejo de onipotência em relação à colônia. Voltando para Portugal, D. João, que havia transformado o Brasil em Reino Unido a Portugal e Algarves, deixou no trono o seu filho, o príncipe D. Pedro[1], que não tardaria em proclamar a independência do Brasil. Esta gente, ardente em desfrutar, arbitrariamente, o mundo colonial, fez crescer o sentimento nacionalista, a valorização do nativo indígena e do mestiço – que, em grande número, já gozavam da alforria –, como podemos constatar pela produção musical e literária do século dezenove: O guarani, de José de Alencar; a obra homônima, de Carlos Gomes; A escrava Isaura, de Bernardo Guimarães; O mulato, de Aloísio Azevedo; Os escravos, de Castro Alves, só para citar alguns. Surgiram também movimentos abolicionistas[2], enquanto o Brasil, cedendo aos apelos da Inglaterra, seu exigente aliado, assinava acordos e leis em favor da progressiva restrição da escravidão[3]. A Inglaterra, como é sabido, gozava, desde há muito tempo, de exclusivismo na exploração do mercado escravocrata em todo o mundo colonial hispânico, reconhecendo a independência do Brasil, impôs acordos, restringindo o uso da mão-de-obra escrava; ela, que, agora, dava impulso à revolução industrial e à sua conseqüente substituição do trabalho escravo por aquele mecânico[4]. De fato, o Brasil para estes fins, era um mercado promissor. Quais foram as conseqüências da ingerência inglesa na vida do brasileiro; ou melhor, quais as conseqüências para a vida do negro brasileiro? A Lei Eusébio de Queirós, proibindo o tráfico de negros, não conseguiu reprimir o mercado clandestino de negros, tampouco a Lei do Ventre livre. Somente a Lei da Abolição conseguiu pôr fim a um sistema de quase quatrocentos anos, sistema baseado no trabalho escravo.

Abolindo os escravos, diria Freyre, uma maré de homens, mulheres e meninos, sejam senhores que escravos, viram-se sem saber o que fazer. Os senhores se perguntariam: quem lhes indenizaria. Os negros – desprestigiados pelo advento da roda, da máquina e do cavalo[5] –, se interrogariam sobre quem pensaria, em prover sua integração. O mal só não foi maior, poderíamos enfeixar, porque muitos dos negros, quando chegou a Lei de 13 de Maio de 1888, já haviam aberto alguma estrada, aprendendo a viver, como forros, no país que, para eles, era, já, a sua terra natal. Estes forros, geralmente os melhores dentre os escravos, foram os pioneiros na difícil conquista da cidadania na terra que ajudaram os portugueses a construir o Brasil.
Neste capítulo, tendo como marco a proclamação da Independência do Brasil, e, fazendo aceno ao papel do negro alforriado, e do quase-negro, durante o período colonial imediatamente anterior à chegada da corte portuguesa ao Brasil, analisaremos os processos de integração desta gente. Concluiremos, após uma exposição da situação destes nas quatro primeiras décadas posteriores à proclamação da República Brasileira, quando Gilberto Freyre conclui a sua trilogia, CG&S, SeM, OeP, acenando às janelas abertas, da ainda atual, integração do negro na sociedade brasileira.

1. A assunção do negro como homem livre e a geração do mestiço

Os melhores negros, do ponto de vista eugênico, sempre gozaram de privilégio na sociedade escravocrata brasileira. Nela, onde vigoraria a lei assinada pela princesa Isabel, em 13 de maio de 1888, eles tiveram a precedência não só na hora de determinar qual negro conheceria por primeiro o prazer de ser homem livre, mas, antes, quando ainda existia a escravidão, eram eles, os mais fortes e bonitos de corpo, que apareceriam nos jornais como negros à venda a preço de ouro. Os negros, mesmo sendo habilidosos e honestos, só gozavam deste privilégio, se fossem, eugenicamente, melhores. Freyre comprovou-o, em vários anúncios do século dezenove, anúncios corriqueiros de busca de negros – fugidos ou roubados –, anúncios de venda de negros:
«Que negro e negra feia era artigo quase sem importância no mercado de escravos vê-se através de vários anúncios. Destes, por exemplo : “Vende-se uma escrava por preço tão favorável que seria no tempo presente por tal compará-la; a mesma escrava não tem vício algum, e he quitandeira, e só tem contra si huma figura desagradável e he o motivo porque, se vende; na cidade de Olinda na segunda casa sobre o aterro das viças, ou no Recife na rua do Crespo D. 3” (Diário de Pernambuco, Recife, 23 de setembro de 1830). O negro que se vendia bem ou que, quando fugia, se procurava como quem procura uma jóia de família, fazendo-se até promessa a Santo Antônio, era o negro forte e bonito de corpo. Ainda em 1882, o Diário de noticias do Rio de Janeiro publicava o anuncio prometendo a gratificação de 200$000 a quem apreendesse o escravo Sabino, “de bons dentes [...] quando fala carrega muito nos rr [...] um pouco gago [...] inteligente e muito esperto” (Diário de noticias, Rio de Janeiro, 10 de julho de 1882)»[6].
Esta gente eugênica, a mesma que entrou na casa-grande e nos sobrados, para o serviço doméstico, criando laços de sangue e de afeição como a gente senhorial, precedeu aos demais negros na hora de serem premiados com a alforria. «Raro o senhor de engenho [nos confirma Gilberto Freyre] que morreu sem deixar alforriados, no testamento, negro e mulatos de sua fábrica»[7]. Mais raro ainda, que a maioria destes não fossem bastardos, isto é, filhos frutos de suas cópulas e aventuras amorosas com a criadagem de casa. Estes criados, por sua vez, eram também recompensados com a alforria por terem feito renderem as fazendas do senhor e vinham recompensados, normalmente, nas fases cruciais da vida da gente patriarcal como por ocasião de casamentos e de morte. A este propósito CG&S recolhe do testamento do capitão-mor, Manuel Tomé de Jesus – material manuscrito consultado por Freyre no arquivo do engenho Noruega, em Pernambuco –, a determinação de alforriar vários negros, «um deles, Filipa, mulher de Vicente, “por ter dado bastantes crias”»[8]. O testamento relega-nos ainda à razão de tal decisão do capitão-mor: a morte do seu neto, André.
Esta leva de gente que ia conseguindo a liberdade tomava muitos destinos; um deles era, seguir vivendo e servindo ali mesmo, nas casas-grandes e sobrados, pois muitos destes eram já tidos como pessoas de casa.
Em Freyre, podemos ver o uso distinto dos adjetivos atribuídos aos negros escravos, sem saber, realmente, se é uma distinção verdadeira, uma imprecisão do autor em prol da teoria da democracia racial, ou ainda, uma imprecisão por parte dos entrevistados. Por exemplo: enquanto em SeM, ele mesmo refere-se ao homem servil – a mãe-preta, a mucama e o malungo –, gente que gozava de sua piedade, de sua compaixão, como pessoas de casa[9]. Em OeP – obra baseada em respostas dadas a um questionário; respostas dadas por pessoas que viveram no período imediatamente anterior à Abolição ou, pouco depois dela; gente das mais diversas proveniências, com os mais diversos status e papéis desempenhados na sociedade –, nas respostas à pergunta sobre a atitude dos entrevistados em relação a negros e mestiços; e à pergunta seguinte, sobre como o entrevistado receberia o casamento de filho ou filha, irmão ou irmã, com pessoa de cor, ele recolheu dois testemunhos que aqui, nos interessam; os dois, de gente mais próximas aos ideais abolicionistas: estes referem-se aos negros do seu tempo de criança, vivendo em sua casa, como sendo pessoas da família[10] – expressão já usada por Freyre em SeM –, como anexos da família[11], ou como pessoas da família[12]. Embora a distinção exista, em geral, converge para a mesma situação: os negros e os mestiços, gente que vivia na casa grande, nos anos que antecederam à Abolição, gozando de uma situação muito diversa àquela do apogeu das casas-grandes e senzalas, gente tratada como gente de casa; e não, somente, como força-trabalho. Contraditoriamente, emerge também, a reserva em conceber tais elementos, gente de cor, dentro de suas famílias, ligados pelo vínculo matrimonial[13].
Deixando de lado os que puderam viver nas casas-grandes e sobrados, os domésticos, a maioria foi viver em mucambos, oferecendo a sua mão-de-obra, que vinha de alguma forma remunerada, ao seu ex-senhor, agora, patrão. Outros, por terem adquirido alguma habilidade – nata ou adquirida –, metiam-se por conta própria. Era, a maioria deles, gente quase anônima; gente que quando morria, se fosse ainda escrava, vinha sepultada atrás das Igrejas dos seus senhores, em cemitério só para pretos, em covas marcadas com uma cruz preta, de pau; menos agraciados que os negros já antigos na casa, muitos deles, já forros, tinham a honra de morrerem «como qualquer pessoa branca: confessando-se, comungando, entregando a alma a Jesus e Maria»[14]. Nas cidades, quando as Misericórdias ainda não pensavam nos negros, estes vinham, quando mortos, ou atados a um pau e atirados na maré, ou sepultados na areia da praia, em «sepulturas rasas, onde os cachorros quase sem esforços achavam o que roer e os urubus o que pinicar»[15]. E mesmo depois da criação, por parte destas Misericórdias, dos primeiros cemitérios para negros, indigentes e hereges, a dignidade destes cadáveres não era respeitada. Em relatório da Comissão de Salubridade Geral da Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro, sobre as causas de infecção atmosférica da corte, do ano de 1832, Freyre recebe a informação de que vários cadáveres vinham sepultados em uma vala única, mal cobertos e exumados antes do tempo.
«Criados pelas Misericórdias, os primeiros cemitérios para negros, indigentes e hereges, a situação melhorou. Mas eram cemitérios imundos. Do Cemitério da Misericórdia da corte informa um documento de 1832 que os cadáveres eram “atirados aos montes em um grande vallado”, sendo “mal cobertos de terra e ainda peor socadas; as camadas que della lhe lanção”. Faziam-se exumações antes do tempo: “os ossos sahem ainda pegados pelos ligamentos e cápsulas e a putrilagem dos outros tecidos brandos sahe como lama das enxadas” (Relatório da Comissão de Salubridade Geral da Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1832)»[16].
Não obstante as suas falhas, as Misericórdias – juntamente com as Confrarias e Irmandades –, foram um claro sinal de reconhecimento por parte dos católicos, da existência desta leva de gente que clamava por ter a sua existência conhecida dentro da Igreja. Embora um Papa, Leão XIII, só se pronunciara, mais incisivamente contra a escravidão, em 1887, no Brasil, muitos eclesiásticos contribuíram, mesmo dependentes do velho sistema patriarcal, para que o negro e a sua prole ascendesse na sociedade brasileira. Freyre enfatiza a ação promovida pelos padres pois, deseja ressaltar que o potencial eugênico, representado pelo clero – gente atrelada aos senhores das casas-grandes e dos sobrados patriarcais, contingente formado pelo melhor do que existiu no Brasil durante o período colonial e imperial, ao menos em relação à intelectualidade –, e recrutado entre os filhos das famílias numerosas e ricas, não foi desperdiçado. Também a eles e a outros homens abastados – negociantes, eclesiásticos, proprietários rurais –, Freyre atribui a fácil dispersão de riqueza no Brasil, pois, uniam-se, irregularmente, com negras e mulatas «com desvantagem para a organização da economia patriarcal e para o Estado capitalista, mas com decididas vantagens para o desenvolvimento da sociedade brasileira em linhas democráticas»[17]. Sobretudo aos padres, em virtude do seu potencial eugênico, Freyre dedica uma especial atenção pois, julga-os, homens de grande eloqüência que contribuíram, decididamente, para a geração dos mestiços, com a conseqüente, transmissão do seu potencial intelectual. Assim, dizia-nos que os melhores sub-produtos das senzalas, e do serviço doméstico da casa-grande e dos sobrados – mas, também, da fina flor da era patriarcal, a saber, moças brancas e brancaranas –, copulando e reproduzindo, com ou sem a consecução do amor, geraram o que de melhor poderíamos ter do sistema patriarcal: o homem miscigenado[18]. O fraco empenho de uma parte do clero com a questão da castidade, no século dezenove, é refletida nas inumeráveis famílias que eles fundaram no Brasil de então. Muitos deles, «vivendo vida como de casado; criando e educando com esmero os ‘afilhados’ e ‘sobrinhos’ [o destaque, e a ironia, são freyrianos]. Sem perderem o respeito geral»[19]. A esta prole foram transmitidas as maiores vantagens do ponto de vista tanto eugênico quanto social; afinal, os filhos de padre, mesmo sendo gerados na semi-clandestinidade, gozaram de privilégios pois recebiam uma educação esmerada que, juntamente à nobreza do sangue, abriu-lhes as portas para uma vida social mais digna, ao menos, se compararmos à progênie mestiça, filha das aventuras do senhorio patriarcal. De fato, «ainda hoje [escrevia Freyre em CG&S] filhos e netos de padres salientam na política, nas letras, na diplomacia»[20]. Os mulatinhos, geralmente, frutos das aventuras do padre, do pater famílias ou de qualquer outra gente ligada ao senhorio patriarcal, chegou a receber, em casos de fortuna, uma atenção até mesmo exagerada. Padre Gama chegou a lamentar a má educação de alguns deles, sob os olhos coniventes e ternos de iaiás solteironas, ou de senhoras maninhas, que, não tendo filhos, criavam moleques ou mulatinhos com demasiado afago e resguardo:

«“o moleque quebra quanto encontra” informa deste privilegiado o padre Gama, “e tudo e gracinha; já tem 7 e 8 annos; mas não pode ir de noite para a cama, sem dormir, o primeiro somno em o regaço de sua yayá que o faz adormentar balanceando-o sobre a perna, e cantando-lhe uma embirrante enfiada de chacaras, e cantilenas monótonas do tempo do capitão Frigideira”. E mais: “eu conheço uma respeitável Sibila, que creando uma negrinha que hoje já terá os seus 14 annos, esta não vae de noite para a cama sem que primeiramente se deite no regaço de sua yayá gorda, que esta lhe vá dando trincos na carapinha (que é uma graxa de pomada) e fazendo mechas do vestido da pateta, e chupando-as até adormecer! Aqui há porcaria, ma creação e desaforo” (P. Lopes Gama, O Carapuceiro, cit.)»[21].
O artista francês, Debret, no século dezenove, partindo das experiências vividas como membro da missão artística que esteve no Brasil imperial, reproduziu-nos a imagem de um jantar brasileiro. Nela, vêem-se dois negrinhos sendo alimentados pela senhora branca; imagem-testemunho que recolhemos, anexo, ao final do presente trabalho. Já Maria Graham, outra estrangeira, em visita aos engenhos de cana do sul do país viu, num deles, o engenho dos Afonsos, «crianças de todas as idades e de todas as cores comendo e brincando dentro da casa-grande; e tão carinhosamente tratados como se fossem da família (M. Graham, Journal of a voyage to Brazil and residence there during years 1821, 1822, 1823, Londres, 1824, 280[22]. E, como nos diz a ilustre visitante estrangeira, eles eram tratados como se fossem da família. Num Brasil ainda não interligado pelas linhas de ferro, muitos destes meninos, com os meninos brancos da casa, recebiam uma esmerada educação transmitida pelos padres-mestre – padre-mestre ou, pai-mestre –, ou, na ausência deles, por professores particulares. Tais meninos, brancos, negros e mestiços, foram alvo de uma série de humilhações: beliscões, bolos de palmatória, puxavantes de orelha e toda sorte de demonstração da tendência sádica que, no Brasil, externa os resquícios do tratamento reservado pela escravidão ao elemento inferior: os negros.
«O mestre era um senhor todo-poderoso. Do alto de sua cátedra, que depois da Independência tornou-se uma cadeira quase de rei, com a coroa imperial esculpida em relevo no espaldar, distribuía castigos com ar terrível de um senhor de engenho castigando negros fujões. Ao vadio punha de braços abertos; ao que fosse surpreendido dando uma risada alta, humilhava com um chapéu de palhaço na cabeça para servir de mangação à escola inteira; a um terceiro, botava de joelhos sobre grãos de milho. Isso sem falarmos da palmatória e da vara – esta, muitas vezes com um espinho ou um alfinete na ponta, permitindo ao professor furar de longe a barriga da perna do aluno»[23].
Com a chegada das estradas de ferro, os meninos ganharam os colégios das cidades, lugares onde se conservou a velha tradição moura de aprender de memória a tabuada, recitando-a em voz alta – diga-se de passagem –, tradição ainda hoje presente no interior do Brasil, em estados como a Bahia, onde, no início dos anos oitenta podemos participar de tais lições, cantadas. Os colégios das cidades do Império acolhiam não só brancos, mas também mulatos, quebrando com o velho preconceito contra os pardos, no Brasil do século dezessete[24].
A abertura ao mulatismo, em regiões como Minas Gerais, foi comprovada por um outro observador, inglês, Burton, que, em meados do século dezenove, visitando uma cidade do interior mineiro, cidade com uma população de cinco mil habitantes, verificou que apenas duas famílias apresentavam puro sangue europeu[25]. O mesmo visitador chegou a dar uma interpretação ao fenômeno, chamando-o de mal necessário, por causa da falta de opções. Nestas circunstâncias as famílias tornaram-se propensas a unirem-se com as negras, a diferença da gente litorânea, que gozava das constantes idas e vindas dos reinóis. Todavia, o visitador estrangeiro alertava que, estas uniões, em Minas Gerais, eram «menos por casamento do que por uniões irregulares»[26]. Gilberto Freyre, por sua vez, esclarece que tais uniões não se davam por aversão à raça negra, mas por causa do status do negro, não por que fossem negros, mas porque eram escravos: «preconceito não de reinóis contra coloniais; nem mesmo de brancos contra mulheres de cor. Mas de senhores contra escravas e filhas de escravas»[27]. Para estes casos, o Brasil de antes da abolição da escravatura encontrou uma solução, evitando a fácil dispersão de riqueza: os casamentos consangüíneos de tios com sobrinhas, de primas com primos. Ainda assim, era impossível evitar que ocorressem casamentos entre gente bastarda e abastarda porque, a miscigenação, no fim do período colonial e durante o império era muito difusa, pois, no Brasil de então, já existiam mestiços que gozavam da situação social e econômica superior a muito branco arruinado pela chegada e avanço da mecanização e pelo modo de produção com ênfase ao uso da tração animal.

2. Libertação dos negros e assunção do mestiço

A ascensão de muitos mulatos, deu-se com a progressiva aparição e desenvolvimento das cidades, enquanto os negros – sobretudo, a sua prole mestiça – vinham sendo alforriados. Verificou-se na corte a presença de muitos nobres que tinham o pé fincado em terras africanas, e percebia-se que estes pertenciam já a uma geração híbrida[28]. Neste período de valorização da brasileiridade muito senhor detentor de sobrenome nobre português, recebendo título nobiliário, como o Barão de Maruim e Marquês de Itanhaém, passaram a ser conhecidos com nomes de origem indígena ou africana.
A aparição e o crescimento de novas cidades, foram acelerados pela chegada da corte de D. João ao Brasil, no século dezenove. Com a sua chegada, e com o conseqüente estabelecimento do Império Brasileiro, verificou-se a transição do poder das mãos dos velhos patriarcas para as mãos de uma nova espécie de gente que ascendia ao poder: os senhores dos sobrados, os comerciantes e o próprio imperador[29]. A cidade serviu, com isso, para combater a arrogância dos velhos senhores detentores da terra e protagonistas do sistema que começava a ruir; sistema já abalado pela descoberta das minas e pelo crescente poder dos atravessadores e negociantes de escravos; serviu para promover a emergente classe comercial brasileira dos fins da colônia e início do império. A cidade, com seus sobrados altos – e nem sempre modelos de bem-viver –, símbolos do novo sistema que nascia, fez aumentar o antagonismo existente entre os brancos – senhores que habitavam estes sobrados –, e os negros, mulatos e pardos, moradores dos quadros, cortiços e mucambos; «engrossavam as aldeias de mucambos e de palhoças, perto dos sobrados e das chácaras, Engrossavam, espalhando-se pelas zonas mais desprezadas das cidades»[30].
Mas, da cidade, ninguém pode tirar o mérito de ter sido o terreno favorável para a proliferação da ação miscigenadora, pois, afinal, as cidade brasileiras puderam ser consideradas como o paraíso dos mulatos, lugar onde, para crescer, era necessário o conhecimento da técnica e das habilidades manuais necessárias para o comércio, sem falar da lábia, dom por excelência dos mulatos; a cidade era um lugar propício de relações, lugar propício para o desenvolvimento e multiplicação dos mulatos[31].
O Império trouxe, também, mudanças na zona rural brasileira; trouxe a melhoria das técnicas de produção; trouxe novas culturas agrícolas e, sobretudo, nova mão-de-obra, mão-de-obra imigrante[32]. As novas técnicas de produção, fruto da revolução industrial, estendia os seus potentes braços revolucionando toda a organização social brasileira; porém, acentuaram o grande problema do uso do trabalho escravo, desprovido de grande especialização, atracado, com raríssimos casos, a centenários modos de produção. Antes dela, «o aperfeiçoamento pelo homem na utilização do cavalo e do boi no transporte e nos trabalhos de agricultura e de indústria»[33] já havia abalado o antigo sistema de trabalho, pois, nele, o negro fazia de um tudo: da atividade de homem àquela onde o melhor desempenho deveria ser atribuído ao animal, como o transporte mais pesado de pessoas e mercadorias. Juntando uma e outra, a introdução de novas técnicas de produção e a de animais fizeram o negro perder espaço, deslocar-se, sem que, nem sempre, pudesse ver a sua mão-de-obra revalorizada. As notícias da Bahia, no ano de 1850, permitiram-nos ver o desnorteamento do sistema patriarcal viciado com o uso da mão de obra negreira. Segundo este relato, recolhido por Gilberto Freyre, via-se, na capital da Bahia e no recôncavo, uma infinidade de negros ociosos, «os domésticos e os suburbanos viviam no ócio ou quase no ócio, muitos deles bem alimentados e até cevados pelos senhores dos sobrados («A agricultura», Marmota Pernambucana, 30 de Julho de 1850)»[34]. Tudo contribuindo, é claro, para que eles fossem sendo alforriados. Ratificando o dito até agora, Freyre ressalta que, na hora de conceder alforria, eram os escravos mais claros de cor, isto é, aqueles já miscigenados, os que gozavam de precedência. Não sabendo como se gerenciar diante às coisas novas, muitos, muitos senhores caíram em ruína.

Por fim, o Império, com o conseqüente crescimento das cidades, atraiu para o Brasil a novidade que era a presença de levas de imigrantes, gente que vinham, não só da península ibérica, mas das diversas partes da Europa; gente rica, mas, sobretudo, pobre em busca de fazer fortuna em terras brasileiras. O judeu, que marcou a sua presença principalmente em São Paulo – onde as garras do Santo Ofício não pôde alcançá-lo –, tornou-se ainda mais potente por meio da labuta com as atividades comerciais e financeiras[35].
A imigração acentuou, ainda mais, a crise da economia escravocrata e da monocultura, deslocando o negro livre dos postos de trabalho outrora por eles ocupados. A este propósito, verificou-se no Brasil de então, a solicitação e a presença de estrangeiros em trabalhos que, antes, eram exclusividade de negros e mulatos livres; tudo para a maior gloria das gentes abastardas que, com isso, confirmava a tendência europeizante do Brasil Imperial[36]. Como o conluio do Império com os ingleses fê-lo dar passos em prol da redução e erradicação do trabalho escravo – Lei de extinção do tráfico negreiro, Lei do Ventre Livre –, os negros passaram a ter uma certa gratidão à Monarquia, a ter «confiança no elemento dinástico como capaz de paternal ou maternalmente estender à gente de cor a proteção necessária ao seu desenvolvimento em parte viva de uma democracia social e não apenas política»[37]. O cume dessa gratidão, foi a devoção tributada a Dona Isabel, a princesa Redentora dos negros. Daí surgir, naquela época, a guarda negra, instituída para defender os interesses da ameaçada monarquia[38].
Crescendo o prestígio e poder dos militares, principalmente a partir da guerra da Paraguai, muito mestiço, por ato de bravura, subia de grau e de posição social[39]. Ironicamente, estes mesmos militares propagariam as idéias republicanas e positivistas que dariam lugar ao fim do período monárquico brasileiro; proclamariam uma república com espírito «anti-luso e anti-africano»[40], buscando manter a ordem da monarquia e incentivar o progresso; e o resultado foram progressos desordenados[41] que fomentaram as disparidades regionais, causadas, também, pela declaração da Abolição da Escravatura. A verdade é que, se comparado com o treze de maio, o quinze de novembro foi muito insignificante pois,
«as alterações de natureza sociológicas que trouxe foram mínimas, em comparação com as já causadas pelo 13 de Maio: este é que verdadeiramente comeu o milho da tradição social ou da organização económica brasileira, provocando distúrbios sociais e sobretudo económicos atribuídos por observadores levianos à este particular quase inocente República»[42].
A grande questão que se punha ao novo sistema era a de que fazer para integrar esta nova leva de gente livre. Joaquim Nabuco falava desta gente livre – já existente antes da Abolição –, «são livres [dizia-nos], mas não são gente»[43]; e este foi o maior problema gerado pelo sistema colonial, e mal resolvido pela Monarquia. Se, sempre Nabuco, em 1881, dizia que o problema do negro foi a escravidão[44], Freyre foi cavoucar nas conseqüências da libertação dos escravos, o desdobramento da problemática da sua deficiente integração na sociedade brasileira. Ele afirma, com base em fontes da época, que tanto o negro do eito quanto o negro doméstico, no velho sistema, eram bem nutridos; nutrição satisfatória, principalmente, pela qualidade e quantidade.
«o negro de senzala de casa-grande ou de sobrado ou o próprio negro de mucambo menos desafricanizado nos seus hábitos ou estilos de alimentação era, de modo geral, melhor nutrido que o branco de casa senhorial, com sua carne fresca má, suas conservas e seus alimentos secos importados da Europa. [E toma o testemunho de Rugendas sobre a alimentação dos escravos de fazendas que o ilustre visitador considera como típicas do Brasil] “Em cada fazenda existe um pedaço de terra que aos escravos negros é entregue, cuja extensão varia de acordo com o número de escravos, cada um dos quais o cultiva como quer ou pode. Dessa maneira, não somente o escravo consegue, com o produto do seu trabalho, uma alimentação sadia suficiente, mas ainda, muitas vezes, chega a vendê-lo vantajosamente” (J.M. Rugendas, Viagem pitoresca através do Brasil, São Paulo, 19494, 180)»[45].
O advento da Abolição não reservou tanto sucesso para o negro quanto para a sua prole híbrida. Em CG&S, Freyre, descrevendo as riquezas da culinária dos tempos do fim da colônia e dos dias atuais – reminiscência africana –, expõe a vida das negras livres, das negras doceiras e das negras de fogareiros, ambas, patroas dos mais saborosos quitutes; ou algumas dentre tantas, que puderam sobreviver do seu suor[46]. Foram estas negras forras, as verdadeiras cozinheiras da colónia; mulheres que chegaram, com este ofício, a ajuntar dinheiro, concorrendo com os seus doces enfeitados e coloridos, com os doces das senhoras portuguesas e das freiras de conventos.
As ex-escravas, especialmente as que tiveram mais sorte na vida, foram as que se amigaram com estrangeiros portugueses e italianos; mas não todas. Algumas «chegaram às vezes até aos sobrados; algumas tornaram-se senhoras de escravos [como análogo foi o futuro dos negros e mulatos que tinham algum ofício] marceneiros, ferreiros, funileiros, chegaram às vezes à pequena burguesia. A moradores de casas térreas de portas e janelas»[47].
Existiram, também, negros livres que foram, no Império, músicos[48]; mas, em geral, a vida dos negros livres, antes e depois da Abolição negros sem um ofício, habituados tão somente a labutar no eito , foi muito pouco promissora. Para a maioria, a solução foi a miscigenação, já que desde o Império, o mulato e o bacharel – a quem Gilberto Freyre dedica um inteiro capitulo de SeM –, eram os que imigravam das classes sociais, em nítida ascensão, e foram a força que se multiplicou enquanto se difundiam a campanha da Abolição e a propaganda da República[49].
O século dezenove gerou, ao menos, dois tipos de mulatos: os que foram o fruto da união das negras e mulatos com a gente patriarcal das casas-grande e sobrados, e os que foram resultado da consecução das negras e mulatas dos quadros, cortiços e mucambos, com os mascates estrangeiros. Destes primeiros, alguns tiveram vida pobre nas cidades e nas zonas rurais; outros, inclinando-se para as letras, tiveram um final feliz, desfrutando das virtudes e vicissitudes que a ancestralidade lhe fizera herdar, aprendendo facilmente um ofício, conseguindo firmar-se na vida. E ainda mais: os que enveredaram pelo mundo dos estudos, como filhos de senhores e eclesiásticos, chegaram a fazer carreira nobre, e, até, casamentos com famílias exclusivas, marcando, com isso, a desintegração da ortodoxia do sistema patriarcal[50].
Eles chegaram a romper as barreiras, impostas pelas leis portuguesas, que reservavam ao branco o exclusivismo de poder abraçar as ordens sagradas[51].
Na visão de Freire, para quem o mulato foi a grande criação do sistema desumano que foi humanizando-se, o mestiço, híbrido, herdou o que havia de melhor de uma e outra raça. Do negro: o sorriso cordial – que lhe serviu de instrumento na hora de ascender profissionalmente.
«O mulato formado, em competição com o advogado branco, com o médico, com o politico, procurou vencer o competidor, agradando mais do que eles, aos clientes, ao público, ao eleitorado, ao Povo; e em seu auxílio moveram-se, sem dúvida mais facilmente que no branco, os músculos negróides. Seu riso foi não só um dos elementos, como um dos instrumentos mais poderosos de ascensão profissional, política, económica; uma das expressões mais características de sua plasticidade, na transição do estado servil para o de mando ou domínio […]»[52].
Ajudou-lhe, a meiguice quase dengosa, que ele, como nenhum outro, herdou do negro, aperfeiçoando-a, com destaque para o uso dos diminutivos.
Sobre os benefícios do uso dos diminutivos, além do desejo de estabelecer familiaridade com os objetos – tão característico do brasileiro, segundo Sérgio Buarque de Holanda –, Freyre destaca o de criar familiaridade com as pessoas: «podemos acrescentar que serve principalmente para familiarizar-nos com as pessoas – principalmente com as pessoas socialmente mais importantes: sinhozinho, doutorzinho, capitãozinho, padrinho, fradinho, ioiozinho, seu Pedrinho, Zezinho, Machadinho, Souzinha, Goizinho, Manezinho, o Pequenininho, o Velhinho, o gordinho, o amarelinho, o Branquinho. E esse desejo de intimidade com as pessoas nos parece vir, não só de condições comuns a todo povo ainda novo, para quem o contato humano tende a reduzir-se à maior pureza de expressão, como particularmente, de condições peculiares do período de rápida ascensão de um grupo numeroso, da população – o grupo mulato – ansioso de encurta, pelos meios mais doces, a distância social entre ele e o grupo dominante. No uso de diminutivo, uso um tanto dengoso, ninguém excede ao mulato»[53].
Por fim, a cordialidade externada no abraço,
«hoje tão do ritual brasileiro da amizade entre homens, e de origem, ao que parece, oriental ou indiana, quando acompanhado pelas palmadinhas convencionais nas costas, [que] tomou entre nós calor, passou de gesto apolíneo a dionisíaco, por influencia do mulato. da exuberância de sus cordialidade»[54].
Este mulato, herdaria a simpatia do negro, simpatia e cordialidade que são a carta de identidade do povo brasileiro. Do branco, veio o sangue aristocrático, a pele mais clara, e, em alguns casos, uma herança pecuniária.

Teve mulato que se enveredou pela carreira militar; outros tornaram-se bacharéis; outros ainda, depois de servirem de auxiliares para os estrangeiros que introduziram as máquinas no Brasil. Aprendendo, este ofício, triunfaram sobre os seus mestres, sendo «engrandecidos ou valorizados pelo fato de saberem dominar ou manejar máquinas ou motores, importados da Europa»[55]. Estes mestiços foram os que mais atraíram as iaiás brancas, tentando-as a renunciarem aos casamentos arranjados – geralmente consangüíneos –, cedendo facilmente aos raptos que passaram a ser tão comuns no século dezenove.
«Raptos mais comuns tornaram-se, no meado do século XIX, os de moças por homens ou rapazes que o critério patriarcal desaprovava para a condição de genro; e em inúmeros casos a questão de branquidade parece ter sido o motivo da desaprovação paterna a uniões que afinal se realizavam romanticamente; ou romanticamente se resolviam com o recolhimento da moça a convento e o suicídio, às vezes do rapaz apaixonado. A verdade, porém, é que, a partir do século XIX, a solução que se generalizou foi a do rapto [...]»[56].
O outro gênero de mulato, a partir do início do século dezenove, começou a sair dos quadros, cortiços e mucambos, como fruto da relação de negras e mulatas com os mascates italianos e portugueses[57]. Embora alguns tenham conseguido ascender, a maioria veio engrossar as fileiras dos mestiços mulatos e pobres. Estes foram, fruto de condições sociais em nada favoráveis ao seu desenvolvimento; sempre mais distantes e degenerados em relação ao menino branco criado nas casas-grandes e sobrados; moleques – geralmente descendentes de imigrantes italianos e portugueses –, crescidos na rua, à toa, desenvolviam, já de meninos, certos aspectos da inteligência, voltados, em geral, à revolta precoce[58]. O aumento de antagonismo entre uma e outra classe levantou, no Brasil, uma grande barreira que separa, ainda hoje, os brancos e mulatos abastados dos brancos e mulatos e negros degenerados. Ao preconceito de cor, veio substituir-lhe o da classe social: de negros pobres, de brancos e mulatos pobres como negros.

3. Negrofobia e negrofilia no Brasil miscigenado

Depois da Abolição – crença em relação à igualdade, ao menos do ponto de vista legal entre senhores e escravos –, as raças formadoras da sociedade brasileira se sentiram mais livres para se locomoverem, socialmente, dentro do mundo que eles criaram. Todos eram livres, ainda se senhores de uma liberdade restringida pela posição social que ocupavam.
Racismo à parte, a sociedade brasileira, miscigenada, foi mais propensa a integrar o mestiço, sobretudo, os mais claros; a integrar a «a mestiça mais clara [que] vestindo se bem, comportando-se como gente fina [tornava-se] branca para todos os efeitos sociais»[59]; «os mulatos mais claros [pela fama de inteligente e de avantajado sexualmente], que os negros mais escuros»[60]. O mulato – não tão bonito quanto simpático – , foi sempre o mais favorecido, herdando do negro a alegria e a cordialidade que o ajudaram a gingar e combater os preconceitos sociais e raciais da sociedade republicana nascente. Em contrapartida, a sociedade patriarcal foi acomodando o ancestral senzalado do mestiço, fazendo-o, literalmente, desaparecer; marginalizando-o sempre mais, recluindo-o em mucambos e, depois, em favelas, privo de atenção público-governamental. O negro tinha que se contentar com o triunfo de uma parte de si, aquela herdada pelos mestiços e baseada, muitas vezes, em mitos, como o da tendência priápica da mulata e a dos dotes genitais e sensuais do mulato[61].
Enquanto triunfava, o mulato foi sendo alvo de discriminações e de calúnias por parte de seus rivais, que no século dezenove e início do século vinte, eram os imigrantes italianos e portugueses, bem como os senhores brancos decadentes. Era uma forma de discriminação, sobretudo, social, mas, também, racial. Comentando um artigo sobre as Mil e uma noites, de Berkeley Hill, Gilberto Freyre retoma a questão da tendenciosa atração dos brancos pelas pessoas de cor – segundo Berkeley, já presente no mundo greco-romano clássico, turco, persa, hindu –, para fundar a inveja e a calúnia do branco para com o homem de cor.
«Para Berkley Hill parece evidente que tanto o homem como a mulher, mas especialmente a mulher, a branca e fina, a fêmea que ele chama “tipo racialmente superior, a racially superior type, é suscetível de tornar-se presa da mais forte atração sexual por indivíduo de tipo racialmente mais primitivo” (O. Berkeley Hill, The Spectator, Londres, 15 de setembro de 1931). [Daí, o ciúme e a inveja sexual do branco, desenfaixado nas seguintes táticas usadas para denegrir a imagem do híbrido] Para contrariar o encanto do macho negro sobre a mulher branca, o branco civilizado teria procurado desenvolver uma aura de ridículo e de grotesco em volta do preto e da sua primitividade e – pode se acrescentar – uma aura de antipatia em torno do mulato, tão acusado de falso ou inconstante na afeição, de incapaz de igualar-se ao branco em verdadeiro cavalheirismo e na autêntica elegância masculina; para não falar da inteligência, no seu sentido mais nobre e com todas as suas qualidades [...], que seriam, para os críticos do mulatismo, raramente atingidos pelos meio-sangues, ou pelos pretos puros»[62].
Por estas razoes, é que Freyre não omite a existência de conflitos de classe, sobretudo em SeM – que descreve a decadência do patriarcado rural e o desenvolvimento do urbano –, mas também em CG&S e OeP, a existência de conflitos de classe, mais do que de raça, desde os primórdios da colonização do Brasil[63]. Entre estes conflitos, aparecem o Evento chamado Palmares, e aquele outro que entrou para a história com o nome de Canudos.
Insatisfeito pela forma repentina, como se deu a Abolição, Gilberto Freyre chama à atenção às formas lights de trabalho e servidão, criadas pela libertação dos escravos; formas nas quais, em detrimento dos negros e mulatos, exaltava a nova força trabalhadora estrangeira, revelando, de outra parte, a postura anti-xenofóbica do brasileiro, não excluindo o preconceito de cor, já que, estes novos trabalhadores não provinham das Terras Negras.
«A procura de substitutos para domésticos de cor, desde a Abolição, evitados por algumas das famílias mais distintas do Rio de Janeiro e de outras cidades da República, não se fixou apenas em italianos, [...] estendeu-se a alemães, espanhóis, portugueses, como indicam os artigos de jornais daquele período de transição mais aguda do trabalho escravo para o livre. Por outro lado, não faltou na época ofertas de estrangeiras para o serviço doméstico nas melhores residências urbanas. [...] anúncios nos quais transparece a valorização da empregada estrangeira para o serviço doméstico e sua exaltação sobre a negra e a mestiça»[64].
Todavia, o negrófilo Freyre, em CC&S, já havia sentenciado que o verdadeiro filho dos trópicos era o negro, o qual se integrou ao clima e às condições de vida brasileira, adaptação motivada pela sua constituição fisiológica e psíquica[65].
Mesmo adaptado ao meio, o negro não encontrou, nele, as condições favoráveis para se desenvolver, pois a escravidão monocultora foi-lhe um limite. O mulato, sim! O negro, a grande massa da senzala, foi relegada aos mucambos e às favelas; nelas foi sendo marginalizado, acomodado. Muitos mulatos, também! Só que este, geralmente menos distante da classe alta e branca, por razões sociais e de cor, encontrou menos rejeição na hora de integrar-se. Ele foi o grande favorecido no jogo de simular grandeza, de simular status, jogo tão típico dos ibéricos e herdado pelos brasileiros, tão presente em uma nação em processo de mudança como aquela dos primeiros anos republicanos, onde o inchaço das cidades permitia, até, certo anonimato[66]. Por esta razão, ainda no período colonial, aos negros, à negra e à mucama, vinha-lhes imposta qualquer forma de vestir ou se adornar que pudesse avizinhá-los aos seus senhores. No Império, chegou-se ao ponto de, nem sequer, dar o direito de irem fazer queixas das mazelas dos seus senhores para com eles à autoridade policial constituída. Estas eram as respostas para os que desejavam viver segundo a situação social que havia alcançado. Mesmo assim, Freyre recolhe o testemunho de que, desde o século dezessete, o preconceito de cor, em relação àquele social, foi tornando-se, sempre, inferior[67].

No Brasil republicano, a tendência miscigenante acentuou-se ainda mais, e o grande favorecido foi a própria nação. E assim, Freyre se permite afirmar que, no Brasil, «as regiões ou áreas de mestiçamento mais intenso se apresentam as mais fecundas em grandes homens»[68]. A prole mestiça é, hoje, o cartão de visita do Brasil; também, o seu mais conhecido produto de exportação. Eles nos legaram o samba[69]. O carnaval do Império, de possível origem indiana, monótono, de gente grã-fina e de bailes de máscaras[70], ganhou vida com a consecução do negro e do plebeu em geral[71]. Hoje ele è, principalmente, popular, degenerando-se, ao menos para o visitador estrangeiro, em carnaval de negras e mulatas semi-nuas, muitas das quais, são capazes de entregarem-se aos estrangeiros, entre os quais, muitos, turistas em busca de sexo – pensando algumas em poder armar-se, ascender socialmente por meio de uma fortuita união –, passando-lhes a mesma impressão que a nativa pôde ter causado no começo da colonização: a de que «davam-se [as índias] aos europeus por um pente ou um caco de espelho»[72]. Também, o futebol, paixão nacional brasileira, enriqueceu-se nos pés dos mestiços, que eram, já nos tempos em que Freyre escrevera SeM, os que preenchiam as listas das agremiações desportivas[73]. Atualmente, pés de futebolistas como Ronaldo, Ronaldinho e Roberto Carlos, mestiços mulatos, levam ao delírio as torcidas no Brasil e no mundo. À mestiçagem de pé ágil, incorporou-se, tantas vezes, a figura do «feio sim, mas simpático»[74], e da Raimunda, «feia de cara e boa de bunda», como diz o conhecido adágio popular; características que Freyre disse terem sido herdadas, não da pura e simples quase-democracia racial brasileira, mas das condições nas quais essa se deu: os fatores sociais nos quais os mestiços foram gerados e onde muitos deles viveram e vivem. A favela, o sistema educacional deficitário, o sub-emprego, a má nutrição, são alguns dos fatores que impedem ao híbrido brasileiro, racialmente ou culturalmente miscigenado, de atuar com todas as suas potencialidades, confirmando, ainda mais, a validade da teoria freyriana da democracia racial, tão rebatida pelos seus críticos[75].

Conclusão


Quem entra em contato com o pensamento de Freyre, com a sua trilogia, nos dias atuais, pode chegar à conclusão de que seja um pensamento retrogrado, machista e racista – racismo para com o índio, em beneficio do negro, machismo do branco em beneficio do senhor patriarcal –, chegando a crer, como muitos dos seus críticos, que a sua teoria da democracia racial seja um «quase-embuste», para usar uma expressão do sociólogo Fernando Henrique Cardoso, critico e autor da apresentação comemorativa da qüinquagésima edição de CG&S, do ano de 2000[76]. Para entender Freyre é necessário conhecer o contesto no qual nasceu o seu pensamento, onde ele foi cultivado. Quando no mundo vigorava a ideologia da superioridade da raça ariana, ele levantou a bandeira das vantagens do hibridismo, em especifico, do mulatismo brasileiro.
Ao mesmo tempo, diante da realidade – a do mestiço física e psicologicamente depauperado –, ele rebate: o problema reside nas mazelas sociais às quais estes foram e são submetidos. Baseando-se em pesquisas cientificas, sobretudos as realizadas pelo seu mestre, Franz Boas, postulou que, no caso do negro brasileiro, não poderíamos descartar a possibilidade de que tais depauperações tenham sido adquiridas, pelas condições de trabalho impostas pela escravidão, deformações e atrofias que fossem transmitidas às gerações[77]. E, não excluiu a ação do clima, que juntamente com a escravidão, teria ajudado no processo de degeneração da pessoa e da imagem do mulato e do negro. Por isso que Freyre, insistentemente, reafirma a impossibilidade de separação, no Brasil, do negro à sua condição de escravo, chave de leitura da situação na qual muitos dos seus descendentes vivem nos dias atuais.
Gilberto Freyre teve o grande mérito de ressaltar, não só a diversidade étnica e cultural dos negros trazidos para o Brasil, como havia feito os estudiosos que, nos novecentos o antecederam, mas demonstrou a importância dos negros em atividades, geradoras de cultura, contribuindo, decisivamente, para a formação brasileira. Em plena época de crescimento dos preconceitos raciais e da afirmação da superioridade da raça ariana, Freyre teve a audácia e a criatividade de demonstrar os aspectos positivos da miscigenação de raças e culturas com a presença de uma reciprocidade de troca de elementos culturais e étnicos, resultando numa cultura mais rica e variada que a cultura anterior, meramente luso-européia. Em benefício de sua teoria da democracia racial, mas, sobretudo, pela existência de dados históricos que tangem para uma reconstrução do quotidiano e da vida destes, deu atenção quase exclusiva aos negros domésticos; sem aludir aos negros do eito, das minas e os da zona agropecuária.
Evitou, dada a imprecisão de dados, a aludir a números, baseados, em aproximações a causa da destruição, dos arquivos alfandegários da escravidão a mando de Rui Barbosa. Se existe critica em relação ao seu desleixo para com a vida do negro do eito, eis a razão: ajudaram a construir o Brasil, mas pouco influenciaram na formação da cultura brasileira.
Reconhecendo a ação integradora da Igreja Colonial do negro na sociedade brasileira, não negligenciou os preconceitos e até os racismo presentes principalmente na Igreja. Mas, de muitos eclesiásticos brasileiros, colheu-lhes a grande contribuição – em detrimento do voto de castidade feito por estes –, para a miscigenação, dos benefícios legados por esta classe eugênica, ao menos, entre os séculos dezessete e dezenove. Eles foram os que muito contribuíram para a transição social – ocorrida no Brasil nos fins do século dezoito, até o fim do século dezenove, quando a Igreja foi perdendo o seu poder temporal –, da diminuição do fator racial e do aumento do fator status como critério de integração social do negro e do mestiço.
Na reconstrução da saga do negro e do mulato, percebe se a maturação de Gilberto Freyre, possivelmente por cauda das fontes, mais parcas à medida que se distancia no tempo a história nacional brasileira. Já na ultima parte da trilogia, em OeP, a maturidade metodológica do autor atinge o ápice, com o enriquecimento por parte dos questionários feitos aos remanescentes do período decadente do sistema patriarcal e da Monarquia; rico, também por deixar entrever as negrofobias e negrofilias presentes, ainda hoje, na vida nacional. Mas, percebe-se uma omissão em relação ao período decadente do patriarcado, quando engrossaram as fileiras dos pobres brancos, que viviam socialmente em condições análogas aos dos mulatos e, até, de alguns pretos, que por isso contribuíram ainda mais para a miscigenação. Mas, como diziam os seus críticos, desde as primeiras edições de CG&S,aos quais Fernando Henrique Cardoso se junta,
«Gilberto Freyre não conclui. Sugere, é incompleto, é introspectivo, mostra o percurso, talvez mostre o arcabouço de uma sociedade. Mas não “totaliza”. Não oferece nem pretende, uma explicação global. Analisa fragmentos e com eles faz-nos construir pistas para entender partes da sociedade e da história»[78].
Uma coisa é certa a obra freyriana fez-nos ver que muito do que somos e temos. Por isso que, Darcy Ribeiro, outro critico de CG&S, recolheu testemunhos da intelectualidade brasileira; de
«Mestre Anísio [Teixeira], o pensador mais agudo deste país, [que] nos pede que antecipemos a Gilberto a grandeza que o futuro há de reconhecer nele, “porque ficamos mais brasileiros com a sua obra”. [De] Fernando de Azevedo, falando em nome as sociologia, quase repete Anísio ao nos dizer que “todos devemos – a Gilberto –  um pouco do que somos e muito do que sabemos”»[79].
A descoberta do nosso ser e ter devemos a Freyre. Mas devemos, também aos negros, co-protagonistas de suas obras. Consultando-as, descobriremos porque somos negrófilos, mulatófilos. Descobriremos, também, que, o nossa negrofobia, o nosso medo, não deve ser atribuída às questões de pigmentação e sim, às sociais. O medo vem das condição em que muitos destes e dos seus descendentes vivem, condições que atiram índices por nós abomináveis: o analfabetismo, a criminalidade, o desemprego; sinais de má integração destas mães ou pais do povo brasileiro no mundo que eles ajudaram a criar. Uma conjuntura à qual todos são chamados a combater.



[1] Freyre, crítico e ao mesmo tempo, simpatizante do monarca, assim descreve-o, lamentando a falta, nele, das características comuns aos homens do nosso período patriarcal; aspectos que geraram na sociedade o desejo de uma autoridade máscula, representada pelo poderio dos militares que proclamaram o fim da monarquia no Brasil: «uma figura de imperador que só aparecia aos olhos do público burguesamente revestido de sobrecasaca e cartola: a pé ou de carruagem também burguesa; de guarda-sol e de botinas pretas, ainda de burguês; nunca de farda; nem de espada; nem de botas; nem a cavalo. Menos imperial, portanto, em seu porte e em sua  aparência; que qualquer coronel da Guarda Nacional mais garboso; que qualquer militar mais elegante no seu modo de ser ou parecer marcial; que qualquer senhor de engenho mais instintivamente senhoril na sua maneira de montar a cavalo» (OeP, 254).
[2] Durante a fase de transição do sistema escravocrata ao livre, iniciado com a assinatura da Lei do Ventre Livre, durante meio século, apareceram inúmeras sociedades e publicações abolicionistas, recolhidas no anexo I, ao final desta dissertação.
[3] Conferir o anexo I, com a cronologia brasileira. Sobretudo os fatos a partir de 1826, ano em que o Brasil assinou o primeiro acordo com a Inglaterra, acordo sobre a extinção do tráfico negreiro.
[4] «os ingleses concorreram por meio de aperfeiçoamento da técnica de produção e de transporte animal – aperfeiçoamento tanto de ordem técnica como de ordem moral – e, principalmente, por meio de nova técnica de produção e de transporte – a mecânica, o vapor – para dificultar a sobrevivência da escravidão entre os homens. O que não significa que em sua luta, a princípio meio vaga, depois sistemática, contra a escravidão, no Brasil, não agisse por motivo de crua rivalidade econômica: a da produção por meio do braço escravo ou servil, por algum tempo mais barata que a mecânica ou a vapor, dada a situação do escravo em áreas tropicais em comparação com a do operário em áreas de clima frio e de vida mais cara que nos trópicos» (SeM, 623).
[5] SeM, 457.
[6] CG&S, 480.
[7] CG&S, 522.
[8] CG&S, 526.
[9] SeM, 626.
[10] Citando o testemunho de Florêncio de Abreu, carioca, crescido no Rio Grande do Sul, advogado, jurista, homem público, historiador e amigo de Getúlio Vargas testemunho arrebatado de um dos questionários, Gilberto Freyre transcreve: «“[...] quando comecei a ter alguma percepção das cousas a escravidão estava abolida  desde 1884 na Província ou pelo menos em minha casa, onde as serviçais, antigas escravas ou filhas de escravas, eram tratadas como pessoas da família [...]”» (OeP, 587).
[11] Recolhendo a resposta de Heitor Modesto, jornalista mineiro nascido em 1881, transcreve: «recorda ter recebido “ em menino, com grande simpatia, a abolição dos escravos”, pois os escravos eram “um anexo da família”, algum tempo ficando com os Modesto “o resto da vida, depois de libertos”, [...]» (OeP, 587).
[12] Outro testemunho, sempre recolhidos pelos mesmos questionários, foi o do fidalgo paulista, Antônio Carlos Pacheco, médico, cientista, parlamentar, nascido em 1898, já depois da Abolição. Gilberto Freyre firma a sua teoria, mesmo se, à pergunta sobre como receberia o casamento de filho ou filha, irmão ou irmã, com pessoa de cor, o entrevistado dá uma resposta, ao menos, contraditória: «lembra terem sido os seus antepassados, abolicionistas, e que em sua casa, viveram “tratadas como pessoas da família, velhas manás [pretas], cozinheiras e criadas, às quais votei a maior afeição”. Quanto a casamento de filha ou irmã sua com pessoa de sangue africano, diz ser “difícil conceber semelhante hipótese”; e evita definir-se sobre o assunto» (OeP, 616).
[13] OeP, 616.
[14] CG&S, 527.
[15] CG&S, 527.
[16] CG&S, 563.
[17] CG&S, 535.
[18] CG&S, 533.
[19] CG&S, 533.
[20] CG&S, 534.
[21] CG&S, 458.
[22] CG&S, 459.
[23] CG&S, 507-508.
[24] CG&S tornou público um documento, carta do rei de Portugal ao seu representante brasileiro, exigindo que os Colégios da Companhia acolhessem aos pardos. Com isso, confirma a existência de seletividade naqueles colégios. Freyre reproduz, na integra, o texto: «“Honrado Marquez das Minas Amigo”, escreveu em 1686 o rei de Portugal ao seu representante no Brasil: “Honrado Marquez de Minas Amigo. Eu Elrei vos envio muito saudar como aquelle que prezo. Por parte dos mossos pardos dessa cidade, se me propoz aqui que estando de posse de muitos annos de estudarem nas Escola publicas do Collegio dos Religiosos da Companhia, novamente os excluirão e não queirão admitir, sendo que nas escolas de Evora e de Coimbra erão admittidos, sem que a cor de pardo lhes servisse de impedimento. Pedindo-me mandasse que os taes religiozos os admittisem nas suas escolas desse Estado, como os são nas outras do Reyno. E pareceo-me ordenar-vos (como por essa o faço) que ouvindo aos padres da Companhia vos informeis se são obrigados a ensinar nas escolas desse Estado e constatando-vos que assim he os obrigareis a que anão excluão  a estes mossos geralmente só pela qualidade de pardos, por que as escolas de sciencias devem ser igualmente comuns a todo genero de pessoas sem excepção alguma. Escripta em Lisboa a 20 de novembro de 1686. Rey” (Cartas régias, doc. 881 bis, seção de manuscritos da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, 1686)» (CG&S, 501-502).
[25] CG&S, 390.
[26] CG&S, 390.
[27] CG&S, 502.
[28] OeP, 234.
[29] «para os observadores brasileiros nascidos ou formados na era colonial, uma das mais ostensivas alterações na organização social do país, desde a chegada ao Rio de Janeiro de D. João, vinha sendo precisamente o declínio do poder patriarcal familiar, como que substituído nas cidades pelo poder suprapatriarcal [...] não só do bispo como do regente, do rei e, afinal, do imperador. Ou do Estado, representado também pelo poder judiciário de magistrados revestidos de becas orientais para melhor enfrentarem, como rivais, o puro poder patriarcal dos chefes de família» (SeM, 424).
[30] SeM, 270.
[31] «tornavam-se maiores [com a urbanização] as possibilidades de ascensão social, nas cidades, para os escravos e para os filhos de escravos, que fossem indivíduos dotados de aptidão artística ou intelectual extraordinária ou de qualidades especiais de atração sexual» (SeM, 270).
[32] SeM, 678-679.
[33] SeM, 625.
[34] SeM, 385.
[35] «São Paulo foi provavelmente o núcleo brasileiro de população mais colorida pelo sangue semita. Não tendo chegado até lá os tentáculos do Santo Oficio, que entretanto se fixaram ameaçadoramente sobre a Bahia e Pernambuco, [...]» (CG&S, 136).
[36] «Com a decadência da economia apoiada no escravo, acentuou-se a importância do europeu que aqui viesse, não como simples negociante, como os ingleses desde os tempos coloniais, à sombra do Tratado de Methuen, nem como modistas e dentistas para europeizar o trajo das senhoras e consertar os dentes, sempre tão desgastados, do brasileiro, nem apenas como médico, parteira, mestre de dança, professor, governante, mas como operário, construtor, pedreiro, marceneiro, carpinteiro, pequeno agricultor, trabalhador de fazenda. Como operário ou artífice, que substituísse o negro e a indústria doméstica e, ao mesmo tempo, viesse satisfazer a ânsia, cada vez maior, da parte do mais adiantado burguês brasileiro, de europeização dos estilos de casa, de móvel, de cozinha, de confeitaria, de transporte» (SeM, 455).
[37] OeP, 207.
[38] OeP, 540.
[39] Os títulos – militares e académicos –, valorizados, passaram a ser como cartas da branquidade sociológica para muitos mestiços: «esse processo de valorização do homem de origem modesta ou de condição étnica socialmente inferior, pelo título académico, acentuou-se com o advento da República; e não apenas através das referidas academias ou escolas superiores, como através das academias ou escolas militares. Não tanto a da Marinha como a do Exército» (OeP, 536).
[40] OeP, 69.
[41] OeP, 1023
[42] OeP, 527.
[43] CG&S, 98.
[44] CG&S, 396.
[45] CG&S, 405-406.
[46] «o legítimo doce ou quitute: de tabuleiro foi o das negras forras. O das negras doceiras. Doce feito ou preparado por elas. Por elas próprias enfeitados com flor de papel azul ou encarnado. E recortado em forma de corações, de cavalinhos, de passarinhos, de peixes, de galinhas [...]. Arrumado por cima de folhinhas frescas de banana. E dentro de tabuleiros, quase litúrgicos, forrados de toalhas alvas como pano de missa. [...] Desses tabuleiros de pretas quituteiras, uns corriam ruas, outros tinham seu ponto fixo [...] os tabuleiros pousavam sobre armações de pau escancaradas em X. a negra ao lado, sentada em um banquinho. [...] as negras de fogareiro, preparando ali mesmo peixe frio, munguzá, milho assado, pipoca, grude, manuê [...]» (CG&S, 543-544).
[47] SeM, 297.
[48] CG&S, 505.
[49] SeM, 711.
[50] SeM, 759.
[51] «Também as leis portuguesas proibiam os indivíduos com sangue de mouro ou negro de ser admitido ao sacerdócio; e Pandiá Calógeras afirma que assim se praticou; que o sacerdócio foi no Brasil uma espécie de aristocracia branca, exclusiva e fechada. Talvez o tenha sido até o século XVIII. Observadores estrangeiros dos mais merecedores de fé – Koster e Walsh, por exemplo – deixam bem clara a existência – no século XIX, pelo menos – de padres com sangue negro; e alguns até, negros retintos. Um que Walsh viu celebrando aparatosa missa era tão preto que a cor escura do rosto – jet-black visage – contrastava fortemente com a alvura da renda e dos paramentos eclesiásticos. Notou entretanto o inglês que os seus gestos revelavam mais decoro que os dos sacerdotes brancos» (CG&S, 502-503).
[52] SeM, 792.
[53] SeM, 793.
[54] SeM, 743.
[55] SeM, 668.
[56] SeM, 247-248.
[57] «os mulatos desde o começo do século começaram a sair em grande número dos quadros, dos cortiços, e dos mucambos, onde imigrantes portugueses e italianos mais pobres foram se amigando com pretas ou pardas. Não só por nenhuma repugnância sexual desses europeus pelas negras [...] como pelo fato [...] das pretas, principalmente as minas, representarem considerável valor econômico: mãos de lavadeira, de boleira, de doceira, de cozinheira, de fabricante de bonecas de pano, capazes de os auxiliarem nas suas primeiras lutas de imigrante pobre. Os imigrantes portugueses e italianos, tão numerosos nos meados do século XIX, sobretudo nas cidades, tornaram-se, assim, grandes procriadores de mulatos» (SeM, 749).
[58] A revolta do menino externava-se: «a travessura, o roubo de fruta no sítio dos lordes, o furto de doce e de bolo dos tabuleiros das baianas, e das quitandas dos portugueses, as pedradas nas vidraças dos sobrados, a caricatura de muro e de parede, onde era, muitas vezes, o mulatinho, mais afoito que o preto, quem riscava a carvão ou mesmo a piche safadezas, desenhos de órgãos genitais, calungas, obscenos, palavrões» (SeM, 750).
[59] SeM, 744.
[60] SeM, 748.
[61] «O bom senso popular, a sabedoria folclórica, tantas vezes cheia de intuições felizes, mas outras vezes convicta de inverdades profundas – a de que a terra é chata e fixa, por exemplo; o bom senso popular e a sabedoria folclórica continuam a acreditar na mulata diabólica, superexcitada por natureza; e não pelas circunstâncias sociais que quase sempre a rodeiam, estimulando-a às aventuras do amor físico como a nenhuma mulher de raça pura –, melhor defendida de tais excitações pela própria fixidez de sua situação social, decorrente da de raça, também mais estável. Por essa superexcitação, verdadeira ou não, de sexo, a mulata é procurada pelos que desejam colher do amor físico os extremos de gozo, e não apenas o comum. [...] A mesma aura cerca a figura do mulato [...] Correm boatos sobre vantagens de ordem física que fariam dele ou do negro o superior do branco puro e louro no ato do amor. Vantagens ainda mais concretas que as de natureza priápica atribuídas à mulata, em comparação com a branca fina, considerada mulher mais fria. Se é certo que Hrdlicka, em estudos de antropologia comparada, atribui ao negro, em geral, superioridade no tamanho dos órgãos sexuais, essa superioridade nem sempre se tem verificado, nas pesquisas regionais empreendidas entre grupos de indivíduos de raça preta comparados com os de raça branca» (SeM, 743-744).
[62] SeM, 745-746.
[63] «E tendo sido esta a tendência [da importância mais do status religioso do que o de raça; do político mais do que o de cor], em nosso país, desde dias remotos, é natural que as gentes de cor [ameríndios e negros, bem como, os seus descendentes] venham se comportando menos como duas raças oprimidas pela branca, que vária ou diversamente, segundo status de cada indivíduo ou de cada família  na sociedade (classe), e no espaço físico-social ou físico-cultural (região). Que o diga, [...] Canudos onde se reuniram, em torno do conselheiro, indivíduos e família de procedência e situações étnicas diversas, cuja consciência de espécie era principalmente a de sertanejos estagnados em sua concepção ao mesmo tempo pastoril e patriarcal de vida [...]» (SeM, 488).
[64] SeM, 445-446.
[65] «Questão de constituição psicológica, como pretende McDougall. E fisiológica também, através da capacidade do negro de transpirar por todo o corpo, e não apenas pelos sovacos. De transpirar como se de todo ele manasse um óleo, e não apenas escorressem em pingos isolados de suor, como do branco. [E comentando tal afirmação, fundamenta-a em base em um artigo do professor L.W. Lyde, aparecido em The Spectator]. O que se explica por uma superfície máxima de evaporação do negro, mínima no branco (L.W. Lyde, «Skin colour», The Spectator, Londres, 16 de maio de 1931)» (CG&S, 370).
[66] CG&S, 319.
[67] CG&S, 336.
[68] SeM, 809.
[69] CG&S, 239-240.
[70] SeM, 612.
[71] SeM, 612.
[72] CG&S, 161.
[73] SeM, 796.
[74] SeM, 791.
[75] Em entrevista concedida em 15 de março de 1980, a Lêda Rivas, Gilberto Freyre sintetizou as razoes da verdade e relatividade da democracia racial e social do Brasil: «o Brasil [...] é o país onde há uma maior aproximação a democracia racial, quer seja no presente ou no passado humano. [...] Mas é um país de democracia racial perfeita, pura? Não, de modo algum. Quando fala em democracia racial, você tem que considerar o problema de classe, se mistura tanto ao problema de raça, ao problema de cultura, ao problema de educação. Você tem que considerar que isolar os exemplos de democracia racial das suas circunstâncias políticas, educacionais, culturais e sociais, é quase impossível. [...] o erro é de base. Porque depois que o Brasil fez o seu festivo e retórico 13 de maio, quem cuidou da educação do negro? Quem cuidou de integrar esse negro liberto à sociedade brasileira? [...] estamos, hoje, com descendentes de negros marginalizados, por nós próprios. Marginalizados na sua condição social. E não se pode dizer que exista um preconceito puramente racial. [...]. Não há pura democracia no Brasil, nem racial nem social, nem política, mas, repito, aqui existe muito mais aproximação a uma democracia racial do que em qualquer outra parte do mundo. Talvez haja uma situação assim no Havaí, mas o Havaí é uma il
hota e o Brasil é um continente» (L. Rivas, «O anarquista de Apipucos», Viagem em torno de Gilberto Freyre, [CD-ROM 1], Recife, 2000).
[76] CG&S, 25.
[77] «Por menos inclinados que sejamos ao materialismo histórico [...] temos que admitir a influência considerável, embora nem sempre preponderante, da técnica de produção econômica sobre a estrutura da sociedade; na caracterização da sua fisionomia moral» (CG&S, 33). «Boas salienta o fato de que nas classes de condições econômicas desfavoráveis de vida dos indivíduos desenvolverem-se lentamente, apresentando estatura baixa, em comparação comas classes ricas. Entre as classes pobres encontra-se uma estatura aparentemente hereditária, que, entretanto, parece suscetível de modificar-se, uma vez modificadas as condições de vida econômica. Encontraram-se – diz Boas – proporções do corpo determinadas por ocupações, e aparentemente transmitidas de pai para filho, no caso do filho seguir a mesma ocupação do pai (F. Boas, Anthropology and modern life, Londres, 1929)» (Ibid., 55).
[78] CG&S, 24.
[79] CG&S [Record], 11.