Pro quinto do inferno
Seria o "V do inferno", da Divina Commedia, de Dante, povoado pelos personagens da "Guerra do fim do mundo, de Vargas Llosa? No quinto canto do Inferno estavam, segundo Dante, os amantes da luxuria: "Quando giungon davanti a la ruina,/quivi le strida, il compianto, il lamento; /bestemmian quivi la virtù divina. / Intesi ch’a così fatto tormento /enno dannati i peccator carnali, /che la ragion sommettono al talento" (Dante Alighieri, Divina Commedia, Inferno, Canto V, 34-39).
De fato, aquela obra, a llosaneana está impregnada de estupros e violências sexuais de todo tipo; desejo incontinente de realização do que mais parece ser a condição animalesca daqueles homens que foram viver em Canudos e, ainda mais, dos que foram ali para combater a nova - e ao mesmo tempo velha e, num certo sentido, obsoleta - visão de mundo perpetrada por Antônio Conselheiro.
Mas Dante não só canta a danação dos danados pela luxuria mas, também, a potência incansável do amor, capaz de vencer a barreira da morte e nao somente aquele amor, diremos hoje, romeojulietiano, que tudo vence pois para tais amantes o que conta, romanticamente, é que somente " a morte nos separe". Assim, a continuação do canto danteano faz ainda mais forte: "Amor, ch’a nullo amato amar perdona, /mi prese del costui piacer sì forte, che, come vedi, ancor non m’abbandona. /Amor condusse noi ad una morte: /Caina attende chi a vita ci spense»" (Inferno, Canto V, 103-107).
A longa versão de Os Sertões, de 1981, do escritor e premio nobel peruano Mario Vargas Llosa, parece ratificar quanto Gilberto Freyre defendia; isto é, que a combinação de raças, o calor e o suor do trópico, findou com fomentar a promiscuidade sexual que se difundiu no Brasil Colonial. Se faltou a Freyre - como muitos o pensam - o sentido crítico da subjugação do homem e escravo africano e indígena pelo homem europeu, fato é que, para Llosa, subjugados ou não, antes do advento da televisão e das mulheres com suas "dores de cabeça" ante a solicitação sexual de seus parceiros ou maridos, eram as "ousadias" as maiores distrações do sertão baiano. Basta com reler as páginas seguintes.
"Sim, para alguém que acreditava que o destino era em boa parte inato e ia escrito sobre a massa encefálica, onde umas mãos mãos direitas e uns olhos pesados podiam auscultá-lo, era duro comprovar a existência dessa margem imprevisível, que outros seres podiam dirigir com horrível prescindência da vontade própria, da aptidão pessoal. Quanto tempo levava descansando? A fadiga tinha desaparecido, em todo caso. Teria desaparecido também a moça? Teria ido pedir auxílio, a procurar gente que viesse a prendê-lo? Pensou ou sonhou: «Os planos se fizeram fumaça quando deviam materializar-se». Pensou ou sonhou: «A adversidade é plural». Advertiu que se mentia; não era verdade que este desassossego e este pasmo se devessem a não ter encontrado ao Rufino, a ter estado a ponto de morrer, a ter matado a esses dois homens, ao roubo das armas que ia levar à Canudos. Era esse arrebatamento brusco, incompreensível, incontrolável, que o fez violar a Jurema depois de dez anos de não tocar em uma mulher, o que roía a dorme-vela de Galileo Gall"
(Das reflexões do jornalista estrangeiro Galileo Gall. Mario Vargas Llosa, A guerra do fim do mundo, R.B.A Projetos Editoriais S.A, p. 68).
"Sim, para alguém que acreditava que o destino era em boa parte inato e ia escrito sobre a massa encefálica, onde umas mãos mãos direitas e uns olhos pesados podiam auscultá-lo, era duro comprovar a existência dessa margem imprevisível, que outros seres podiam dirigir com horrível prescindência da vontade própria, da aptidão pessoal. Quanto tempo levava descansando? A fadiga tinha desaparecido, em todo caso. Teria desaparecido também a moça? Teria ido pedir auxílio, a procurar gente que viesse a prendê-lo? Pensou ou sonhou: «Os planos se fizeram fumaça quando deviam materializar-se». Pensou ou sonhou: «A adversidade é plural». Advertiu que se mentia; não era verdade que este desassossego e este pasmo se devessem a não ter encontrado ao Rufino, a ter estado a ponto de morrer, a ter matado a esses dois homens, ao roubo das armas que ia levar à Canudos. Era esse arrebatamento brusco, incompreensível, incontrolável, que o fez violar a Jurema depois de dez anos de não tocar em uma mulher, o que roía a dorme-vela de Galileo Gall"
"No dia seguinte, quando os dois jornalistas despertam — é a alvorada e há quiquiriquís — lhes fazem saber que Moreira César já partiu, pois houve um incidente na vanguarda: três soldados violaram uma moça. Partem no ato, com uma companhia em que vai o Coronel Tamarindo. Quando alcançam à cabeça da Expedição, os violadores estão sendo açoitados, um ao lado do outro, sujeitos a troncos de árvores. A gente ruge com cada chicotada; outro parece rezar e o terceiro mantém um gesto arrogante enquanto suas costas avermelha arrebenta em sanguel" (A guerra do fim do mundo, 148).
Segue, a descrição da punição de um 'pedera ' - como vêm nomeados os homossexuais lá no sertão da Paraíba. Mas, vista a configuração do problema nos dias atuais, é justo acenar a quanto diz a legislação e distinguir entre homossexualidade de pedofilia. Distinguir e separar. Não necessariamente todo pedófilo é homossexual, não necessariamente todo homosexual é pedófilo. Clarificada e pontuada a questão, andemos ao texto:
"Os soldados da companhia estão aguardando-o; os castigos são sempre muito concorridos pois é um dos poucos entretenimentos do Batalhão. O soldado Queluz, já preparado, tem as costas nua, entre uma ronda de soldados que lhe fazem brincadeiras. Ele lhes responde rindo. Ao chegar os dois oficiais todos ficam sérios e Pires Ferreira vê, nos olhos do castigado, um súbito temor, que dissimula tratando de conservar a expressão zombadora e indócil.
—Trinta varas—lê, na parte do dia—. ão muitas. Quem lhe castigou?—O Coronel Joaquim Manuel de Medeiros, sua senhoria—murmura Queluz. —O que fez?—pergunta Pires Ferreira. Está calçando a luva de couro, para que a esfregação das varas não lhe arrebente as ampolas. Queluz pestaneja, incômodo, olhando com a extremidade do olho a direita e a esquerda. Brotam risadas, murmúrios.—Nada, sua senhoria—diz, engasgado. Pires Ferreira interroga com os olhos centena de soldados que formam o círculo.
—Quis violar a um corneta do Quinto Regimento —diz o Tenente Pinto Souza,com desgosto—. Um cabra que não cumpriu quinze anos. Surpreendeu-o o próprio Coronel. É um degenerado, Queluz. —Não é certo, sua senhoria, não é certo—diz o soldado, negando com a cabeça—. O Coronel interpretou mal minhas intenções. Estávamos nos banhando no rio sadiamente. Juro. —E por isso ficou a pedir auxílio o corneta?—diz Pinto Souza—. Não seja cínico. —É que o corneta também interpretou mal minhas intenções, sua senhoria—diz o soldado, muito sério. Mas como estala uma gargalhada geral, ele mesmo acaba por rir. —Mais cedo começamos, mais cedo terminamos—diz Pires Ferreira, agarrando a primeira vara, de várias que tem a seu alcance o ordenança. A prova no ar e com o movimento lhe arqueiam, que produz um assobio de enxame, a ronda de soldados retrocede—. Amarramo-o, ou agüenta como bravo? —Como bravo, sua senhoria—diz o soldado Queluz, empalidecendo. —Como bravo que se atira aos cornetas—esclarece alguém e há outra salva de risadas" (A guerra do fim do mundo, p. 253).
Enfim, dentre as inúmeras referencias aos prazeres da carne em A Guerra do fim do mundo, colho esta, extraída dos diálogos entre o Barão de Canabrava, proprietário das terras de Canudos, um tal Gumucio, e outro fazendeiro daquela zona, oCoronel Marau, que bem revela o ponto de vista do autor sobre as ousadias do sexo. Discutindo sobre as capacidades do jornalista estrangeiro Galileo Gall, dizem:
"Confunde a realidade e as ilusões, não sabe onde termina uma e começa a outra —disse—. Pode ser que conte essas coisas com sinceridade e acredita-as ao pé da letra. Não importa. Porque ele não as vê com os olhos a não ser com as idéias, com as crenças. Não recordam o que diz de Canudos, dos jagunços? Deve ser o mesmo com o resto. É possível que uma briga de rufiões em Barcelona, ou uma jogada à rede de contrabandistas pela polícia de Marselha, sejam para ele batalha entre oprimidos e opressores na guerra por romper as cadeias da humanidade.
—E o sexo?—disse José Bernardo Murau: estava abotagado, com os olhinhos faiscantes e a voz branda—. Esses dez anos de castidade vocês os trazem? Dez anos de castidade para entesourar energias e as descarregar na revolução?
Falava de tal modo que o Barão supôs que a qualquer momento começaria referir- se à histórias decoradas.
—José Bernardo julga aos homens por si mesmo—brincou Gumucio, voltando-se por volta do dono da casa—. Para você seria impossível suportar dez anos de castidade.
—Impossível—lançou uma gargalhada o fazendeiro—. Não é estúpido renunciar a uma das poucas compensações que tem a vida?" (A guerra do fim do mundo, p. 209).
Eita nois! Eita Deus!
Eita nois! Eita Deus!