O negro escravo na sociedade patriarcal rural e semi-rural brasileira
A sociedade
patriarcal dos três primeiros séculos, descrita em particulares na trilogia
freyriana, apresenta uma característica marcante: a monocultura da cana de
açúcar, modo de produção que se espalhou – levando consigo, a colonização –,
por diversas regiões do Brasil, influenciando, não somente nas zonas onde ela se
deu de forma mais intensa, constante e longa, a saber: Pernambuco, Bahia e Rio
de Janeiro, mas, também, em todo o território nacional[1],
surpreendendo pelas suas semelhanças, não obstante as diferenças regionais[2].
A seu tempo, a atividade agrícola latifundiária e monocultora exigiu a
escravidão, dividindo a sociedade entre senhores e escravos. Com a afirmação
dela, delineou-se a sociedade colonial brasileira rural; e, paulatinamente, com
o desenvolvimento do comércio, a partir do século dezoito, fez surgir uma nova
classe social, a dos comerciantes, que, mantendo o vínculo com a atividade
agrícola, isto é, com a casa-grande, viviam nas cidades, e que, erguendo-se,
fariam multiplicar os sobrados do Brasil, substitutos da casa-grande, como
símbolo do poder patriarcal[3].
Patriarcal que, na trilogia freyriana, é o branco: o branco, mesclando e
mesclado pela infinidade de raças e culturas trazidas para o Brasil; o branco pater famílias já constituído, ou que,
constituiu-se como tal pela consecução da nativa e das mulheres estrangeiras; o
branco português, corruptor dos seus dominadores ibéricos e corrompido pelas
necessidades impostas pela sociedade que, segundo Freyre, ele criou no Brasil[4].
Uma sociedade alicerçada na família estável, que não pôde excluir a poligamia;
alicerçada numa economia baseada no labor agrícola, principalmente na
monocultora, e no trabalho escravo.
Partindo do ponto-de-vista freyriano, que é o mesmo
ponto-de-vista do colonizador branco, o presente capítulo buscará, uma vez apresentada,
no capítulo anterior, a situação inicial do negro no mundo colonial português –
em especifico, o brasileiro –, reconstruir os passos dados pelo escravo negro,
em direção à conquista de uma maior autonomia; do status de coisa àquele de
pessoa.
1. A escravidão como suporte da colonização
Para Freyre,
dentre os muitos críticos do sistema de colonização do Brasil por meio das
capitanias hereditárias, que gerou a escravidão, somente Varnhagen apontou uma
solução alternativa à adotada pela coroa portuguesa, a doação de pequenas
porções de terra[5]. Mesmo assim, ao argumento
Varnhageniano, que se fundava na forma de colonização da Madeira –
e dos Açores –, Freyre rebate com as
diferenças que tornaram incomparáveis, ambas realidades: a imensa extensão
territorial, as inconstâncias do clima e a ação devastadora dos insetos – em
especial da saúva –, que impediriam uma povoação composta de poucos elementos[6].
Tudo
concernente ao serviço braçal, pesado – por causa da escassez do elemento
branco –, competia ao escravo negro; enquanto eram reservadas ao colono
português a ação articuladora das tarefas e a voz senhorial do comando. Freyre,
outrossim, não esconde que o colono, herdeiro da mentalidade moura, julgava o
esforço físico, isto é, o trabalho no eito, uma atividade inferior. Daí Freyre
dizer-nos que no senhor – e na senhora –, foi sendo desenvolvida uma
característica, hoje peculiar, do caráter brasileiro: o gosto de mandar e o
hábito de falar gritando, sobressalente, sobretudo nas populações do norte,
mais influenciadas pela escravidão. Por isto – conclui Gilberto Freyre, fazendo
referência a Antonil –, no eito, o escravo foi «mão e pés do senhor de engenho»[7].
atuando desde o processo de produção e de preparação da terra até o escoamento
da produção.
Vindos para o
Brasil como escravos, para trabalharem, principalmente, na lavoura da cana, os
negros dos dois primeiros séculos receberiam, aqui, uma qualificação dependente
da sua capacidade de acomodação, de sua doçura, de sua beleza plástica e de
suas habilidades manuais. Alguns negros seriam elevados à condição de escravos
domésticos, entrando para o serviço da casa-grande e, pouco a pouco, passando
da condição de corrompido à de corruptor da cultura do então brasileiro, a
saber, o branco português. Também, receberiam um tratamento diferenciado em
relação aos escravos do eito. Seriam beneficiados com uma assistência religiosa
e moral – tão importante para a manutenção da pureza do povo –, sinal do desejo
e necessidade dos brancos de co-dividirem a empreitada da edificação
econômico-social da colônia[8].
Sendo assumido
como doméstico pela casa-grande, o escravo era introduzido num mundo que, mesmo
não negligenciando a relação dominador e dominado, tangia para um grau de
relação aberto ao sentimento, em que as relações de cor e de poder econômico
vêm superadas pelo afeto e, seguindo o raciocínio freyriano, pela necessidade.
Mas, quem foi que disse que no útil não pode subsistir o agradável? Poderíamos
indicar a docilidade do português no trato com os negros escravos, fusão do
útil no agradável, herança do seu contanto com os negros maometizados nas suas
colônias africanas; docilidade que lhe valeu o pranto dos seus escravos no
leito de morte, no funeral e no enterro[9].
De sua parte,
o escravo deu a sua parcela de contribuição correspondendo a tais afagos, com
ainda maior maleabilidade e doçura; o que permite a Freyre afirmar que «verificou-se entre nós uma profunda
confraternização de valores e de sentimentos»[10]: o branco mesclou-se de
sentimentos coletivos, vindos dos negros; o negro, por sua vez, intercalou seus
sentimentos coletivos com a tendência privatista e individualista, oriunda da
casa-grande.
2. O escravo negro na vida sexual e de família do brasileiro
O negro
escravo, que consumiu a sua vida na casa-grande, sendo vítima, corrompeu o
senhor, incorporando na vida deste, muito do seu jeito de ser, da sua cor, do
seu modo de embeber-se na cultura dominante, filtrando-a, muitas vezes, sem o
querer. Da vida sexual àquela religiosa, o escravo negro influenciou – usando
uma expressão freudiana –, até mesmo inconscientemente, na vida da casa-grande.
Se a produção econômica condicionou a relação entre eles, a falta de mulher
branca criou um campo de confraternização, mesmo sendo, sempre, relação entre
senhor e escravo. Por outro ângulo, a cotidianidade, na casa-grande – diz-nos
Freyre –, recriou o sistema de relações, estreitando laços e contribuindo para
a geração do Povo Miscigenado.
Os escravos
domésticos, escolhidos, sobretudo, entre as mulheres, serviam na casa, e
findavam, pois – não esqueçamos que o critério plástico era dentre todos, um
dos mais observados –, por servirem aos senhores e às sinhazinhas da
casa-grande, como elementos de satisfação sexual e reprodutiva, não excluindo o
homossexualismo[11]. Igualmente, ele não nega
que, dentre estes escravos, alguns gozavam de preferência, na hora da seleção:
os mais claros e mais belos tinham prioridade; daí a maioria ser Minas e Fulas;
estes últimos, apelidados de negros de raça branca[12].
Remetendo-nos à afirmação de Araripe Junior, Freyre elenca as virtudes da negra
mina – pode-se dizer que, também da fula –, que a permitiram ser considerada
como excelente companheira: «sadia,
engenhosa, sagaz e afetiva»[13].
Se, no início,
o desfrutamento sexual da negra
escrava foi privado de sentimento afetivo e de amor, com o tempo, a sua prole,
mulata, fruto da ação libidinosa do colono branco, passava a ter prioridade no
serviço de casa, mesmo não estando isenta de ser vendida, como os demais
escravos, que gozavam, também, de preferência, na hora de serem alforriados[14].
Atuando na
cozinha, a escrava doméstica negra logrou inserir os vegetais na dieta, até
então, pobre do português, fazendo infiltrar a cultura negra na economia e na
vida doméstica do brasileiro, por meio da culinária. A influência na culinária assumiu
tamanha proporção que, hoje, os pratos tipicamente brasileiros – como a farofa
e o vatapá –, resultam da técnica culinária africana[15].
A especialização do escravo no serviço da cozinha chegou a tal ponto que,
«reservaram-se sempre dois, às vezes
três indivíduos, aos trabalhos de cozinha. De ordinário, grandes pretalhonas;
às vezes negros incapazes de serviço bruto, mas sem rival no preparo de
quitutes e doces. Negros sempre amaricados; uns até usando por debaixo da roupa
de homem cabeção picado de renda, enfeitado de fita cor-de-rosa; e ao pescoço
tetéias de mulher. Foram estes os grandes mestres da cozinha colonial;
continuaram a ser os da moderna cozinha brasileira»[16].
Os elogios de CG&S ao negro, vêm desmentir a
acusação de ter sido, tal elemento, portador das maldades que afligiram o mundo
do brasileiro, sobretudo, doenças e parasitas. Todavia, fica remarcada a
condição do negro como portador de certas doenças vindas da África[17];
mas, sobretudo, como vetor de outras tantas, pois, se por meio dele elas
proliferaram-se, foi somente porque ele tornou-se patogênico a serviço do
senhor. Por isso é que Freyre diz: «não
foram poucas as doenças de brancos que os negros domésticos adquiriram; e as
que se apoderaram deles em consequência da má higiene no transporte da África para a América ou das novas condições de habitação e de
trabalho forçado»[18].
A propósito de
doenças, Freyre busca mostrar que algumas, como a sífilis, muito difusa no
Brasil colonial, foram sementes depositadas pelo branco da casa-grande na
genitália da negra[19],
e dela, promíscua por ser escrava, passaram a outros brancos e chegaram até a
senzala, contribuindo, irresponsavelmente, para a deformação da plástica e para
a depauperação da energia econômica do mestiço brasileiro[20].
Com isto, o círculo fechava-se, sifilizando o Brasil colonial, pois, estas
mesmas negrinhas serviam de agentes da precoce maturação sexual do jovem
donzelo – menino ou adolescente – dos engenhos, logo depois de eles terem
abandonado os hábitos sádicos, com o negrinho de jogo, e os hábitos zoofílicos[21].
Freyre vê no interesse económico do pai, senhor de escravos, a razão da
indulgência com o filho – filho
temeroso do pai a tal ponto que, para fazer a primeira barba, deveria pedir-lhe
permissão; sem falar da necessidade de ocultar-se do senhor, para poder fumar
um cigarro; que dirigindo a palavra aos pais, reverentemente chamava-os de senhor-pai e senhora-mãe[22]
–, antecipado nas funções genésicas; afinal, ao emprenhar as negras, que abriam
as pernas cumprindo uma ordem, aumentavam o rebanho e o capital paternos, sem
falar no orgulho do pai, por possuir um filho garanhão[23].
Além do pai e do filho, os padres e frades também contribuíram para a
assunção da negra escrava da cozinha para a cama. «No
século dezesseis, com exceção dos jesuítas – donzelões intransigentes – padres
e frades de ordens maiores mais relassos em grande número se amancebaram com
índias e negras»[24],
gerando uma multidão de filhos ilegítimos, muitos destes, criados na
casa-grande e nos orfanatos[25].
A propósito da fé portuguesa, assimilada pelos negros, Freyre debulha uma
série de elementos de origem africana e maometana que foram incorporados pelos
negros escravos à religião oficial da colônia[26]; sem
falar no próprio sincretismo manifestado pela presença de elementos das
religiões africanas, no catolicismo da casa-grande, e das religiões
afro-brasileiras, em geral; sinal de que, nem tudo foi uma perfeita assimilação[27].
A assimilação da religião do senhor, perfeita ou não, deu ao escravo um outro
ponto de apoio – antecipada, apenas, pelo associativismo quilombola –, em
prol de sua emancipação. As irmandades, fundadas por pretos, para pretos e
escravos, proliferaram-se no Brasil colonial, ajudando aos confrades,
cooperativamente, a viverem a religiosidade e fazerem, por meio de um caixa
comum, muito preto e escravo, forro. Foi no sentido de alforriar os negros que,
em Minas Gerais,
em Ouro Preto,
eles organizaram-se, no século dezoito, acabando por se tornarem donos da mina
da Encardideira ou Palácio Velho. Este era o espírito que movia a Irmandade de
Santa Efigênia, diz-nos Gilberto Freyre[28].
Enquanto floriam na colónia agremiações religiosas que exigiam a pureza de raça
por parte dos seus confrades, em algumas «cidades,
vilas mineiras de então, certas associações eclesiásticas só admitiam brancos
legítimos com um “pedigree” de, pelo menos, quatro avós lusitanos»[29];
neste mesmo tempo, sobretudo a partir da segunda metade do século dezoito,
surgiam irmandades de negros e escravos, para negros e escravos, que, além de
custodiar o direito de reunirem-se em agremiação religiosa, buscavam alforriar
os negros membros, sempre buscando atuar, em espírito cooperativo[30].
A mucama, na
trilogia freyriana, foi quem melhor acomodou-se, ao lado da mãe-preta e do
malungo, à vida da casa-grande, ao serviço doméstico[31].
Nela, os sentimentos dos senhores, das senhoras e das sinhás, encontraram
acolhida. Freyre chega a queixar-se de que, juntamente com os confessionários,
a mucama abafou a história sentimental da casa-grande. A mucama ouviu os
segredos de suas senhoras, suas paixões, sendo inclusive, a grande alcoviteira
de senhoras e sinhazinhas não tão puras e santas como se poderia pensar,
sobretudo, se levarmos em conta a grande exclusão social que estas sofreram,
rompida somente com o advento das cidades e de suas ruas[32].
Benquistas
pelas sinhás, as mucamas participavam aos raptos e fugas das sinhazinhas
desejosas de casarem-se por amor, ao invés de entregarem-se, aos treze ou
quatorze anos, a homem arranjado
pelos pais[33]. Negros e negras
alcoviteiras que, contribuindo para a felicidade dos neo-esposos, eram dados a
estes como dotes de casamento, tratados com uma certa gratidão por eles, e não
raro, alforriados[34].
Outras grandes
prestigiadas pela casa-grande, eram as mães-pretas. Gozavam de respeito,
sobretudo, depois de alforriadas, e quando chegavam à velhice, «se fazia todas as [suas] vontades: os meninos tomavam-lhe a bênção; os
escravos tratavam-nas de senhoras; os boleeiros andavam com elas no carro. E
dia de festa, quem as visse anchas e engangentas entre os brancos de casa,
havia de supô-las senhoras bem nascidas; nunca ex-escravas vindas das senzalas»[35].
Parece,
analizando os textos freyrianos, que estas pretas eram por demais idealizadas,
mas, ele dá a razão para tal tomada de posição. Dado que a menina branca
casou-se jovenzinha, aos treze ou catorze anos, gerando, quase que no mesmo
ano, o seu primogênito, eram estas pretas que cuidavam da prole, por causa da
inexperiência da jovem senhora que aprendia somente a mandar, transcurando os cuidados do papel de
mãe, priorizando aquele de senhora[36].
Enquanto
criavam os filhos legítimos da casa-grande, isto é, os brancos, elas
introduziram nestes, elementos de cujo mundo provinham; impuseram aos recém-nascidos, a
proteção mística[37]; modificaram canções de
berço portuguesa, corrompendo palavras, «adaptando-as
às condições regionais; ligando-as às crenças dos índios e às suas»[38].
As histórias
portuguesas, na boca das negras velhas, e das amas de leite, muitas destas,
contadoras de histórias itinerantes, foram enriquecidas, adornando o imaginário
dos que as escutavam, somando às histórias em estilo europeu, histórias de «madrastas, de príncipes, gigantes,
princesas, pequenos polegares, mouras encantadas, [...]»[39],
às de «bichos confraternizando com
pessoas, falando como gente, casando-se»[40].
Porém, a maior contribuição destas pretas mães-de-leite foi, sem dúvida, a
corrupção da áspera língua portuguesa. A corrupção começou com a nítida
distinção do português falado na senzala, aprendido de ouvido, e do português
da casa-grande, aprendido também de ouvido, mas com uma base gramatical. Foi a
primeira metamorfose da língua, africanizada, já, no modo de captar a pronúncia
da casa-grande.
A dualidade
lingüística representada pela língua portuguesa da senzala, de um lado, e a da
casa-grande, de outro, foi diminuindo quando os senzalados entraram em contato
mais estreito com a da casa-grande, por meio das relações entre «a ama negra e o menino branco, da mucama com
a sinhá-moça, do senhorzinho com o moleque»[41].
Ao impor a
língua aos boçais, os ladinos e a casa-grande foram incorporando uma série de
vocábulos de origem africana à língua falada[42].
Com isto, a atual língua brasileira, tanto na pronúncia, quanto no rico
vocabulário, é fruto da influência, sobretudo, de Portugal e do Continente
Africano; mas, sem excluir, também, o influxo do mundo indígena[43],
nativo, e de outras correntes imigratórias: ciganos, espanhóis e, na fidelidade
a Freyre, da grande influência do clima, que amoleceu a pronúncia, adocicando a
língua.
À ama negra,
cabe o grande mérito de ter amolecido a pronúncia; ela fez,
«muitas vezes com a palavra o mesmo que
fez com a comida: machucou-as, tirou-lhe os espinhos, os ossos, as durezas só
deixando para a boca do menino branco as sílabas moles. Daí esse português de
menino que no norte do Brasil, principalmente, é uma das falas mais doces deste
mundo»[44].
Os nomes
próprios, recebendo um diminutivo, tornaram-se mais dengosos, amolecidos[45],
tendo, não só os nomes, mas as palavras, em geral, uma pronúncia menos nasal do
que a de Portugal. Mesmo assim, não podemos pensar que tais mudanças deram-se
na ausência de conflitos, passivamente. Foi, ainda, a ama negra quem ensinou ao
menino as primeiras palavras de português errado; «ensinou o primeiro “padre nosso”, a primeira “ave-maria”, o primeiro
vôte! ou oxente»[46].
Os padres-mestres, os capelães de engenho e os jesuítas, defendendo e
difundindo a pureza da língua e da gramática no Brasil colonial, contribuíram
para o aumento da disparidade da língua falada e da língua escrita, pois não
admitiam ingerências de vocábulos estranhos àqueles existentes na gramática
oficial; mas, principalmente, não admitiam que, senhores e senhoras brancas
falassem como a criadagem senzalada. Com isso, reagiam – enrijecendo ainda mais
o ensino da gramática e os métodos punitivos –, às ingerências no modo de falar
a língua portuguesa, por parte dos meninos e meninas da casa-grande[47].
A relação
entre os senhores e os escravos sentiu-se abalada com o crescente uso de
animais na lavoura e na casa-grande, enquanto o trabalho escravo deixava de ser
útil[48];
e assume um caráter arcaico e obsoleto com a adoção da máquina em âmbito
agrícola[49]. O golpe de misericórdia,
dado não só à relação, mas, ao inteiro sistema escravocrata, foi desencadeado
pela legislação, que progressivamente, foi extinguindo o comércio escravista; e
culminou com a Lei da Abolição da Escravatura no Brasil[50].
Todavia, permaneceu útil e agradável a relação sexual entre brancos e negros,
afinal, brancas, sempre faltaram; pois, a doçura, de trato e de sabor da carne,
muito influenciou na hora de escolher que tipo de negro entraria na vida social
do branco, como testemunhou Oliveira Viana, num trecho recolhido em CG&S:
«Oliveira Viana salienta que em Minas Gerais
observa-se hoje nos negros “delicadeza de traços e relativa beleza”, ao
contrário das “caricaturas simiescas […] abundantíssimas na região central da
baixada fluminense”. […] Foram essas minas e fulas [e identifica a
predominância etnia do negro mineiro] – africanas não só de pele mais clara,
como mais próximas, em cultura e domesticação
dos brancos – as mulheres preferidas, em zonas como Minas Gerais, de
colonização escoteira, para amigas, mancebas e caseiras dos brancos. […] Outras terão permanecido escravas, ao
mesmo tempo que amantes do senhor branco: “preferidas como mucamas e
cozinheiras” (J.F.O. Viana, Evolução do povo brasileiro, São Paulo,
1933)»[51].
3. O negro escravo de rua e de ganho na vida do brasileiro
No passado
sócio-histórico do escravo negro, ele foi ocupando, gradualmente, papéis
sociais que o avizinharam ao seu senhor. Se, inicialmente, o negro era
desejado, quase que exclusivamente, pelos seus dotes físicos, para servir ao
infindável trabalho do eito, paulatinamente, ele foi sendo assumido como
escravo doméstico, e com o advento da semi-ruralidade do senhor de engenho,
como escravo de rua. Mais além da casa-grande, quando apareceram as primeiras
ruas[52],
dividindo as casas, fazendo eclodir as cidades, o negro desfilou nestas,
trabalhando para levar ao seu senhor os frutos da renda jornaleira; tão escravo
quanto o eram os do eito e os domésticos, gozando de um status superior ao do
escravo do eito, e inferior ao doméstico. Este último tinha, geralmente, ao seu
favor, a ligação afetiva com a família da casa-grande.
Este tipo de
escravo, chamado por Freyre, escravo de ganho e escravo de rua, cresceu
numericamente, durante a decadência do Brasil colonial e durante todo o período
imperial brasileiro. Muito antes, já era normal que, dentre os negros
domésticos, alguns fossem destinados a transportarem os seus senhores, suas
sinhás e sinhazinhas, em passeio, visitando parentes de outras fazendas e
engenhos, vilas e cidades; indo à missa. Eram estes negros, os carregadores de
palanquins[53]. No século dezenove, com
o advento das ruas e das novidades técnicas da Europa, dentre elas, as
carruagens, os escravos carregadores de palanquins foram elevados à situação de
boleeiros ou cocheiros, que, «na
hierarquia dos escravos [...] passaram a ocupar um dos primeiros lugares»[54].
Com a crescente urbanização das cidades, influenciada pela chegada da família
real portuguesa, e pela instalação da corte em terras brasileiras, tais
serviços – sinal de luxo, magnificência, fausto e, em síntese, sinal de
opulência –, ganharam ainda mais importância[55].
Em relação à
outra classe de escravos negros, os negros de ganho, Freyre salienta: não era
comum que os senhores das casas-grandes usassem o seu contingente escravo para
tais fins; foram os senhores dos sobrados, e logo, os senhores das cidades, que
começaram a requererem dos escravos tais serviços[56].
Ainda, não eram somente estes senhores; eram aquelas pessoas livres, mas, sem
poder econômico, tendo apenas dinheiro para comprar um ou poucos escravos, as
que faziam tal tipo de exploração da força-trabalho escrava, restando em casa à
espera deles, com os ganhos do dia. Debret, em viagem pelo Brasil, retratou a situação
dessa classe de negro no seu Voyage
pittoresque et historique au Brésil, e Gilberto Freyre se serve para
ilustrar plasticamente tal afirmação[57].
Aqueles que os
usavam para tais fins, empregavam-nos nas mais diferentes tarefas. De fato,
Freyre confirma que, «os negros e
as negras chamados de ganho serviam para tudo no Brasil: vender azeite de
carrapato, bolo, cuscuz, manga, banana, carregar fardos, transportar água do
chafariz às casas dos pobres […]»[58]. Nas cidades brasileiras
competiu-lhe os serviços mais imundos, dentre os quais, o de ter que carregar,
na cabeça, os barris de excrementos – conhecidos como tigres –, das casas para
as praias[59].
O elenco das
moléstias que predominavam entre os operários escravos do Rio de Janeiro –
escravos de rua e de ganho –, no século dezenove, antes ainda da abolição,
reforça a condição do negro como vetor, mais do que como exportador de doenças
africanas para o Brasil; reforça, também, que, até mesmo nas ruas, eram
explorados. Tais perturbações da saúde, vêm assim enunciadas:
«Sífilis, hipertrofia do coração,
reumatismo, bronquites, afecções das vias aéreas, pneumonias, pleurises,
pericardites, irritações e inflamações encefálicas, tétano, hepatites,
erisipelas, ordinariamente dos membros inferiores e dos escrotos e aí
determinando a hipertrofia e degenerescência fibroalardocia do tecido vascular
subcutâneo, extrevasões nas diversas cavidades sonoras, raras vezes nas
articulações e frequentemente no abdómen, na pleura, no pericárdio, na serosa
testicular, nos ventrículos cerebrais determinando paralisia; e ainda
tubérculos pulmonares, febres intermitentes, opilação. “os vermes e
particularmente a toenia, e as ascaris lumbricóides abundam muito,
acrescenta Jobim” (J.M. da cruz Jobim,
Discursos sobre as moléstias que mais
afligem a classe pobre do Rio, sessão pública da Sociedade de Medicina, Rio
de Janeiro, 1835)»[60].
Aspecto
molesto da escravidão de ganho era, também, a prostituição. Muitos dos
cronistas da escravidão dão-lhe muita importância – e, com eles, Freyre –, sublinhando
que foi, sempre, prostituição «das
negras e mulatas exploradas pelos brancos»[61].
Corrigindo posições como as de Gentil De La Barbinais, que afirmava
serem as senhoras abastadas as grandes responsáveis de tal comércio, Gilberto
Freyre, sem negar La
Barbinais, afirma que, mesmo admitindo esta exceção, é importante
reconhecer que não foram tais senhoras, mas, brancas desclassificadas, que
assim exploravam as escravas, tirando lucro da luxuria dos marinheiros e dos
senhores e rapazes das casas-grandes e dos sobrados[62].
Se alguém lucrou com a depravação da negra escrava, foram as mulheres
brancas. Explorada pelo branco, serviu para a manutenção da virtude casta da
mulher branca; virtude confirmada pelo adágio popular brasileiro, registrado
por H. Handelmann:
«branca para casar, mulata para foder,
negra para trabalhar (H. Handelmann,
História do Brasil, Rio de Janeiro,
1931); ditado no qual se sente, ao lado do convencionalismo social da
superioridade da mulher branca e da inferioridade da preta, a preferência
sexual pela mulata»[63].
Como nem tudo
foi amargura, tocou, também, às negras escravas adoçar a vida das cidades,
fazendo e vendendo, sempre a lucro dos seus senhores, uma infinidade de doces e
outras iguarias[64]. E, como se não bastasse,
foi o negro risonho, diz-nos Freyre, quem alegrou a vida doméstica dos
melancólicos senhores das casas-grandes e dos sobrados; de fato, o mundo
colonial e imperial, ainda escravocrata, foi embalado por bandas de música,
coros compostos por escravos africanos; sem falar nos negros acrobatas e
palhaços de circo, que, arrancavam gargalhadas do português melancólico[65].
4. O declínio do sistema escravocrata
Com o
desenvolvimento do comércio, e com as leis restritivas da venda negreira, os
mercantes de escravos, já enriquecidos, começaram a investir no melhoramento
mecânico do cultivo da cana, incrementando, assim, a atividade comercial nas
vilas e cidades, abrindo as portas para a expansão urbana. Ainda antes, em Minas Gerais, no
século dezoito, a descoberta das minas dividiu o tráfego negreiro, antes,
exclusividade dos senhores de engenhos e fazendas, com a exploração de minerais
preciosos. Os ingressos mais rápidos, geraram diminuição do interesse em
investimento agrícola, enfraquecendo o poderio daqueles senhores.
O desembarque
em terras brasileiras da família real portuguesa, em 1808, agravou, ainda mais,
a situação: as cidades incharam, tornando-se, centros de cultura e de comércio.
Daí em diante, foi tudo uma questão de tempo: a abolição da escravatura
desarticulou a economia patriarcal brasileira[66];
a Proclamação da República a descaracterizou quando desintegrou um dos seus
melhores valores, um dos seus pilares, a união entre a casa-grande e a capela,
símbolo da pureza de fé e dos valores do sistema patriarcal agonizante[67].
De fato, a República trouxe consigo a drástica separação das estreitas relações
entre a Igreja e o Estado. O velho sistema, encarnado na casa-grande, na
senzala e na capela, estava com os dias contados; mas, não obstante tudo,
deixaria seqüelas. Mas, realmente, a desintegração do patriarcado no Brasil,
iniciada quando este deixou «de ser quase
exclusivamente agrário, assumindo outros aspectos, tornando-se, ao mesmo tempo,
menos absorvente do indivíduo e das instituições teoricamente extrapatriarcais»[68],
não pôs fim ao mesmo; ele sobreviveu, mutando-se – primeiro durante o
Império, e depois durante a República –, em outras formas de patriarcalidade, «respeitada em várias das suas
insígnias de sexo, de raça e de classe superior e em diversos dos seus símbolos
mais atuantes»[69].
Com a
assinatura da Lei da Abolição da Escravatura, o Brasil deparou-se com um
contingente de negros, forros ou escravos, assimilados, acomodados, ou
integrados no sistema colonial e imperial, que haviam, gradualmente, impresso
no novo povo, não só o fruto da força dos seus braços, mas, dos seus ventres,
da sua cor, do seu modo de ser. Os negros viram ser incutida na sua negritude a
inferioridade: inferioridade em relação ao branco colonizador. Conseqüências:
dentre eles, muitos passaram a ser – ou a desejarem ser –, brancos, ou, ao
menos, quase-brancos; quase brancos na cor, nos costumes, na rejeição da
própria raça; outros, combateram – e combatem – buscando superar estas
barreiras erguidas em nome do preconceito e da conveniência de um sistema que,
mesmo de forma camuflada, subsiste, ainda hoje, na sociedade brasileira.
A eugenia e
todos os fatores que contribuem para a vantagem dos que detêm a hegemonia –
seja ela econômica ou social – são, todavia, os grandes fatores que contam, na
hora de acolher o negro na sociedade brasileira. Se o negro, destinado a
consumir suas energias no eito da cana, foi assumido como escravo doméstico, o
fator determinante foi a necessidade. Depois de atuar na casa-grande é que
surgiram os laços afetivos, normal nas relações humanas; laços que foram
rompendo as barreiras impostas pelo status do negro: o de escravo. Os fatores,
sobretudo estéticos, conduziram estes escravos, negraria da casa-grande e da
senzala, à cama e às fantasias luxuriosas do senhor, da senhora; dos
senhorzinhos e das sinhazinhas, alimentando, ainda mais o espírito sádico do
elemento português.
A necessidade
e a comodidade do senhor de engenho deram outra função ao negro, a de trabalhar
na rua, a serviço da casa-grande. Como carregador de palanquin, como vendedor e
vendedora de comidas, como carregador de mercadorias, o negro era, sempre,
fonte de renda, isto é, de ganho. Até quando oferecia o seu corpo, enquanto
escravo, era para o bem das rendas do seu patrão, senhor de escravos. Todavia,
a Abolição trouxe novos rumos para uma estrada já percorrida por quase quatro
séculos; rumos que serão analisados no próximo capítulo, que trata da vida do
negro livre no Brasil moderno e contemporâneo. Mas, vale salientar que: não
existem soluções simples para problemas complicados; e, seguindo o pensamento
freyriano, a Abolição foi uma solução simples que não resolveu um problema
complicado: a escravidão negra no Brasil.
[1] «Não nos esqueçamos, a
propósito das áreas e subáreas, ou regiões e sub-regiões, em que a influência
do patriarcado monocultor e escravocrata teve seus centros mais intensos e de
vida mais constante e longa, em Pernambuco, na Bahia e no Rio de Janeiro foi,
no norte, até a subárea amazônica, no sul, até o Rio Grande do Sul e, no
centro, até Mato Grosso. Constituiu assim aquele sistema – talvez o de maior
influência na fixação de características nacionais e gerais no Brasil – um
sistema, um complexo transregional e não apenas regional, como supõem alguns
pesquisadores de história e sociologia da gente brasileira. [...] vejam-se os
estudos de caráter sociológico ou parassociológico de José Veríssimo e do
professor
[3] «Nos documentos do século
XVIII, já se recolheu evidências de uma nova classe, ansiosa de domínio:
burgueses e negociantes ricos querendo quebrar o exclusivismo das famílias
privilegiadas de donos simplesmente de terras, no domínios sobre as câmeras ou
os senados. Aventureiros enriquecidos nas minas, alguns deles reinóis, dos
chamados pés-de-chumbo, bem sucedidos nos negócios, marinheiros que começaram vendendo alho e cebola, ou mascateando
pelo interior e pelas ruas, para terminarem mercadores
de sobrados – são esses os novos elementos brancos, ou quase brancos,
ansiosos de domínio» (SeM, 111).
[4] «Engana-se, ao nosso ver, quem supõe ter o
português se corrompido na colonização da África, da Índia e do Brasil. Quando
ele projetou por dois terços do mundo sua grande sombra de escravocrata, já
suas fontes de vida e de saúde econômica se achavam comprometidas. Seria ele o
corruptor e não a vítima. Comprometeu-o menos o esforço, de fato extenuante
para povo tão reduzido, da colonização dos trópicos, que a vitória, no próprio
reino, dos interesses comerciais sobre os agrícolas. […] A escravidão, que o
corrompeu, não foi a colonial, mas a doméstica. A de negros de Guiné que
emendou com a de cativos mouros» (CG&S,
319).
[5] «criticando o caráter latifundiário e
escravocrata dessa colonização, [Varnhagen] lamenta não ter seguido entre nós o
sistema das pequenas doações. “Com doações pequenas, a colonização se teria
feito com mais gente e naturalmente o Brasil estaria hoje mais povoado [...];
sua população seria porventura homogênea e não teriam entre si as províncias as
rivalidades que, se ainda existem, procedem, em parte, das tais capitanias” (Varnhagen, Historia Geral do Brasil, cit.)» (CG&S, 323).
[6] E
assim conclui: «Tenhamos a honestidade de reconhecer que só a colonização
latifundiária e escravocrata teria sido capaz de resistir aos obstáculos
enormes que se levantariam à civilização do Brasil pelo europeu. Só a
casa-grande e a senzala. O senhor de engenho rico e o negro capaz de esforço
agrícola e a ele obrigado pelo regime de trabalho escravo» (CG&S, 323).
[7] CG&S, 517. Os
holandeses, no século dezessete, aos instalarem-se em Pernambuco, descobriram
que era necessário basearem-se no trabalho escravo, como já vinha sendo feito
pelo português: «escravos em grande número: para plantarem a cana; para a
cortarem; para colocarem a recortada entre as moendas impelidas à roda de água
– nos engenhos chamados de água, e por giro de besta ou de bois, nos chamados
almanjarras ou trapiches; limparem depois o sumo das caldeiras de cocção;
fazerem coalhar o caldo; purgarem e branquearem o açúcar nas fôrmas de barro;
destilarem a aguardente» (Ibid.).
[8] Tanto foi assim que Freyre salienta: «nos engenhos e fazendas
vários escra vos chegaram a unir-se em casamento “vivendo assim em família, com
certas regalias que os senhores lhes conferem” (A.M.P. Malheiros, A
escravidão no Brasil, ensaio jurídico-histórico-social, Rio de Janeiro,
1866). Esses negros batizados e constituídos em família tomaram em geral o nome
de família dos senhores brancos: daí muitos Cavalcantes, Albuquerques, Melos, Mouras, Wanderleys, Lins, Carneiros Leões, Virgens
do sangue ilustre que seus nomes acusam» (CG&S,
539-540).
[9]
«Raro o senhor de engenho que morreu sem deixar alforriado, no testamento,
negros e mulatas de sua fábrica. É verdade que [e cita Alcântara Machado, que
aludia à situação dos escravos nas fazendas de São Paulo, nos séculos dezessete
e dezoito] “o alforriado é muitas vezes um bastardo, frutos dos amores do
testador ou de pessoa da família com uma negra da casa” (A.A. Machado, Vida e morte do bandeirante, São Paulo, 1930). Bastardos e filhos
naturais – que o senhor de engenho não os deixou em grande número? […] Os
enterros faziam-se à noite, com grandes gastos de cera; com muita cantoria dos padres
em latim; muito choro das senhoras e dos negros» (CG&S, 525-526).
[11] CG&S,
404-405.
[12]
«Nina Rodrigues identificou entre os negros do Brasil que conheceu ainda no
tempo da escravidão os chamados pretos de raça branca ou Fulas. Não só fula-fulos
ou Fulas puros, mas mestiços provenientes da Senegâmbia, Guiné Portuguesa e
costas adjacentes. Gente de cor cóbrea avermelhada e cabelos ondeados quase
lisos. Os negros desse estoque, considerados, por alguns, superiores aos demais
do ponto de vista antropológico, devido à mistura de sangue hamítico e árabe,
vieram principalmente para as capitanias, e mais tarde províncias , do norte.
[...] Descreve-os Haddon como gente alta, a pele amarela ou avermelhada, o
cabelo ondeado, o rosto oval, o nariz proeminente» (CG&S, 386).
[14]
«Aqui como nos Estados Unidos verificou-se não só a ascensão do mulato escravo,
dentro das casas-grandes, onde eram os preferidos para pajens e mucamas, como
do mulato livre, nas cidades e na Corte. [...] Ainda que alguns senhores – isto
desde o tempo de Pombal – conservassem em casa escravos mais brancos do que
eles, repita-se que a tendência no Brasil foi no sentido de favorecer a
alforria dos indivíduos de formas mais caucásicas e de pele mais clara e de
cabelo mais próximo do castanho do que do louro» (SeM, 748).
[15] «No regime alimentar brasileiro, a
contribuição africana afirmou-se principalmente pela introdução do
azeite-de-dendê e da pimenta malagueta, tão característico da cozinha baiana;
pela introdução do quiabo; pelo maior uso da banana; pela grande variedade da
maneira de preparar a galinha e o peixe. Varias comidas portuguesas ou
indígenas, foram no Brasil modificadas pela condimentação ou técnica culinária
do negro, alguns dos pratos mais caracteristicamente brasileiros são de técnica
africana: a farofa, o quibebe, o vatapá» (CG&S,
542).
[17] «Foram as seguintes as doenças trazidas
para o Brasil pelos “negros bichados”: bicho-da-costa, maculo, bouba, gandu,
frialdade, ainhum, bicho-de-pé, filarias (O. de
Freitas, Doenças trazidas ao
Brasil pelos “negros bichados”, Primeiro Congresso Afro-brasileiro do Recife,
Recife, 1934). O assunto – a origem dessa e de outras doenças outrora comuns no
Brasil – pede estudo demorado, como já observou outro médico, que se vem
inteligentemente dedicando ao estudo de doenças e de medicina no Brasil, o
doutor Eustaquio Duarte» (CG&S,
572).
[19] «A contaminação [com a sífilis] em massa
verificou-se nas senzalas coloniais. [...] Foram os senhores das casas-grandes
que contaminaram de lues as negras das senzalas. Negras tantas vezes entregues
virgens [...] a rapazes brancos já podres da sífilis das cidades. Porque por
muito tempo dominou no Brasil a crença de que para um sifilítico não há melhor
depurativo que uma negrinha virgem» (CG&S,
400-401).
[20] «De todas as influências sociais talvez a
sífilis tenha sido, depois da má nutrição, a mais deformadora da plástica e a
mais depauperadora da energia econômica do mestiço brasileiro. Sua ação começou
ao mesmo tempo que a da miscigenação; vem, segundo parece, das primeiras uniões
de europeus, desgarrados à-toa pelas nossas praias, com as índias que iam elas
próprias oferecerem-se ao amplexo sexual dos brancos» (CG&S, 110).
[21] «As primeiras vítimas eram os
moleques e animais domésticos; mais tarde é que vinha o grande atoleiro de
carne; a negra ou a mulata. Nele é que se perderam, como em areia gulosa, muita
adolescência insaciável. Daí fazer-se da negra ou mulata a responsável pela
antecipação de vida erótica e pelo desbravamento sexual do rapaz brasileiro.
Com a mesma lógica poderíamos responsabilizar os animais domésticos; a
bananeira; a melancia; a fruta de mandacaru com seu visgo e sua adstringência
quase de carne. Que todos foram objetos em que se exercem – e ainda se exerce –
a precocidade sexual do menino brasileiro» (CG&S,
455).
[22] CG&S, 509-510.
[25] «Talvez em nenhum país católico
tenham até hoje os filhos ilegítimos, principalmente os de padres, recebido
tratamento tão doce; ou crescido, em circunstâncias tão favoráveis. Dos
filhos ilegítimos, recolhidos nos inúmeros orfanatos coloniais, observou La Barbinais: “Ces sortes
d’énfants sont fort considerez dans ce Pais: le Roi les adopte, e les Dames les
plus qualifiés se font de honneur de les retirer dans leurs maisons, e de les
élever comme leurs propres enfants. Cette charité est bien louable mais elle
est suyette à bien des inconvenens” (M.L.G.D.
la Barbinais,
Nouveau voyage au tour du monde par M. Le
Gentil Enrichi de Plusieurs Plais, vues e perspectives des principales villes e
ports du Pérou, Chily, Brésil e de la
Chine, Amsterdam, 1728). Mais dignos de admiração eram porém os
meninos nascidos nas senzalas e criados em casa, misturados aos brancos e
legítimos» (CG&S, 531).
[26] «Forçosamente o catolicismo no Brasil
haveria de impregnar-se dessa influência maometana como se impregnou da
animista e fetichista dos indígenas e dos negros menos cultos. Encontramos
traços da influência maometana nos papéis com oração para livrar o corpo da
morte e da casa dos ladrões e malfeitores; papéis que ainda se costuma atar ao
pescoço das pessoas ou grudar às portas e janelas, no interior do Brasil. E é
possível que certa predisposição do negro e mestiços para o protestantismo,
inimigo da missa, dos santos, dos rosários com a cruz, se expliquem pela
persistência de remotos preconceitos anti-católicos, de origem maometana. Melo
Morais Filho descreve uma Festa dos Mortos, em Penedo, Alagoas, que para Nina
Rodrigues é, sem duvida nenhuma, muçulmana. Longas rezas e jejuns. Abstinência
de bebidas alcoólicas. Relação da festa com as fases da lua. Sacrifício de
carneiro. A vestimenta, umas longas túnicas alvas» (CG&S, 394).
[27] «Vieira Fazenda, no Rio de Janeiro, e Nina
Rodrigues, na Bahia, foram encontrar dentro de sobrados ilustres, os quartos de
santos e as capelas de certas casas-grandes patriarcais das cidades,
transformadas, em certos dias do ano, em verdadeiros pejis. [Na pagina
seguinte, descreve o reflexo deste sincretismo na iconografia feita, diz-nos
Gilberto, de passagem, por negros amaricados] as portas de vidro dos santuários
se abriram, no Brasil, se escancararam mesmo, para deixar entrar orixás, de cajá disfarçados de S. S.
Cosme e Damião; São Beneditos pretíssimos, Santas Efigênias retintas, Nossas
Senhoras do Rosário fortemente morenas» (SeM, 798-799).
[28] «O caráter de socialismo cristão que Diogo de
Vasconcelos vê nesse esforço admirável de cooperação prende-se antes à forma
que à essência da organização dos negros forros de Ouro Preto» (SeM, 149). Mais adiante,
em uma nota sobre a visão de Diogo de Vasconcelos, apenas exposta, Freyre
justifica-a, baseando-se no fato de que a organização, com fim social,
apresente-se em forma de irmandade religiosa: «Não é sem razão que o
historiador mineiro Diogo de Vasconcelos, e, baseado nele, A. Teixeira Duarte
em seu estudo sobre a origem do cooperativismo em Minas Gerais (A. Teixeira, Catecismo da cooperação, Revista do Arquivo do Público Ministério,
Belo Horizonte, 1914, ano XVIII, nota às páginas 341-342), vêem na organização
de Xico Rei parra forrar filhos ou
negros de sua nação, a antecipação,
no Brasil, do cooperativismo ou do socialismo cristão» (Ibid., 172). E, enfatiza, ainda, o espírito cooperativo que
movia os negros irmanados nessas agremiações: «Note-se, também, que enquanto as
irmandades de brancos faziam-se notar, na época colonial, em mais de uma área,
por extremos de rivalidade, cada uma cuidando exclusivamente dos seus
interesses, na segunda metade do século XVIII a Irmandade de Nossa Senhora da
Boa Morte, do Rio de Janeiro, procurava conseguir “a reunião de todas as
irmandades dos homens pardos” (Ofícios
para os vice-reis do Brasil no Rio de Janeiro, fl. 20, livro I-A,
Manuscrito, no Arquivo Público Nacional, Rio de Janeiro, 1765)» (Ibid.).
[30] «Até então, ao lado das Irmandades,
Confrarias, Ordens Terceiras para brancos e quase brancos, havia as irmandades
ou confrarias ostensiva ou disseminadamente destinada a mulatos – irmandades em
geral, chamadas do Amparo – e para pretos, em geral sob a invocação de São
Benedito ou de Nossa Senhora do Rosário, como a que James Henderson, nos
começos do século dezenove, informa que viu florescer na cidade de São
Cristóvão em Sergipe» (SeM, 536).
[31] SeM, 626.
[32] «Sabe-se que enorme prestígio
alcançaram as mucamas na vida sentimental das sinhazinhas. Pela negra ou pela
mulata de estimação é que a menina se iniciava nos mistérios do amor. […]
Histórias de casamento, de namoros, ou outras, menos românticas, mas igualmente
sedutoras, eram as mucamas que contavam às sinhazinhas nos doces vagares dos
dias de calor, a menina sentada, à mourisca, na esteira de pepiri, cosendo ou
fazendo rendas; ou então deitada na rede, os cabelos soltos, a negra
catando-lhe piolho, dando-lhe cafuné; ou enxotando-lhe as moscas do rosto com
um abano» (CG&S, 423-424).
[33] Na terceira parte da trilogia sobre a Introdução à historia patriarcal no Brasil,
Freyre comenta os casamentos arranjados,
no período imperial, instituição presente desde os primórdios da colonização,
dando as razões de sua existência: «Fortaleciam-se assim – repare-se a este
propósito – os laços domésticos, inclusive a relativa pureza étnica das mesmas
famílias; mas sobretudo a fortuna dos conjuntos patriarcais – fortuna que não
se espalhava por mãos estranhas. É possível que este interesse econômico de
preservar riqueza ou aumentar fortuna particular, através da coesão dos
conjuntos patriarcais, favorecesse a endogamia e com ela, como subproduto, a
pureza étnica – principalmente caucásica – dos mesmos conjuntos» (G. Freyre, Ordem e Progresso: Processo de desintegração das sociedades patriarcal
e semi-patriarcal no Brasil sob o regime do trabalho livre: aspectos de um
quase meio século de transição do trabalho escravo para o trabalho livre; e da
monarquia para a república, apresentação de Nicolau Sevcenko, São Paulo,
Global, 20046, 619).
[34] CG&S,
423.
[36]
«Um fato triste é que muitas noivas de quinze anos morriam logo depois de
casadas. Meninas. [...] Morriam de parto [...] Sem tempo nem de criarem o
primeiro filho. Sem provarem o gosto de ninar uma criança de verdade em vez dos
bebês de pano, feitos pelas negras de restos de vestidos. Ficava então o menino
para as mucamas criarem. Muito menino brasileiro do tempo da escravidão foi
criado inteiramente pelas mucamas. Raro o que não foi amamentado por negra. Que
não aprendeu a falar mais com a escrava do que com o pai e a mãe» (CG&S, 432-433).
[37] «Tradições portuguesas trazidas
pelos colonos brancos – a do cordão umbilical ser atirado ao fogo ou ao rio,
sob pena de o comerem os ratos, dando a criança para ladra; a da criança trazer
ao pescoço o vintém ou a chave que cura os sapinhos
do leite, a de não se apagar luz enquanto o menino não for batizado para
não vir a feiticeira, a bruxa ou o lobisomem chupar-lhe o sangue no escuro; a
de se darem nomes de santos pois, ao contrário, se arriscam a virar lobisomens
– foram aqui modificadas ou enriquecidas pela influência da escrava africana.
Da ama do menino. Da negra velha» (CG&S,
409-410).
[38] CG&S,
410.
[39] CG&S,
414.
[40] CG&S,
414.
[41] CG&S,
416.
[42] «João Ribeiro, mestre em assuntos de
português e de história da língua nacional que o diga com a voz autorizada:
“número copioso de vocábulos africanos penetraram na língua portuguesa,
especialmente no domínio do Brasil, por efeito das relações estabelecidas com
as raças negras” (J. Ribeiro, Dicionário gramatical contendo em resumo as
matérias que se referem ao estudos histórico-comparativo, Rio de Janeiro,
1889). Que brasileiro, pelo menos no norte, sente exotismo nenhum em palavras
como caçamba, canga, dengo, cafuné, lubango, malango, caçula, quitute,
mandinga, moleque, camundongo, munganga, cafajeste, quibebe, quengo, batuque,
banzo, mucambo, bangüê, bozô, mocotó, bunda, zumbi, vatapá, caruru, banzé,
jiló, mucama, quindim, catinga, mugunzá, malungo, berimbau, tanga, cachimbo,
candomblé?» (CG&S, 416-417).
[43]
«[o índio] Enriqueceu a nossa língua de numerosos vocabulários: arapuca,
pereba, sapeca, embatucar, tabaréu, pipoca, tetéia, caipira» (CG&S em quadrinhos, 17-18). Freyre
apresenta, ainda, uma série de elementos, característicos da cultura
brasileira, de origem ameríndia. «Vários são os complexos característicos da
moderna cultura brasileira, de origem pura ou nitidamente ameríndia: o da rede,
o da mandioca, o do banho de rio, o do caju, o do bicho, o da coivara, o da
igara, o do moquém, o da tartaruga, o do bodoque, o do óleo de coco-bravo, o da
casa do caboclo, o do milho, o
de descansar ou defecar de cócoras, o do cabaço para cuia de farinha, gamela,
coco de beber água etc. Outros, de origem principalmente indígena: o do pé
descalço, o da muqueca, o da cor encarnada, o da pimenta etc. isto sem falarmos
no tabaco e na bola de borracha, de uso universal, e de origem ameríndia,
provavelmente brasílica» (CG&S,
232).
[45] Por todo estes fatores, climáticos,
«As Antônias ficaram Dondons, Toninhas, Totonhas; as Teresas, Tetés; os
Manuéis, Nezinhos, Mandus, Manés; os Fanciscos, Chico, Chiquinho, Chico; os
Pedros, Pepés; os Albertos, Bebetos, Betinhos. Isto sem falar nas Iaiás, dos
Ioiôs, dos Sinhôs, dos Manus, Calus, Bembéns, Dedes, Marocas, Nocas, Nonocas,
Gegês» (CG&S, 414).
[46] CG&S,
419.
[47] «Os padres-mestres e os capelães de
engenho, que, depois da saída dos jesuítas, tornaram-se os responsáveis pela
educação dos meninos brasileiros, tentaram reagir contra a onda absorvente da
influência negra [...]. Frei Miguel do Sacramento Lopes da Gama, era um dos que
se indignavam quando ouvia meninas
galantes dizerem mandá, buscá, comê, mi espere, ti faço, mi deixe, muler, coler, le pediu, cadê ele,
vigie, espie. E dissesse algum menino em sua presença um pru mode, um oxente, veria o que era beliscão de frade zangado» (CG&S, 417).
[49] SeM,
622.
[50] Ver anexo I: Cronologia brasileira relativa à questão escravocrata: da divisão do mundo entre Espanha e Portugal à Proclamação
da República.
[52]
«A partir dos princípios do século XIX, a rua foi deixando de ser o escoadouro
das águas servidas dos sobrados, [...] foi deixando de ser o corredor escuro
que os particulares atravessavam com um escravo na frente, de lanterna na mão,
para ir se iluminando a lampião de azeite de peixe suspenso por correntes de
postes altos» (SeM, 32).
[53] SeM, 625.
[54] SeM,
672.
[55] «Exibicionismo ou arrivismo, talvez, da
parte de senhores, habituados a traquitanas ou a palaquins morosos e de repente
donos de carruagens capazes de os proclamarem superiores por mais esta
condição: a de rodarem velozmente por entre plebeus vagarosamente a pé» (SeM, 671).
[56]
«Dois tipos nitidamente diferenciados de escravos: o que se conservava no
serviço das casas, de portas a dentro,
e o que se destinava à rua, aos serviços de rua, a vender na rua. Aquele em contato com os brancos como se fosse
pessoa de família. O outro, menos pessoa de casa que indivíduo exposto aos
contatos degradantes da rua» (SeM,
155).
[57] J.B. Debret,
Voyage pittoresque et historique au
Brésil, ou séjour d’un artiste français au Brésil depuis 1816 jusqu’em 1831,
inclusivement, époques de l’avénement, et de l’abdication de S.M.D. Pedro Ier,
fondateur de l’empire brésilien, Firmin-Didot, 1834-1839, III. Algumas
destas ilustrações, encontram-se, no anexo dois do presente trabalho.
[59] CG&S,
550.
[66] OeP,
855.
[67] A separação Igreja-Estado, elaborada em
forma de lei, durante os anos agonizantes do Império, e aprovada nos primeiros
anos da República, gerou um desinteresse pela carreira religiosa. «Tendo se
acentuado a desagregação do sistema patriarcal de organização de família, de
economia e de política, dentro do qual a própria atividade religiosa se vira
subordinada mais aos patriarcas do que aos bispos, criaram-se novas situações
para o sacerdócio e para os sacerdotes. Começaram muitos dos brasileiros do
tipo dos que outrora concordavam docemente em se tornar padres e até frades,
para satisfazer o desejo de mães piedosas ou imposições de patriarcas
arbitrários – tão arbitrários que distribuíam os filhos pelas várias profissões
nobres, isto é, Armas, o serviço del-rei, a magistratura, o magistério, a
Igreja, posteriormente, a medicina, visando conservar o prestígio da família –
a notar que já não lhes estava reservado, na carreira eclesiástica, o
confortável papel de tios-padres, isto é, de padres mais filhos ou mais membros
ou mais comparsas desta ou daquela família patriarcalmente importante [e,
apresenta a novo status] puros
sacerdotes a serviço da Igreja é […] e sendo assim, nem a eles nem aos
patriarcas convinha, no interesse familiar ou patriarcal» (OeP, 778-779).
Fantástico !
RispondiEliminaPubliquei em minha página do face !
Obrigada Claudio.
Angelita (militante negra)